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O Irã no Tabuleiro Geopolítico: Poder Nuclear, Conflito Regional e Grandes Potências
O Irã no Tabuleiro Geopolítico: Poder Nuclear, Conflito Regional e Grandes Potências Yasmin Freitas Taia O programa nuclear iraniano constitui um dos pontos mais sensíveis da agenda internacional contemporânea, marcado pela tensão entre os compromissos assumidos em tratados multilaterais e a desconfiança de atores ocidentais quanto às reais intenções de Teerã. Desde o estabelecimento do Plano de Ação Conjunto Global (JCPOA) em 2015, buscou-se criar mecanismos de fiscalização e transparência capazes de garantir o caráter pacífico da política nuclear iraniana. No entanto, relatórios recentes, publicados em 2025, da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) evidenciam o aumento do enriquecimento de urânio e a ausência de informações sobre certas instalações, o que reavivou preocupações de segurança e levou à reimposição de sanções internacionais. Tal cenário insere-se em uma conjuntura de crescente instabilidade no Oriente Médio, em que o programa nuclear do Irã se articula com dinâmicas de segurança regional, rivalidades históricas e disputas de poder entre grandes potências. Embora o debate sobre armas nucleares tenha ressurgido nos últimos anos, sua origem recorre ao final da Segunda Guerra Mundial, — marco histórico que evidenciou as terríveis consequências de seu uso. No entanto, a escalada de confrontos diretos com Israel, a participação ativa dos Estados Unidos e o fortalecimento da cooperação do Irã com Rússia e China indicam que a questão nuclear permanece como instrumento coercitivo, político e estratégico. Assim, compreender as implicações desse processo é fundamental para analisar a atual correlação de forças no sistema internacional. O Programa Nuclear Iraniano Desde 2015, as sanções ao Irã haviam sido suspensas com a criação do Plano de Ação Conjunto Global (JCPOA), em troca da garantia que o programa nuclear do Irã seria de natureza pacífica (Conselho Europeu). Além desse acordo, o Irã é signatário do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), que estabelece diversas obrigações aos Estados signatários com o objetivo de não disseminar as armas nucleares. A exemplo dessas medidas, está a não transferência, fabricação e aquisição de armas nucleares ou outros explosivos nucleares. Ademais, estabelece a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), como órgão que fiscaliza o cumprimento das medidas impostas pelo TNP (Brasil, 2025). Nesse sentido, a presença da AIEA foi essencial para definir os próximos passos do Irã, visto que realizou visitas e produziu relatórios sobre a situação nuclear do país, causando preocupação internacional. O relatório da AIEA, publicado em maio de 2025, aponta o Irã como único país não nuclear do TNP — são definidos como aqueles que não testaram ou explodiram arma nuclear antes de 1967 —, que enriquece Urânio a níveis altíssimos próximos a 60%. Porém, ainda é um nível alarmante, mesmo que o TNP não estabeleça uma porcentagem limite, por se aproximar do enriquecimento de 90% que é utilizado na construção de armas nucleares (Léon, 2025). Por outro lado, há descumprimento dos acordos quando o Irã não promove informações sobre as suas capacidades nucleares reais e muitos locais de desenvolvimento nuclear não foram declarados, como o Lavitan-Shian, Marivan, Varamin e Turquzabad (IAEA, 2025). Logo, este relatório deu base para as ações seguintes de ataque ao país. O discurso de luta por uma mudança política e da ameaça nuclear iraniana foi utilizado por Israel em 13 de junho para atacar instalações do país, principalmente nucleares, e assassinar pessoas estratégicas ao governo, como cientistas nucleares e comandantes militares (Doucet, 2025). Em contrapartida, o Irã lançou diversos mísseis e drones em Israel. Não obstante, os Estados Unidos decidiu tomar partido de Netanyahu e atacou três instalações iranianas e recebeu ameaças de ter suas bases militares no Oriente Médio atacadas (Léon, 2025). De fato, o Irã cumpriu o seu discurso e lançou mísseis contra a base dos Estados Unidos no Catar, chamada Al Udeid, e logo em seguida foi ratificado um cessar-fogo desse conflito (G1, 2025). Após o conflito discutido, houve uma reunião entre Grã-Bretanha, França e Alemanha, que definiram que o Irã receberia um ultimato para apresentar que o seu programa nuclear não representava um risco à segurança internacional (O Globo, 2025). Nesse período, foram realizadas diversas reuniões, discussões e apresentações de propostas pelo Irã, com a defesa argumentando que seria vítima das manipulações do Ocidente, em especial pelos Estados Unidos (O Globo, 2025). Portanto, no final de setembro foram restabelecidas as sanções da Organização das Nações Unidas ao Irã, com a acusação de que estaria desrespeitando os compromissos do acordo nuclear JCPOA de não construir bombas nucleares (CNN, 2025). Apesar dos argumentos do Irã de que as suas usinas nucleares seriam apenas para fins civis e energéticos, na prática ainda causa desconfiança no âmbito da segurança. A partir das negociações realizadas entre Irã e Rússia, foi ratificado um acordo de US$25 bilhões no mesmo dia da decisão da aplicação das sanções pela ONU (The Moscow Times, 2025). Com a parceria entre a empresa iraniana Hormoz e a russa Rosatom, serão construídos quatro novos reatores no território iraniano, na cidade de Sirik (The Moscow Times, 2025). Segundo o Islamic Republic News Agency (IRNA), a capacidade de cada uma das usinas será de aproximadamente 1,255 MW de eletricidade, resultando em um total de 5,20 MW (Shafaq News, 2025). Logo, o Irã será um adversário do Ocidente mais fortalecido, com o apoio da Rússia e das capacidades econômicas que as novas usinas irão proporcionar. Segurança e defesa do Irã Um dos mecanismos de poder utilizado pelo Irã é o chamado “Axis of Resistance” (AOR), em que grupos armados são financiados e apoiam ações militares alinhadas aos interesses do país. Segundo a Ministra de Defesa Israelense Naftali Bennet, o Eixo da Resistência seria como um polvo, em que o Irã controla os segmentos sem se colocar diretamente no conflito. Nesse sentido, a cooperação do AOR com o Irã é muito estratégica, pois equilibra os interesses de cada grupo junto ao desejo iraniano de ter um maior controle regional (Day, 2025). Em segundo lugar, o próprio programa nuclear do Irã é uma fonte de projeção de poder, visto que os países sentem-se ameaçados e limitam os seus ataques frente à possibilidade de uma retaliação. No entanto, os países do Ocidente promoveram o retorno das sanções econômicas ao Irã como forma coercitiva de limitar a expansão nuclear. Infelizmente, para as potências que apoiaram Israel no conflito e as decisões de sanção, o Irã possui apoio tanto de grupos regionais, do AOR, como de potências como Rússia e China (Day, 2025). Logo, podemos analisar que os conflitos ligados ao Irã estão diretamente ligados à disputa das grandes potências. Por último, a utilização da narrativa iraniana como forma de se colocar como vítima das grandes potências e dos organismos internacionais é muito eficiente, principalmente diante da recente crise do multilateralismo (Day, 2025). Nesse sentido, a diferença de tratamento da ONU com Israel e o Irã é muito perceptível, visto que ambos desacatam o direito internacional, mas apenas um deles recebe retaliação e pressão internacional. Ao realizar a comparação dos dois países nos últimos anos, é facilmente identificado a desproporcionalidade dos crimes, em que o Irã — que era o principal vilão do Oriente Médio — se tornou uma vítima do então presidente Netanyahu e seu apoiador Trump. Crise do Multilateralismo A crise do multilateralismo evidencia-se pela incapacidade das organizações internacionais de agir de forma imparcial e eficaz diante de disputas estratégicas entre grandes potências e países considerados periféricos no sistema internacional. O caso do Irã é um exemplo disso: enquanto Israel, que também viola normas do direito internacional em diferentes contextos, enfrenta respostas brandas da ONU, o Irã é submetido a intensas sanções e pressões políticas. Nesse sentido, o próprio Relatório da AIEA intensificou as preocupações internacionais, levando a um olhar desigual das instituições que acordaram em impor sanções ao Irã. Esse tratamento assimétrico revela como as instituições multilaterais acabam refletindo o desequilíbrio de forças do Conselho de Segurança da ONU, onde os membros permanentes exercem poder de veto e influenciam diretamente a agenda internacional. Além disso, a fragilidade do multilateralismo contemporâneo está associada à própria crise de legitimidade das instituições criadas no pós-Segunda Guerra Mundial. Diante da ascensão de novos polos de poder, como Rússia, China, Índia e até atores regionais como o próprio Irã, o modelo centrado no Ocidente perde capacidade de representar a diversidade de interesses globais. Essa discrepância alimenta narrativas de vitimização e resistência, exploradas por países que se sentem marginalizados pela ordem internacional. Nesse sentido, a crise do multilateralismo não se traduz apenas em ineficiência prática, mas também em perda de credibilidade, abrindo espaço para arranjos paralelos de cooperação — como parcerias bilaterais e regionais — que desafiam a centralidade das instituições universais. Conclusão A análise do programa nuclear iraniano demonstra como a questão da segurança internacional não se limita ao cumprimento de normas jurídicas, mas envolve narrativas políticas, disputas de poder e diferentes padrões de legitimidade. Enquanto o Ocidente enxerga no Irã uma ameaça à ordem internacional, o governo iraniano se coloca como vítima de uma política seletiva e assimétrica das grandes potências e das instituições multilaterais. Nesse sentido, o uso da narrativa da resistência, aliado ao fortalecimento de alianças com o “Axis of Resistance” e com parceiros estratégicos como Rússia e China, confere a Teerã novas margens de manobra frente às pressões internacionais. Portanto, o futuro do programa nuclear iraniano será determinado não apenas pela eficácia das sanções e das fiscalizações internacionais, mas também pelo jogo geopolítico que envolve atores regionais e globais. A crescente militarização da região, somada à fragilidade do multilateralismo e à seletividade das respostas internacionais, reforça a ideia de que a disputa em torno do Irã extrapola a questão nuclear, configurando-se como reflexo das transformações mais amplas da ordem regional e internacional contemporânea. Referências Bibliográficas AGÊNCIA BRASIL. Chefe da AIEA diz que não tem prova de armas nucleares do Irã. Agência Brasil, 2025. Disponível em:https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2025-06/chefe-da-aiea-diz-que-nao-tem-prova-de-armas-nucleares-do-ira. Acesso em: 29 set. 2025. AGÊNCIA BRASIL. Israel ataca prisão em Teerã; Irã lança 21ª onda de mísseis balísticos. Agência Brasil, 2025. Disponível em:https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2025-06/israel-ataca-prisao-em-teera-ira-lanca-21%C2%AA-onda-de-misseis-balisticos. Acesso em: 29 set. 2025. BBC NEWS BRASIL. Entenda o que é o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares. BBC News Brasil, 2025. Disponível em:https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4g8e3kk3x4o. Acesso em: 29 set. 2025. CNN BRASIL. Mesmo com apelos da Rússia e China, ONU reimpõe sanções ao Irã. CNN Brasil, 2025. Disponível em:https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/mesmo-com-apelos-da-russia-e-china-onu-reimpoe-sancoes-ao-ira/. Acesso em: 29 set. 2025. CNN BRASIL. Entenda o que é o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares. CNN Brasil, 2025. Disponível em:https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/entenda-o-que-e-o-tratado-de-nao-proliferacao-de-armas-nucleares/. Acesso em: 29 set. 2025. CONSELHO EUROPEU. Medidas restritivas contra o Irã: plano de ação conjunto global (JCPOA). Conselho Europeu, 2025. Disponível em:https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/jcpoa-iran-restrictive-measures/#:~:text=O%20acordo%20sobre%20o%20plano,relacionadas%20com%20o%20dom%C3%ADnio%20nuclear. Acesso em: 29 set. 2025. Day, P. Narrative Intelligence: Decoding Iran’s Influence Campaigns in Iraq. Foreign Policy Research Institute (FPRI), 2025. Disponível em:https://www.fpri.org/article/2025/08/decoding-iran-influence-iraq/. Acesso em: 29 set. 2025. G1. Irã fala em “grande vitória” e anuncia fim do conflito com Israel. G1, 2025. Disponível em:https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/06/24/ira-fala-em-grande-vitoria-e-anuncia-fim-do-conflito-com-israel.ghtml. Acesso em: 29 set. 2025. SERRANO, C. Hiroshima e Nagasaki: como foi o 'inferno' em que milhares morreram por causa das bombas atômicas. BBC News Brasil, 2025. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/resources/idt-897d70df-056b-413c-ac44-cdacae33bc8c. Acesso em: 15 out. 2025. SHAFAQ NEWS. Iran, Russia sign nuclear deal to generate 5K MW. 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Geração Z em chamas: O Nepal Que se Levanta
Geração Z em Chamas: O Nepal Que se Levanta Luísa Beatriz Ribeiro Silva No início de setembro, o mundo assistiu atônito à juventude nepalesa tomar as ruas de Katmandu, ateando fogo em prédios do governo, em casas de ministros e em tudo que simbolizasse o Estado, enviando, assim, uma mensagem clara de insatisfação. A mídia internacional rapidamente retratou os protestos como uma revolta contra a recente proibição das redes sociais pelo poder executivo. Os manifestantes foram noticiados como jovens de uma geração completamente dependente do ciberespaço. No entanto, uma análise mais profunda revela que esse episódio foi apenas o estopim de um processo de indignação que vinha se acumulando há anos, tendo como núcleo questões estruturais de caráter interno e externo, as quais estão intimamente interligadas: a fragilidade política e socioeconômica do Nepal e o seu lugar subordinado na ordem capitalista global. Desse modo, é necessário entender o contexto em que se deu a revolta e analisar a realidade econômica que rege a estrutura do país e a vida de seus cidadãos. A Geração Z Contra o Governo do Nepal Os protestos no Nepal começaram após a imposição, por parte do governo, da medida que limitou 26 redes sociais, entre elas WhatsApp, Facebook, Instagram e Wechat (Regalado; Chutel, 2025). Esta se justificou sob a alegação de que as plataformas não colaboram com a justiça do país, já que não restringem usuários que usam identidades falsas e espalham discursos de ódio e desinformação (Regalado; Chutel, 2025). É importante pontuar que, semanas antes da decisão, viralizaram nas redes os chamados nepokids nepaleses, filhos de políticos que ostentavam suas vidas luxuosas nas mídias, contrastando com a realidade da maioria do país. Nesse sentido, a população, majoritariamente os jovens, insatisfeita com a medida autoritária do governo, bloquearam rodovias e se dirigiram ao complexo do parlamento. Os manifestantes se descreveram como a “voz da geração Z”, lutando, para além da proibição vigente, contra a corrupção, o desemprego e a desigualdade que assolam o país. Carregando pôsteres com palavras de ordem como “bloqueiem a corrupção, não as redes sociais", os nepaleses se fizeram ouvidos (Redação G1, 2025) e provocaram a renúncia do primeiro-ministro e de outras autoridades governamentais. As manifestações duraram dois dias até que o exército entrasse em cena, estabelecesse um toque de recolher e a situação se acalmasse. Antes disso, estima-se que 72 pessoas morreram e mais de 1600 ficaram feridas (Regalado; Chutel, 2025; Sharma, 2025). O acontecimento mais recente foi a nomeação, após votação informal da população no aplicativo Discord, da ex-presidente do Supremo Tribunal, Sushila Kark, como líder do governo interina, que deve convocar novas eleições para o dia 5 de março de 2026. Nepal e a Armadilha da Dependência Desde sua transformação em república em 2008, o Nepal foi absorvido pela dinâmica do sistema centro-periferia, conceito desenvolvido por Raúl Prebisch e aprofundado por Celso Furtado. Segundo esses autores, as economias periféricas estão estruturalmente impedidas de alcançar um desenvolvimento autônomo, visto que se inserem no comércio internacional em condições desiguais: exportando produtos primários ou de baixo valor agregado e importando bens industrializados, o que leva à deterioração dos termos de troca (Furtado, 2007, Prebisch, 2000). Nesse modelo, a riqueza flui constantemente do Sul para o Norte global, reforçando o subdesenvolvimento. O caso do Nepal ilustra bem essa lógica: o país jamais desenvolveu um parque industrial robusto e permanece restrito a setores frágeis como o turismo, concentrado principalmente no Monte Everest, e as remessas enviadas por trabalhadores imigrantes. Assim, a economia nacional se sustenta sobre bases externas, tornando-se extremamente vulnerável a crises globais, às flutuações do mercado e ao sistema internacional. Contudo, como destacam Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto (1969), a dependência não ocorre passivamente. Em sua teoria da modernização dependente, os autores argumentam que, mesmo em países periféricos, pode haver crescimento econômico, mas ele se dá de forma subordinada aos interesses externos, mediante a associação entre elites locais e capital estrangeiro (Cardoso e Faletto, 1969). Esse modelo não rompe com a condição periférica: ao contrário, ele gera uma modernização restrita e excludente, na qual uma pequena elite acumula riqueza e poder, enquanto a maioria da população permanece marginalizada. No Nepal, esse padrão fica evidente. Embora o turismo e as remessas tragam recursos para o país, eles não promovem transformação estrutural, ou seja, que modifique a configuração vigente, nem geram empregos qualificados. Ao invés disso, fortalecem uma elite política e econômica profundamente corrupta, que se beneficia do sistema e mantém o país em situação de dependência permanente. Dessa forma, o episódio dos nepokids expôs, de forma clara, para a população esse movimento de suas elites. Tal arranjo cria um desenvolvimento desigual, no qual as classes mais altas ostentam luxos incompatíveis com a realidade da população, que vive em extrema pobreza e sem perspectivas de mobilidade social. A juventude, sem oportunidades, é forçada a emigrar, tornando-se parte de um ciclo perverso no qual a saída individual reforça a estagnação coletiva. Desigualdade Estrutural e Fragilidade Econômica Assim torna-se explícito que muito antes dos protestos, o Nepal já enfrentava dificuldades estruturais que moldaram o cenário atual de insatisfação. Trata-se de um país profundamente marcado pela estratificação social, em que a população é dividida em castas — brâmanes (casta mais alta), xátrias, vaixás, shudras e dalits (casta mais baixa). Esse sistema não se limita a uma herança cultural, mas atua como um mecanismo de reprodução das desigualdades, definindo, desde o nascimento, o acesso a direitos básicos, como educação e emprego (Bhul, 2021). Desse modo, ele consolida uma elite política e administrativa formada quase exclusivamente por brâmanes e xátrias, que continuam ocupando a maioria dos cargos públicos, o que pouco representa a população nepalesa. Além disso, mesmo com a implementação de políticas de cotas voltadas para grupos marginalizados, a presença das castas privilegiadas ainda domina o serviço público, apesar de representarem apenas 30% da população (Shrestha, 2018). Tal discrepância evidencia que as políticas de inclusão têm funcionado mais como instrumentos simbólicos de legitimidade do governo do que como mecanismos efetivos de transformação social. Assim, o Estado nepalês mantém-se distante das demandas da maioria do povo, consolidando um sistema no qual os jovens das castas mais baixas não somente lidam com barreiras materiais, mas também a percepção de que a mobilidade social é uma promessa vazia. Esse sentimento de exclusão reforça a percepção de que o governo não representa seus cidadãos, intensificando o descontentamento e a desconfiança em relação às instituições. Para além da desigualdade social e da ausência de representatividade política, o Nepal enfrenta uma economia estruturalmente frágil, incapaz de responder às necessidades de sua população. Em 2024, o país registrou um PIB de apenas US$ 42,91 bilhões, o que corresponde a 0,04% da economia mundial (PIB, [s.d]). A falta de industrialização limita a capacidade produtiva nacional, deixando a economia dependente de setores primários como a agricultura, que emprega mais de 70% da população, e do turismo (Nepal,[s.d]). A estrutura econômica revela a condição periférica do Nepal no sistema capitalista global, na qual o país assume funções subordinadas na divisão internacional do trabalho. O indicador mais contundente dessa dependência é o peso das remessas enviadas por trabalhadores migrantes — em sua maioria jovens — que, em 2024, somaram US$ 11 bilhões (Regalado; Chutel, 2025). Essa realidade expressa um paradoxo: enquanto esses recursos sustentam a economia interna, a saída em massa de jovens em busca de melhores oportunidades representa uma fuga de capital humano, enfraquecendo ainda mais a capacidade produtiva do país. Desse modo, o ciclo se retroalimenta: a ausência de empregos qualificados leva à emigração, que, por sua vez, perpetua a estagnação econômica. A dependência das remessas, portanto, não é apenas um dado econômico, mas um sintoma de um modelo sistêmico excludente, no qual as barreiras impostas pelo sistema de castas se combinam à falta de oportunidades econômicas. Nesse contexto, os jovens das castas mais baixas enfrentam uma dupla exclusão: dentro do país, têm seu acesso à educação e aos cargos públicos limitado pela hierarquia social; fora dele, são forçados a buscar empregos precários em outras nações, frequentemente em condições degradantes. Essa dinâmica aprofunda a percepção de que a mobilidade social é quase impossível, intensificando a sensação de injustiça somada à ineficiência do governo em solucionar esses problemas. Portanto, a juventude é colocada diante de uma escolha cruel — emigrar ou se resignar a uma realidade sem perspectivas —, acumulando uma frustração coletiva que, inevitavelmente, explodiria nos protestos recentes. Considerações Finais Nessa conjuntura, as redes sociais ocupam um papel simbólico e prático. Elas são, ao mesmo tempo, um elo de conexão entre os jovens que migraram e suas famílias no Nepal e um espelho das desigualdades internas, visto que expõem o estilo de vida ostentatório das elites políticas e econômicas (Regalado; Chutel, 2025). Quando o governo decidiu proibir essas plataformas, não somente cortou uma ferramenta essencial de comunicação para milhões de nepaleses, mas também tentou suprimir um espaço de mobilização e denúncia, no qual a indignação coletiva vinha se acumulando. A proibição das redes sociais foi apenas a faísca que acendeu o pavio de um barril de pólvora construído por décadas de estratificação social e dependência estrutural. Nesse ínterim, Sushila Kark surge como um suspiro de esperança para uma população que há anos clama por mudanças complexas. Reconhecida por desafiar o establishment político e enfrentar a corrupção em uma sociedade marcada por desvios, sua nomeação como líder interina representa mais do que uma simples troca de autoridades: simboliza a possibilidade de um governo que se alinhe, ainda que parcialmente, com os anseios da população. Todavia, sua ascensão deve ser vista como um ponto de partida para enfrentar questões estruturais profundas. O desafio do Nepal é transformar essa liderança temporária em mudanças reais, que permitam à juventude — especialmente à Geração Z, protagonista da recente insurreição — vislumbrar horizontes concretos de participação, inclusão e justiça social. Essa faísca acesa pelos protestos pode, assim, converter-se em um processo de reconstrução política e social duradouro, capaz de romper com décadas de estratificação, de subdesenvolvimento e de dependência. Referências bibliográficas BHUL, B. Representative Bureaucracy: The Nepalese Perspective. Prashasan: Nepalese Journal of Public Administration, v. 52, n. 1, p. 198–216, 1 out. 2021. CARDOSO, F.H.; FALETTO, E. Dependência e desenvolvimento na América Latina: ensaio de interpretação sociológica. 10. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. 34. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. NEPAL - PIB Taxa de Crescimento Anual | 1993-2024 Dados | 2025-2027 Previsão. Trading Economics, s.d. Disponível em: https://pt.tradingeconomics.com/nepal/gdp-growth-annual. Acesso em: 28 set. 2025. PIB do Nepal. Trading Economic, s.d. Disponível em: https://pt.tradingeconomics.com/nepal/gdp. Acesso em: 28 set. 2025. PRASAIN, S.; PRASAIN, K. 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Deportações lucrativas: a economia criminal por trás da política migratória de Trump
Deportações lucrativas: a economia criminal por trás da política migratória de Trump Bianca Pinheiro “Irei declarar um estado de emergência na fronteira sul […] e nós vamos começar o processo de devolução de milhões e milhões de estrangeiros criminosos aos lugares de onde vieram” (The White House, 2025). Com essas palavras, o atual presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Donald Trump, abordou a política migratória durante sua cerimônia de posse, em janeiro de 2025. Em seu discurso, enfatizou não apenas o maior grau de securitização a ser adotado, mas também o caráter essencialmente criminalizante de sua abordagem em relação aos indivíduos migrantes. Como prometido, mais de 330 mil pessoas já foram deportadas desde o início do segundo mandato de Trump, sendo 200 mil pela Agência de Imigração (ICE, na sigla em inglês) e 130 mil pela Agência de Proteção de Fronteira (Alvarez, 2025). Além disso, outras 60 mil estão presas em centros de detenção (Cameron; Aleaziz, 2025). Acorrentados e desumanizados, os migrantes indocumentados são tratados como indesejáveis, criminosos, desprovidos de qualquer direito. Entretanto, essa reação burocrática representa somente uma etapa intermediária na longa jornada dos migrantes centro-americanos. É preciso considerar os motivos pelos quais milhares de pessoas optam por deixar suas casas e suas comunidades para iniciar uma longa e perigosa travessia. Particularmente, os países do Triângulo Norte da América Central — Honduras, El Salvador e Guatemala — representam grandes polos de emigração, sendo o principal motor desta saída a insegurança, não unicamente a busca por melhores condições econômicas (MSF, 2025). Por toda a região, gangues, milícias e cartéis tornam a população local refém de seus métodos violentos. Ademais, é necessário destacar o envolvimento desses grupos de crime organizado ao longo dos fluxos migratórios. Seja no trajeto rumo aos Estados Unidos, seja no retorno decorrente das deportações, as organizações criminosas aproveitam-se das vulnerabilidades da população migrante de modo a contribuir com sua lucratividade ilícita. Nesse sentido, a presente análise busca demonstrar como a política migratória restritiva de Donald Trump contribui para diversas frentes do crime organizado. Serão abordados os mecanismos legais, políticos e discursivos utilizados pelo governo estadunidense para criminalizar as imigrações, assim como as estratégias de grupos criminosos na América Central e no México para explorar, a seu favor, a conjuntura hostil que enfrentam os migrantes latinos. Procura-se, então, ilustrar como a restrição se configura como uma aliada importante da economia criminal. A política migratória do segundo governo Trump Ao definir a nova postura dos Estados Unidos frente aos imigrantes, o governo de Donald Trump optou por uma perspectiva securitizada, isto é, uma abordagem que atrela a política migratória à política de “segurança nacional, sócio-cultural e laboral” (Mármora, 2010). A partir desse modelo de governança das migrações, qualquer pessoa não nacional passa a ser vista como uma potencial ameaça ao país receptor, seja por um envolvimento pré-concebido à criminalidade, seja por diferenças culturais, seja pela suposta “invasão” ao mercado de trabalho local. Sendo assim, o discurso político passa a criminalizar pessoas migrantes, particularmente aquelas indocumentadas, tornando uma mera irregularidade administrativa um crime “incorrigível” (De Genova, 2020). Por meio desta retórica alarmista, fabrica-se um sentimento de medo na população local e legitimam-se condutas agressivas pelos agentes de imigração, restrições de direitos fundamentais e deportações em massa. Dentre as medidas mais polêmicas do governo Trump, está o maior papel atribuído ao ICE na política anti-migração. Para atingir o objetivo estabelecido pela Casa Branca de 3 mil apreensões por dia, houve uma intensificação das chamadas ICE raids, referente às operações de grande porte da agência para fins de detenção e deportação, que ocorrem especialmente em cidades democratas, como Los Angeles, Washington D.C. e Nova Iorque. Desde janeiro, essas mobilizações estão cada vez mais ostensivas e mais violentas, tendo como alvos lugares antes considerados invioláveis, como escolas, igrejas e hospitais (O’Herron, 2025). Além disso, no âmbito orçamentário, o novo pacote fiscal de Trump — o One Big Beautiful Bill Act (OBBBA) — realoca mais de US$ 75 bilhões até 2029 para o ICE, representando um aumento de 300% por ano em relação ao planejamento anual anterior (O’Herron, 2025). Ao mesmo tempo, o OBBBA prevê um aumento de apenas 14% para os tribunais de imigração, revelando uma preferência pela expulsão do que pela legalização. Para além desta intensificação das atividades do ICE, outras políticas são igualmente preocupantes. A retórica de criminalização das migrações resulta na corrosão de mecanismos institucionais, refletida em detenções que atingem até mesmo migrantes com vistos válidos, beneficiários de status de proteção temporária1, residentes permanentes e mesmo cidadãos norte-americanos de origem hispânica (O’Herron, 2025; Uribe, 2025; Levin, 2025). Além dessas prisões arbitrárias, a Remain in Mexico Policy2 representa uma clara violação do art. 14 da Declaração Universal de Direitos Humanos (Nações Unidas, 1948) e do art. 32 da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (Nações Unidas, 1951), que determinam que toda pessoa tem o direito de procurar refúgio em outro país. A política em questão obriga solicitantes de refúgio que chegam na fronteira sul dos EUA a permanecerem, no aguardo da tramitação de seu pedido, em solo mexicano (American Immigration Council, 2024), onde não possuem rede de apoio ou garantias legais, insuflando ainda mais sua situação de vulnerabilidade. Dessa forma, percebe-se que a atual política migratória estadunidense tem como eixo a fragilização dos direitos das pessoas migrantes. Segundo De Genova (2020), seria justamente essa precarização que contribui para a “deportabilidade” dessa população. Nesse âmbito, dois aspectos valem ser destacados. Primeiro, violações de direitos ocorrem até durante as deportações, quando países como El Salvador, Guatemala e Honduras aceitam receber aviões com indivíduos de outras nacionalidades sem assumir sua reintegração. Nesse contexto, os migrantes deportados são obrigados a retornarem por fins próprios, configurando “deportações incompletas” (MSF, 2025). Segundo, ao estabelecerem a deportação como prática corriqueira, o governo americano cria uma fonte inesgotável de mão de obra descartável (De Genova, 2020). A irregularidade e a iminência da deportação convergem para que os salários dos migrantes sejam baixos. Contudo, a mera existência de oportunidades de trabalho é determinante para que centro-americanos continuem a optar pelos Estados Unidos como destino. Portanto, a deportação cumpre simultaneamente uma função de poder e coação, ao mesmo tempo em que se converte em um mecanismo de exploração econômica. A exploração de migrantes pelo crime organizado Infelizmente, a política migratória estadunidense não contribui somente para a estratégia eleitoral de Donald Trump, tornando-se também uma ferramenta lucrativa para o crime organizado. As vulnerabilidades socioeconômicas dos centro-americanos e os milhares de quilômetros entre suas origens e a suposta “terra da liberdade” criam um ambiente ideal para a articulação de redes ilícitas. Os grupos criminosos se aproveitam do desespero das pessoas que estão em busca de uma vida mais segura e operam esquemas de assaltos e de contrabando, além de explorarem as baixas condições financeiras dos migrantes para recrutamento. Além disso, as restrições ao direito de solicitar refúgio, como a Remain in Mexico Policy, assim como as deportações incompletas, expõem os migrantes, por períodos desnecessariamente prolongados, à ação de gangues e cartéis, por quem são vitimizados repetidamente. A decisão de deixar a América Central, rumo aos EUA, por meios e vias não convencionais, traz consigo sérias implicações para a integridade física e mental de quem a toma, sendo uma travessia extremamente arriscada, sem garantia de sucesso. O trajeto, que necessariamente perpassa mais de 3 mil quilômetros em território mexicano, muitas vezes envolve La Bestia, uma rede de trens de carga que cruza o México. Os migrantes viajam por dias em cima dos vagões, onde passam noites sem dormir, sofrem com a fome e correm o risco de quedas (Poblete; Pacheco, 2022). Ademais, economizam milhares de dólares para pagar os contrabandistas, conhecidos como “coiotes”, na fronteira estadunidense. Sabendo disso, nas proximidades de albergues e paradas do trem La Bestia, as gangues mexicanas planejam assaltos contra os centro-americanos, além de golpes e extorsões, já que sabem que eles não possuem outra opção a não ser pagar para continuar a viagem (Poblete; Pacheco, 2022). A fim de escapar dessas constantes violações de direitos e chegarem mais rápido ao destino almejado, a figura dos coiotes emerge como peça central para a travessia, ainda que sua atuação, longe de representar proteção, se insira em um contexto de perpetuação da exploração e da violência. Na região, o contrabando de migrantes se tornou uma indústria extremamente lucrativa para o crime organizado. É estimado que, somente no cruzamento entre o México e os EUA, o tráfico de migrantes indocumentados represente um ganho anual de US$ 12 bilhões para grupos criminosos (Toledo-Leyva, 2024). E, à medida que a política migratória norte-americana se torna mais restritiva, o fluxo de pessoas não diminui, mas se desloca para rotas mais perigosas, com o intuito de contornar o controle fronteiriço (Rojas, 2025; Poblete; Pacheco, 2022). Nesse quadro, com valores crescentes de US$ 5 mil a US$ 20 mil por pessoa, os coiotes adotaram novas estratégias desde o início do governo Trump, como enviar migrantes sozinhos para áreas inóspitas e orientá-los apenas por telefone — prática que reduz custos operacionais e amplia os lucros para o crime, porém que aumenta o risco de morte para os viajantes (Toledo-Leyva, 2024; Rojas, 2025). Assim, os mais poderosos cartéis mexicanos, como de Sinaloa e de Jalisco Nova Geração, disputam pelo controle do tráfico não só de armas e de drogas, como de migrantes (Toledo-Leyva, 2024). Entretanto, para um número cada vez maior de centro-americanos, esse não é o último contato com o crime organizado. As deportações incompletas conduzidas entre os Estados Unidos e governos aliados, como o do presidente Nayib Bukele em El Salvador, expõem os retornados aos mesmos mecanismos de exploração. De forma geral, ao serem detidos e deportados, os migrantes não conseguem levar consigo seus pertences (American Immigration Council, 2016), ou seja, ao serem deixados nesses países intermediários, são obrigados a realizar a viagem de retorno sem dinheiro e sem proteção. As organizações criminosas se aproveitam da situação para coagi-los a trabalharem forçadamente ou os expulsam para territórios de gangues rivais, onde podem ser torturados ou mesmo aliciados (MSF, 2025). Dessa forma, os migrantes, que já foram extorquidos e violentados na ida, podem ser revitimizados na volta. Contudo, apesar do sofrimento, a oferta contínua de empregos informais nos Estados Unidos — ainda que mal remunerados — estimula a emigração, inclusive daqueles que já sofreram deportação, reiniciando o ciclo de violência e de exploração. Considerações finais Com base neste cenário, percebe-se que o viés securitário da política migratória dos Estados Unidos, intensificado desde o início do segundo mandato de Donald Trump, cria uma verdadeira indústria da deportação que se retroalimenta. Ao estabelecer uma narrativa de criminalização das migrações, o governo estadunidense cria um estigma contra estrangeiros — em especial, latinos — residentes em seu território, legitimando atentados contra os direitos das pessoas migrantes: seja pela abordagem agressiva do ICE, seja pelas péssimas condições em centros de detenção, seja pela desumanização durante as deportações. Ao mesmo tempo, a economia americana demanda amplamente a mão de obra barata dos migrantes indocumentados. Logo, seguindo o roteiro determinado pela burocracia estadunidense, os centro-americanos, ao fugir da violência estrutural em seus países de origem, se arriscam para acessar as oportunidades ao Norte, perpassando rotas controladas pelo crime organizado. Os Estados Unidos não são responsáveis por resolverem os problemas internos que levam as populações centro-americanas a migrarem, mas são responsáveis pela forma como reagem a esses fluxos migratórios. A abordagem escolhida historicamente pelos presidentes americanos, e reforçada agora por Trump, não impede a entrada irregular. A tentativa de estreitamento de fronteiras apenas desloca as migrações para rotas clandestinas mais perigosas, onde os migrantes dependem ainda mais de coiotes, associados aos cartéis mexicanos. Dessa forma, uma política migratória humanitária, que respeite o Direito Internacional e os direitos da pessoa migrante, pode configurar-se como uma alternativa mais adequada para contornar tais malefícios. Por meio da mudança de paradigma, saindo da securitização, os Estados Unidos, e mesmo outros países receptores, poderiam se beneficiar com ganhos econômicos e fiscais, enquanto o crime organizado perderia uma fonte de lucro. Em vez de fortalecerem políticas de intimidação e de deportação, recursos poderiam ser destinados à “conferência de solicitações de refúgio, processamento de pedidos de imigrações regulares, contratação de juízes de migração” (O’Herron, 2025), à regularização de migrantes indocumentados, com tempo suficiente de residência, e ao desenvolvimento de políticas públicas de integração sócio-laboral. No Brasil, por exemplo, a Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia, decretada no dia 8 de outubro, reconhece a população migrante como “propulsora do desenvolvimento econômico e social” e tem como base a “promoção e à proteção de seus direitos” (Brasil, 2025), sendo essencialmente humanitária. Nessa conjuntura, a população migrante poderia trabalhar legalmente, contribuindo com mais renda, mais consumo e mais impostos, e as organizações criminosas teriam menos vítimas para extorquir e violentar. Portanto, uma política migratória mais robusta condiciona uma estratégia eficaz de segurança e de desenvolvimento dado seu duplo papel: o de promoção de direitos e o de contenção de atividades criminosas que exploram a vulnerabilidade de pessoas migrantes. Notas 1. Status de proteção temporária é um mecanismo legal americano que permite que indivíduos possam residir e trabalhar nos Estados Unidos quando as circunstâncias em seus países de origem são consideradas extraordinárias, como guerras ou desastres naturais. O objetivo é evitar que essas pessoas sejam obrigadas a retornar para onde sua integridade física esteja ameaçada (Marcos, 2025). 2. A Remain in Mexico Policy foi criada e instituída no primeiro mandato de Trump. Ao assumir, o ex-presidente Joe Biden a suspendeu, mas uma decisão judicial depois reinstituiu a medida no final de 2021. Ela passou por algumas reformulações, mas continuou com a necessidade de permanência em solo mexicano. Ao assumir o segundo mandato em 2025, Donald Trump manteve a política (American Immigration Council, 2024). Bibliografia ALVAREZ, P. ICE has deported nearly 200K people since Trump returned to office, on track for highest level in a decade. CNN Politics, 2025. Disponível em: https://edition.cnn.com/2025/08/28/politics/ice-deportations-immigrants-trump. Acesso em: 20 set. 2025. AMERICAN IMMIGRATION COUNCIL. Deported with No Possessions. American Immigration Council, dez. 2016. Disponível em: www.americanimmigrationcouncil.org/report/deported-no-possessions/. Acesso em: 7 oct. 2025. AMERICAN IMMIGRATION COUNCIL. The ‘Migrant Protection Protocols’: an Explanation of the Remain in Mexico Program. American Immigration Council, fev. 2024. Disponível em: www.americanimmigrationcouncil.org/fact-sheet/migrant-protection-protocols/. Acesso em: 24 set. 2025. BRASIL. Decreto nº 12.657, de 7 de outubro de 2025. Institui a Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia. Diário Oficial da União: Brasília, ed. 192, p. 8, 2025. Disponível em: www.in.gov.br/web/dou/-/decreto-n-12.657-de-7-de-outubro-de-2025-661037913. Acesso em: 11 oct. 2025. CAMERON, C.; ALEAZIZ, H. Over 60,000 Are in Immigration Detention, a Modern High, Records Show. The New York Times, 2025. Disponível em: www.nytimes.com/2025/08/11/us/politics/immigration-detention-numbers.html. Acesso em: 20 set. 2025. DE GENOVA, N. O poder da deportação. Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana (REMHU), Brasília, v. 28, n. 59, ago. 2020, p. 151-160. MARCOS, C. M. What is temporary protected status and who is affected by Trump’s crackdown?. The Guardian, 21 maio 2025. Disponível em: https://www.theguardian.com/us-news/2025/may/20/what-is-temporary-protected-status. Acesso em: 27 set. 2025. MÁRMORA, L. Las politicas de gobernabilidad migratória. Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana (REMHU), Brasília, ano XVIII, n. 35, jul./dez. 2010, p. 71-92. MSF. 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