• Destaques

    Anna Luiza Fagundes   “Diante dos olhos do mundo, o Brasil deu um recado a todos os candidatos a autocratas e àqueles que os apoiam: nossa democracia e nossa soberania são inegociáveis” (Brasil, 2025). Com essa declaração, feita na abertura da 80ª Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), o presidente Lula reafirmou dois valores centrais da política externa brasileira: a democracia e a soberania. Ao destacar esses elementos diante da comunidade internacional, o governo busca ampliar sua credibilidade externa e projetar o país como um ator confiável e comprometido com valores que vêm sendo gradualmente negligenciados no sistema internacional. O discurso de Lula foi uma resposta direta às recentes investidas do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que impôs tarifas de importação de 50% a produtos brasileiros (Martins, 2025) e sanções a autoridades nacionais, por meio da Lei Magnitsky e do cancelamento de vistos. Diferentemente das medidas aplicadas a outros países, tais ações possuem forte motivação política, sobretudo em razão da condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro — aliado de Trump — por tentativa de golpe de Estado e outros crimes. Diante desse cenário, o governo brasileiro procura manter-se firme, defendendo a soberania nacional como prerrogativa para tratar de assuntos internos e a democracia como princípio inviolável do Estado, a ser protegido de ataques e de violações institucionais.  Paralelamente, o uso retórico desses valores também atua como instrumento de mobilização interna em torno da aprovação do terceiro mandato de Lula. A partir de julho, quando as tarifas adicionais foram anunciadas, a avaliação positiva do governo apresentou tendência de alta, alcançando em outubro seu maior patamar, em que aprovação (48%) apresentou empate técnico com a desaprovação (49%), segundo a pesquisa Genial/Quaest (Porto, 2025).  Desse modo, observa-se como o governo brasileiro instrumentaliza princípios tradicionalmente associados à diplomacia nacional – ainda que sob nova formulação – como forma de reforçar sua credibilidade internacional e, simultaneamente, mobilizar apoio doméstico. Esse movimento constitui uma reação às pressões norte-americanas e encontra síntese na abertura da AGNU, momento em que o presidente brasileiro reafirma, perante o mundo, as prioridades e os fundamentos da política externa do país no contexto atual.    “Seguiremos como nação independente e como povo livre de qualquer tipo de tutela” “Seguiremos como nação independente e como povo livre de qualquer tipo de tutela” (Brasil, 2025), continua o presidente Lula em seu emblemático discurso na AGNU. Essa fala marca mais uma menção à defesa da soberania nacional, mesmo sem citação direta ao termo, em contraposição a interferências externas. Contudo, é importante destacar que o conceito de soberania tem sido empregado pelo governo como sinônimo de um princípio historicamente central na diplomacia brasileira: a autonomia. Pinheiro e Lima (2018) ressaltam que esses dois valores não devem ser confundidos, visto que a soberania é um atributo inerente a todos os Estados, enquanto a autonomia diz respeito ao grau de liberdade de ação de cada um deles no sistema internacional. Nesse sentido, as autoras recorrem ao conceito formulado por Jaguaribe (1969) e por Puig (1980), segundo o qual a autonomia corresponde à capacidade de um Estado tomar decisões próprias, de forma consciente e deliberada, dentro dos limites impostos pela realidade internacional — ou seja, à combinação entre a existência de condições externas que possibilitem escolhas livres (permissibilidade internacional) e a vontade política de exercê-las (viabilidade nacional), mesmo diante de constrangimentos externos. Esse termo, entretanto, assume diferentes interpretações conforme os interesses políticos e as posições dos grupos que ocupam o poder. Dessa forma, a confecção do slogan “Do lado do povo brasileiro” e das peças publicitárias “Brasil soberano” e “O Brasil é dos brasileiros” (Verdélio, 2025) pode ser compreendida como uma tentativa de reafirmar o país como um ator autônomo, capaz de julgar internamente eventuais violações às suas leis e de preservar a independência de suas instituições frente às ameaças de sanções realizadas pelo governo estadunidense. A soberania, desse modo, atua como símbolo político e como marcador retórico de resistência a constrangimentos internacionais. Sua sustentação está associada a outros princípios tradicionais da política externa brasileira, como a autodeterminação dos povos e a não intervenção (Brasil, [2025]). Como destaca Figueira (2014):    No Brasil esses valores [direitos humanos, democracia, meio ambiente, desnuclearização, liberalização econômica, entre outros] passam a conviver com tradicionais princípios defendidos pela diplomacia, tal como a autodeterminação dos povos, que privilegia a soberania na definição dos rumos que os países pretendem trilhar, ou seja, o respeito a não-intervenção nos assuntos domésticos de outros Estados, fator chave para a garantia da estabilidade do sistema internacional (p. 80-81).   Referir-se a princípios consolidados da tradição diplomática, portanto, cumpre a função de reafirmar o status do Brasil como um ator confiável, capaz de inspirar credibilidade internacional e atrair alianças estratégicas. A credibilidade, contudo, é um atributo relacional, que depende tanto da percepção externa quanto de comportamentos consistentes que demonstrem a coerência das ações do Estado. Nesse sentido, Fangfei (2022) enfatiza que a credibilidade é um produto da socialização nacional, permeado pela subjetividade e pela relatividade, e influenciado por valores, ideias e emoções dos tomadores de decisão.  Assim, a forma como a burocracia brasileira tem articulado seus valores e seus princípios tradicionais, projetando força e coerência no cenário internacional, contribui para alavancar a credibilidade do país. Mesmo que essa postura possa parecer desproporcional às suas capacidades materiais e econômicas diante dos Estados Unidos, ela está em consonância com uma política externa de Estado historicamente coerente. Por conseguinte, essa combinação de valores — jurídico (igualdade soberana), político (autonomia decisória) e simbólico (credibilidade e legitimidade moral) — constitui boa parte do soft power brasileiro contemporâneo. Entretanto, o panorama global demonstra cada vez mais a necessidade de dispor de meios materiais como demonstração de poder, o que impõe um claro limite à atratividade do Brasil.  Já o princípio da democracia é afirmado como elemento central no momento de consolidação do Estado brasileiro enquanto regime democrático, sendo constantemente associado a temas emergentes da agenda internacional, como direitos humanos, meio ambiente, pacifismo e desenvolvimento sustentável (Figueira, 2014). Em 2025, essa ênfase ganha novo sentido à vista de um cenário marcado por ameaças internas à ordem democrática e pela ascensão de governos e de medidas autoritárias em diferentes partes do mundo. Nesse contexto, o governo brasileiro busca projetar-se como um defensor da democracia, apresentando-se como aquele que preservou o país das amarras do autoritarismo e confirmando, ainda que retoricamente, seu compromisso com valores democráticos tanto no plano doméstico quanto no internacional.   “Atentados à soberania, sanções arbitrárias e intervenções unilaterais estão se tornando a regra” As décadas que sucederam a redemocratização brasileira revelam um crescimento gradual da influência de fatores internacionais sobre a formulação da política interna. Essa tendência decorre da maior pluralidade de atores interessados em exercer influência política e de uma integração cada vez mais estreita entre as agendas doméstica e externa. Tal movimento foi acompanhado da ampliação do papel do presidente na condução da política externa, reduzindo o tradicional insulamento decisório do Itamaraty e aproximando as decisões diplomáticas das disputas políticas internas (Cason; Power, 2009). À luz dessa aproximação, os acontecimentos recentes tornam-se mais compreensíveis. Em julho de 2025, o presidente Donald Trump assinou uma ordem executiva que impôs uma tarifa adicional de 40% sobre produtos brasileiros, elevando a alíquota total para 50%. Embora a medida tenha incluído uma longa lista de exceções, ela foi justificada sob o argumento de que o Brasil representaria uma “ameaça incomum e extraordinária à segurança nacional, à política externa e à economia dos Estados Unidos” (Martins, 2025).  Por trás dessa narrativa, contudo, estavam as tensões em torno do julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e das ações do Supremo Tribunal Federal (STF) voltadas à regulação das mídias sociais. Além desses fatores, a cúpula dos BRICS, que ocorreu no Rio de Janeiro, também é apontada como uma fonte de motivação, devido às diversas críticas tecidas às atuais políticas norte-americanas e em razão dos debates sobre a desdolarização. Na abertura da Assembleia Geral da ONU, o presidente Lula reagiu afirmando que “não há justificativa para as medidas unilaterais e arbitrárias contra nossas instituições e nossa economia” (Brasil, 2025), em clara referência às alegações de Trump. Além das tarifas, as sanções se estenderam às autoridades brasileiras. Ministros do STF e integrantes do governo federal tiveram seus vistos para os Estados Unidos revogados. O ministro Alexandre de Moraes, relator do julgamento da tentativa de golpe de Estado, e sua família foram alvo da Lei Magnitsky, que prevê punições a indivíduos acusados de corrupção ou de violações de direitos humanos (Toledo, 2025). As medidas provocaram forte reação nacional, com críticas generalizadas à postura estadunidense. No plano doméstico, o governo Lula atravessava um período de desgaste político. Em maio, a pesquisa Genial/Quaest apontava 57% de desaprovação e 40% de aprovação (Porto, 2025). O cenário negativo era alimentado por denúncias de corrupção no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e por críticas à política fiscal do governo. Em resposta, o Planalto intensificou sua estratégia de comunicação, concentrando-se na defesa da taxação de grandes fortunas como medida de justiça social e tributária.  Contudo, a guinada no cenário político ocorreu com a reação às sanções norte-americanas, amplamente rejeitadas pela opinião pública. Segundo levantamento da Futura/Apex, 73% dos brasileiros, em julho, discordavam das tarifas impostas por Trump (Moliterno, 2025), enquanto parte da oposição chegou a celebrá-las. Esse contraste permitiu ao governo federal transformar o episódio em um catalisador de mobilização patriótica, articulando os discursos de soberania nacional e de defesa da democracia como símbolos de resistência e de união nacional.    “No futuro que o Brasil vislumbra não há espaço para a reedição de rivalidades ideológicas ou esferas de influência” Essa frase também proferida no discurso de Lula sintetiza os dois eixos discutidos até então: a busca pela credibilidade internacional e a legitimação interna. Por um lado, o presidente procura projetar o Brasil como um país independente das zonas de influência das grandes potências, defendendo um posicionamento pautado pelo pluralismo diplomático e pela diversificação comercial. Ao rejeitar as rivalidades ideológicas, Lula propõe uma inserção autônoma e aberta ao diálogo com múltiplos atores — especialmente relevante diante da crescente polarização global entre Estados Unidos e China.  Por outro lado, essa rejeição às “rivalidades ideológicas” pode ser lida também como um aceno à necessidade de “pacificação” do cenário doméstico, marcado por divisões políticas profundas. Ainda assim, ao mencionar uma “extrema direita subserviente” (Brasil, 2025), o discurso pode alimentar traços do tradicional enquadramento “nós contra eles”, o que reforça a mobilização de identidades políticas antagônicas no debate interno.  Essa busca por autonomia internacional tem se materializado na ampliação de mercados e na reaproximação com parceiros estratégicos já consolidados. O estreitamento de relações com países dos BRICS, da Europa, com o México, Canadá e o Sudeste Asiático exemplifica o esforço de diversificação (Botão; Galhumi; Dalla, 2025). Sobre esse assunto, o assessor especial do presidente da República para Assuntos Internacionais, Celso Amorim, declarou que diante das ações unilaterais dos Estados Unidos, é preciso diversificar as parcerias comerciais e não se subordinar à área de influência do país (León, 2025). Paralelamente, no plano doméstico, observa-se o chamado efeito rally around the flag — conceito da Ciência Política que descreve o aumento temporário da aprovação de líderes em contextos de crise, especialmente quando há ameaças externas ou situações percebidas como emergenciais (Political Dictionary, 2024). De acordo com o idealizador do conceito, o evento que desencadeia a “união em torno da bandeira” deve possuir natureza internacional, impacto nacional e caráter dramático (Political Dictionary, 2024) – elementos presentes nas recentes tensões com os Estados Unidos.  Desse modo, o crescimento da aprovação do governo pode ser parcialmente explicado por esse fenômeno, ainda que persista uma forte polarização ideológica. Apesar de as ações afetarem mais diretamente alguns setores, as justificativas explicitadas por Trump disseminam a ideia de que há uma ameaça de interferência estadunidense em assuntos de exclusividade doméstica. Assim, torna-se evidente que o governo brasileiro utiliza estrategicamente princípios tradicionais da diplomacia, como recursos retóricos, para alcançar objetivos políticos complementares: fortalecer a imagem internacional do país a fim de viabilizar a diversificação das parcerias, e consolidar a coesão interna em torno de um ideal de proteção nacional e de resistência a interferências externas.   Considerações finais Todo discurso político carrega metas práticas e estratégicas e o caso analisado não foge a essa lógica. Mais do que avaliar os méritos ou as consequências do método adotado pelo governo federal, esta análise buscou compreender as intenções subjacentes à instrumentalização dos recursos retóricos mobilizados pelo presidente Lula. Tais estratégias remetem à defesa de valores históricos da diplomacia brasileira, que se revelaram particularmente funcionais no contexto político e internacional contemporâneo, servindo de base para a construção de legitimidade e credibilidade. No âmbito interno, o efeito rally around the flag demonstrou ser temporário e não rendeu vitórias permanentes ao governo, com pesquisas da Quaest indicando que em novembro a aprovação estagnou (Stabili; Turioni; Petró, 2025). Ademais, medidas sociais e a deflação de alimentos também contribuíram para a melhora da percepção acerca do terceiro mandato de Lula. Apesar disso, o presidente aposta em uma comunicação assertiva para reverberar na população uma espécie de patriotismo, posicionando o governo como maior defensor dos interesses nacionais, em contraste com uma oposição retratada como alinhada a interesses estrangeiros.  Em síntese, o discurso de Lula na AGNU ilustra a forma como a política externa é mobilizada não apenas como instrumento de ação internacional, mas também como recurso simbólico de coesão interna. A convergência entre democracia e soberania revela-se, portanto, um elemento central na tentativa de reposicionar o Brasil no cenário global e de reforçar, perante a sociedade, a imagem de um Estado forte, autônomo e democrático.   Referências BOTÃO, G.; GALHUMI, R; DALLA, R. A diversificação de parcerias comerciais do Brasil em meio à guerra tarifária de Trump. Observatório de Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil, 2025. Disponível em: https://opeb.org/2025/09/18/a-diversificacao-de-parcerias-comerciais-do-brasil-em-meio-a-guerra-tarifaria-de-trump/. Acesso em: 13 out. 2025.   BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2025]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 18 nov. 2025.   CASON, J. W.; POWER, T. J. Presidentialization, Pluralization, and the Rollback of Itamaraty: Explaining Change in Brazilian Foreign Policy Making in the Cardoso-Lula Era. International Political Science Review, v. 30, n. 2, p. 117–140, mar. 2009.   FANGFEI, J. Understanding International Credibility and Its Changes: Taking China as an Example. East Asian Affairs, v. 02, n. 01, jun. 2022.   FIGUEIRA, A. R. A promoção da democracia no legado diplomático brasileiro. Revista ORG & DEMO, v. 15, n. 1, 31 dez. 2014.   LEÓN, L. P. Amorim diz que diversificar comércio é a nova independência do país. Agência Brasil, Brasília, 12 ago. 2025. Internacional. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2025-08/amorim-diz-que-diversificar-comercio-e-nova-independencia-do-pais. Acesso em: 14 out. 2025.   MOLITERNO, D. Pesquisa: 73% dos brasileiros não concordam com tarifas de Trump. CNN Brasil, São Paulo, 17 jul. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/pesquisa-73-dos-brasileiros-nao-concordam-com-tarifas-de-trump/. Acesso em: 14 out. 2025.    MARTINS, R. Trump assina decreto que impõe tarifa de 50% ao Brasil, mas com várias exceções. G1, São Paulo, 30 jul. 2025. Economia. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2025/07/30/trump-assina-decreto-que-impoe-tarifa-de-50percent-ao-brasil.ghtml. Acesso em: 12 out. 2025.   PINHEIRO, L.; LIMA, M. R. S. DE. Between Autonomy and Dependency: the Place of Agency in Brazilian Foreign Policy. Brazilian Political Science Review, v. 12, n. 3, 11 out. 2018.   BRASIL. Presidência da República. Discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na abertura do Debate Geral da 80ª Assembleia Geral das Nações Unidas. Brasília, 23 set. 2025. Disponível em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos-e-pronunciamentos/2025/09/discurso-do-presidente-lula-na-abertura-do-debate-geral-da-80a-assembleia-geral-das-nacoes-unidas. Acesso em: 12 out. 2025.     PORTO, D. Quaest: com 48%, aprovação do governo Lula chega ao melhor patamar em 2025. CNN Brasil, São Paulo, 8 out. 2025. Política. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/quaest-com-48-aprovacao-do-governo-lula-chega-ao-melhor-patamar-em-2025/. Acesso em: 12 out. 2025.   RALLY Around the Flag. Political Dictionary, 2024. Disponível em: https://politicaldictionary.com/words/rally-around-the-flag/. Acesso em: 14 out. 2025.    STABILI, A.; TURIONI, F.; PETRÓ, G. Avaliação de Lula para de melhorar, diz Quaest; 50% desaprovam governo, e 47% aprovam. G1, São Paulo, 12 nov. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/11/12/quaest-avalicao-governo-lula.ghtml. Acesso em: 18 nov. 2025.   TOLEDO, L. F. Moraes e familiares podem recorrer de punições da Lei Magnitsky? BBC News Brasil, Londres, 9 out. 2025. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/czjvp2dk1njo. Acesso em: 13 out. 2025.      VERDÉLIO, A. Governo federal muda slogan para “Do lado do povo brasileiro”. Agência Brasil, Brasília, 26 ago. 2025. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2025-08/governo-federal-muda-slogan-para-do-lado-do-povo-brasileiro. Acesso em: 18 nov. 2025.

  • Destaques

    Cecília Dias   U.S. President Donald Trump’s policies and speeches underscore a tendency to designate criminal organizations as terrorist groups, and this raises both conceptual and practical questions about its implications (U.S. Department of State, 2025b; CNN Brazil, 2025). Mexico, Venezuela, and El Salvador have experienced this at the beginning of the year, with the issuance of a presidential order signaling this further tendency against “narcoterrorism” targeting cartels (The White House, 2025a), and currently, Brazilian syndicates — Comando Vermelho (CV) and Primeiro Comando da Capital (PCC) — are under Trump’s crosshairs. Although Latin America is notably vulnerable to Trump’s unilateral and coercive agenda — as analyzed by Dias (2025) — the practical effect of labeling criminal groups as terrorists goes beyond mere classification. It heightens hemispheric insecurity and paves the way for broader sanctions and military interventions, as seen escalating in Venezuela. In this sense, this analysis synthesizes the conceptual conflict between organized crime and terrorism and examines the implications of potentially designating the CV and PCC as terrorist organizations. Before an increasingly authoritarian U.S. administration, Washington’s concerns lie less with semantics than with exerting maximum pressure on security threats.   Between crime and terror… What distinguishes a terrorist group from an organized crime syndicate hinges on operational characteristics and political interests. In academia, definitions remain contested, but in broad terms, organized crime refers to structurally organized groups focused on profit from illicit activities, while terrorism denotes geographically dispersed violence aimed at political or ideological objectives, by state or non-state actors (Polleto, [n.d.]; Vaz, [n.d.]; Hoffman, 2017). Internationally, the United Nations (UN) has no single definition of terrorism. Over the past century, however, the UN has produced various universal conventions regarding the protection and fight against terrorism that have shaped today’s international understanding — whether signaling its activities, whether its financing — but without any binding mechanism. In this sense, the strategy of highlighting terrorism in many resolutions brought attention to Resolution 49/60, labeling ‘activities of a terrorist nature’ as:   Acts intended or financed to provoke a state of terror in the general public, a group of individuals or particular persons for political purposes are in any circumstance unjustifiable, whatever considerations of a political, philosophical, ideological, racial, ethnic, religious or any other nature that may be invoked to justify them (United Nations, 1994) . This definition captures the main aspects of terrorist acts and rests mostly on four key criteria: intent, motivation, targets, and perpetrators, constituting a distinct form of violence (Polleto, [n.d.]). By contrast, organized crime, as defined by the 2000 Palermo Convention, refers to a structured group of three or more persons, existing over a period of time and acting together with the aim of committing one or more serious crimes or offenses, in order to obtain, directly or indirectly, a financial or other material benefit (UNODC, 2025). These conceptual distinctions illustrate that, despite organized crime having a broader accepted category, terrorism has no universal definition. This heterogeneity implies that each country has to develop tailored domestic legal frameworks to promote effective and non-interventionist international cooperation.  In addition, while both phenomena can occasionally overlap in their tactics or activities, equating them simply because of such similarities fails to recognize their fundamentally different objectives — political and ideological for terrorism and material gain for organized crime. Rhetoric that merges the two into a single label risks distorting their true nature and undermines efforts to craft nuanced, effective enforcement strategies adapted to each context (Polleto, [n.d.]). However, U.S. current foreign policy increasingly seeks to classify Latin American criminal organizations as terrorists, based on a revamped doctrine in the “war against cartels”. Since President Trump assumed office, U.S. national security policies enabling intervention abroad have become considerably more assertive, increasing the scope for regional political insecurity. Guided by the administration’s “peace through strength” doctrine, there has been a visible expansion in the overseas deployment of U.S. military forces, reinforced by executive orders and measures that further solidify this direction (The White House, 2025a; Al Jazeera, 2025). Notably, procedures targeting organizations like the Venezuelan Tren de Aragua syndicate and Mexican cartels have grown increasingly punitive, with these groups being labeled as terrorist threats to justify extraterritorial military actions and sanctions. In this context, political and ideological agendas motivate such interventions. The extensive reach of these measures, together with the significant deterrence power wielded by the U.S. in the region, significantly curtails the ability of states to assert their own legal frameworks — fueling debates over the boundaries (and extrapolation) of state sovereignty. The so-called “eradication of cartel threat”, e.g., by the deployment of the USS Gerald R. Ford, the world’s largest aircraft carrier, near Venezuela is widely perceived as breaching the principles of non-intervention and violating international law, regardless of stated counternarcotics objectives (G1, 2025). Comparable dynamics are evident in Brazil with the emergence of this categorical misconception, where domestic policies increasingly align with U.S. approaches: it is possible to see a growing tendency to classify major criminal organizations as terrorists, even with their distinctions (Gallas, 2025). Firstly, however, it is necessary to undertake the domestic approaches under organized crime and terrorism in both states.   …a space for instability In the United States, both international and domestic terrorism are detailed in 18 U.S. Code § 2331 and were significantly expanded by the USA PATRIOT Act after the September 11 terrorist attacks (Legal…, 2025). U.S. law characterizes terrorism as dangerous acts against human life intended to intimidate or coerce civilian populations, or to influence government policy through intimidation, mass destruction, murder, or kidnapping (Cornell Law School, 2021). The act also broadened counterterrorism efforts, enhancing surveillance, intelligence sharing, and “preventive” detention even for individuals beyond its borders.  Furthermore, the Department of the Treasury’s Office of Foreign Assets Control (OFAC) and the State Department have the mandate to classify certain groups as Specially Designated Global Terrorists (SDGT) or Foreign Terrorist Organizations (FTO) — or both —, which has increased since Trump took office (U.S. Department of State, 2025a; U.S. Department of the Treasury, 2025). Organized crime falls under the Racketeer Influenced and Corrupt Organizations Act (RICO), targeting organizations engaged in extortion, fraud, and other continuing criminal activities through federal proceedings and interagency cooperation (FBI, 2025). By contrast, Brazil regulates terrorism and organized crime through two main legislative frameworks: the Antiterrorism Law (Law No. 13,260/2016) and the Criminal Organization Law (Law No. 12,850/2013). The Antiterrorism Law, created to prevent attacks on the 2016 Olympics, punishes acts intended to provoke generalized social terror based on ideological, religious, or discriminatory motivation (Brasil, 2013). Meanwhile, the Criminal Organization Law defines organized crime as an association of four or more persons, structured with division of tasks, aiming to obtain advantages through criminal offenses, including transnational crimes, and regulates investigative and punitive procedures (Brasil, 2016). Within Brazil, the Comando Vermelho (CV) and Primeiro Comando da Capital (PCC) are the largest criminal factions, both originating within prison systems. The CV emerged in the 1970s in Rio de Janeiro’s Cândido Mendes prison to protect inmates during the military dictatorship and later turned to drug trafficking. The PCC was founded in 1993 in São Paulo prisons after the Carandiru massacre, initially to protect prisoners but later evolved into a structured criminal network dominating drug trafficking and other illicit activities. Both factions, which fall within the scope of Brazil’s Criminal Organization Law, have extended their influence nationwide and established hybrid governance in marginalized areas, facilitating their international expansion (FBSP, 2025; UCDP, 2024a; UCDP, 2024b). Recently, the deadliest police operation in Rio de Janeiro’s history, Contention Operation, occurred in October, aimed to contain the expansion of CV in the Penha and Alemao complexes. Although considered a success for political campaigning, the reality is that such operations serve more to perpetuate a cycle of violence, acting as a temporary fix rather than a solution, further inflating a warlike scenario in public opinion that shapes these actions. In this context, there has been a momentum in legislative proposals to intensify the repression against criminal organizations by officially classifying them as terrorist groups, accompanied by the emerging discourse of “narcoterrorism” (Rodrigues, 2025).  This shift seeks to broaden the legal and security framework to allow for harsher penalties and more aggressive policing strategies. However, equating organized crime with terrorism risks conflating fundamentally distinct phenomena, potentially undermining due process, overstating security threats, and straining Brazil’s democratic institutions. This debate highlights the tension between ensuring public security and preserving civil liberties, a balance that remains contested amid rising violence and political pressures, mainly if the U.S. classifies as such. If the U.S. designates the PCC and CV as terrorist organizations, Brazil would face complex and multidimensional legal repercussions. International cooperation mechanisms would enable financial sanctions against individuals and companies tied (even indirectly) to these factions, and allow asset freezes under U.S. jurisdiction. The Brazilian financial system would face heightened U.S. compliance pressures, forcing banks to adopt rigorous anti-terror controls to avoid penalties, while Brazilian firms with U.S. ties could face “material support” allegations if linked to these syndicates (U.S. Department of State, 2025a; U.S. Department of the Treasury, 2025). An SDGT label would freeze all U.S.-jurisdiction assets, impose broad transaction bans, and authorize derivative sanctions affecting support networks, potentially ensnaring Brazilian companies indirectly linked to these factions (CNN Brasil, 2025). A dual FTO/SDGT designation, a common U.S. strategy to maximize legal impact, would create a fundamental legal incompatibility, especially as the pace of legislative proposals increases, and would open the door to potential military interventions. Nonetheless, highlighting similarities between organized crime and terrorism, while ignoring the fundamental differences, impacts Brazil’s judicial autonomy and diplomatic engagement. In this regard, the Brazilian government maintains that the CV and PCC are criminal entities, not terrorists, and argues any U.S. classification would violate national sovereignty and set a dangerous precedent.   What’s next? Whether the CV and PCC will ultimately be designated as terrorist groups by the U.S. remains uncertain, but current trends favor such a move. However, its practical consequences highlight the far-reaching legal, financial, and diplomatic challenges Brazil would face under international pressure. A central point in this discussion primarily concerns the differing operational characteristics and political interests that distinguish these groups from traditional terrorist organizations. The advance of legislative proposals seeking to classify such criminal syndicates as terrorist entities raises critical questions about the adequacy of existing legal frameworks and their potential impacts.   It is true that combating organized crime through increasingly repressive means is necessary — but how would classifying them as terrorist groups facilitate this approach, since they are not equivalents?   References AL JAZEERA. US announces ‘Southern Spear’ mission as forces deploy to South America. Al Jazeera. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2025/11/14/us-announces-southern-spear-mission-as-forces-deploy-to-south-america. Acesso em: 14 nov. 2025.   BRASIL. Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 ago. 2013. Disponível em:https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm. Acesso em: 4 out. 2025.   BRASIL. Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016. Regulamenta o disposto no inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal, disciplinando o terrorismo, tratando de disposições investigatórias e processuais e reformulando o conceito de organização terrorista; e altera as Leis nºs 7.960, de 21 de dezembro de 1989, 12.850, de 2 de agosto de 2013. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 mar. 2016. Disponível em:https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13260.htm. Acesso em: 4 out. 2025.   CORNELL LAW SCHOOL. Terrorism. Legal Information Institute. Disponível em:https://www.law.cornell.edu/wex/terrorism. Acesso em: 4 out. 2025.   CNN BRASIL. Crime organizado é tema "espinhoso" na relação Brasil-EUA, avalia Eurasia. CNN Brasil, São Paulo, 4 out. 2025. Disponível em:https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/crime-organizado-e-tema-espinhoso-na-relacao-brasil-eua-avalia-eurasia/. Acesso em: 4 out. 2025.   DIAS, C. O que a volta de Trump pode representar para a América Latina? Revista PETREL, Brasília, v. 7, n. 1, p. 136-145, maio 2025. Disponível em:https://petrel.unb.br/images/Boletins/Petrel_v7_n1_mai_2025/Dias.pdf. Acesso em: 4 out. 2025.   FBI. Federal Bureau of Investigation. Transnational Organized Crime. Disponível em:https://www.fbi.gov/investigate/transnational-organized-crime. Acesso em: 4 out. 2025.   FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (FBSP). Cartografias da Violência na Amazônia. 2023. Disponível em:https://publicacoes.forumseguranca.org.br/items/ca0bcac7-31b6-4123-adb1-2a6fc5c0b95d. Acesso em: 4 out. 2025.   G1. EUA x Venezuela: governo Trump divulga fotos de porta-aviões após chegada à América Latina. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/11/14/eua-x-venezuela-governo-trump-divulga-fotos-porta-avioes-apos-chegada-america-latina.ghtml. Acesso em: 14 nov. 2025.   GALLAS, D. Quais os riscos econômicos se Brasil declarar facções criminosas como terroristas? BBC Brasil. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cly2e7ep5eko. Acesso em: 14 nov. 2025.   HOFFMAN, B. Inside Terrorism. 3rd ed. New York: Columbia University Press, 2017.   LEGAL INFORMATION INSTITUTE. Patriot Act. Cornell Law School – Wex. Disponível em: https://www.law.cornell.edu/wex/patriot_act. Acesso: 14 nov. 2025.   POLLETO, R. Terrorismo Internacional: elementos para análise e reflexão. [s.l.], [s.d.]. Disponível em:https://drive.google.com/file/d/1pXmclVfd7XZEsEyiTM1YAlGKKL2AeuBk/view. Acesso em: 4 out. 2025.   RODRIGUES, T. Não existe narcoterrorismo no Brasil. Carta Capital. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/justica/nao-existe-narcoterrorismo-no-brasil/. Acesso em: 14 nov. 2025. THE WHITE HOUSE. Designating cartels and other organizations as foreign terrorist organizations and specially designated global terrorists. 2025a The White House, 20 jan. 2025. Disponível em:https://www.whitehouse.gov/presidential-actions/2025/01/designating-cartels-and-other-organizations-as-foreign-terrorist-organizations-and-specially-designated-global-terrorists/. Acesso em: 4 out. 2025.   THE WHITE HOUSE. President Trump is Leading with Peace Through Strength. 2025b The White House, Washington, DC, 3 mar. 2025. Disponível em:https://www.whitehouse.gov/articles/2025/03/president-trump-is-leading-with-peace-through-strength/. Acesso em: 4 out. 2025.   UNITED NATIONS. Resolution 49/60 of 9 December 1994. Measures to eliminate international terrorism. Disponível em: https://docs.un.org/en/A/RES/49/60. Acesso em: 14 nov. 2025.   UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME (UNODC). UN Convention against Transnational Organized Crime. Viena, 2000. Disponível em:https://www.unodc.org/unodc/en/organized-crime/intro/UNTOC.html. Acesso em: 4 out. 2025.   UPPSALA CONFLICT DATA PROGRAM (UCDP). Comando Vermelho. 2024a. Disponível em:https://ucdp.uu.se/actor/772. Acesso em: 4 out. 2025.   UPPSALA CONFLICT DATA PROGRAM (UCDP). Primeiro Comando da Capital. 2024b. Disponível em:https://ucdp.uu.se/actor/3176. Acesso em: 4 out. 2025.   U.S. DEPARTMENT OF STATE. Executive Order 13224. 2025a. Disponível em:https://www.state.gov/executive-order-13224. Acesso em: 4 out. 2025.   U.S. DEPARTMENT OF STATE. Trechos do pronunciamento do presidente Donald Trump na Assembleia Geral da ONU. 2025b.  Disponível em:https://www.state.gov/translations/portuguese/trechos-do-pronunciamento-do-presidente-donald-trump-na-assembleia-geral-da-onu. Acesso em: 4 out. 2025. U.S. DEPARTMENT OF THE TREASURY. Office of Foreign Assets Control – OFAC. U.S. Department of the Treasury. Disponível em:https://ofac.treasury.gov/. Acesso em: 4 out. 2025.   VAZ, A. Atores Não Estatais Violentos e terrorismo no contexto sul-americano: desafios de segurança regional e implicações para o Brasil. [s.l.], [s.d.].  Disponível em:https://drive.google.com/file/d/1Ruq8nRxeGgt_d5kd_WZf82cxa5-Y0VK9/view. Acesso em: 4 out. 2025.

  • Destaques

    Gabriel Boaventura   O saber popular pode proporcionar importantes reflexões sobre nosso tempo. Diz-se que “em terra de cegos, quem tem olhos é rei”. O ditado evoca a superioridade daqueles que, entre os que ignoram, conseguem olhar, observar e perceber fatos e fenômenos. Utilizando um silogismo simples, pode-se entender que, se esses indivíduos — os que têm olhos — são reis, e reis são figuras que gozam de prestígio e poder, então esses indivíduos vivem em uma realidade que os valoriza e os coloca na posição de soberanos. No entanto, a realidade traz consigo uma brutal inversão dessa lógica. Principalmente em tempos de guerra, os jornalistas — aqueles que têm olhos, os que conseguem observar, perceber e, mais importante, relatar — têm sido alvos sistemáticos da desvalorização e da perseguição de governos, de comunidades e de autoridades que violam direitos e desrespeitam as regras do jogo. Não à toa, o Direito Internacional Humanitário estabelece que os jornalistas em missão profissional em zonas de conflito armado devem ser considerados civis e, portanto, não podem ser alvo de ataques (Comitê Internacional da Cruz Vermelha, 2017). Ocorre que, assim como o ditado popular, os marcos legais e jurídicos que deveriam proteger esses profissionais não encontram respaldo na realidade concreta. A violência contra jornalistas por parte das Forças de Defesa de Israel (FDI) não é um fenômeno recente — contudo, desde 7 de outubro de 2023, atingiu níveis sem precedentes, resultando no maior número de mortes de profissionais da imprensa já registrado na história mundial (León, 2025). A partir de tal cenário, essa análise tem como objetivo entender o impacto desses profissionais, em especial dos fotojornalistas, como verdadeiras testemunhas no conflito em questão, bem como refletir sobre os interesses que sustentam esse “cegamento” em massa.   Na Mira da Câmera, na Mira da Arma   A Faixa de Gaza há muito se consolidou como um dos lugares mais inóspitos para jornalistas, cinegrafistas e operadores de câmera. Por um lado, Israel restringiu o acesso desses profissionais a Gaza, permitindo apenas viagens escoltadas e controladas pelas FDI (Rufo; Gritten, 2024). Por outro, o governo israelense acusa jornalistas de terem participado, como terroristas do Hamas, no ataque de 7 de outubro (Mallinder, 2024), o que lhes tira o direito de serem tratados como civis. Tais acusações são veementemente desmentidas por veículos de mídia, como a Al Jazeera, que as classificou como “fabricadas” e pertencentes a uma tentativa de silenciar jornalistas remanescentes na região (Israel…, 2024). Em outubro de 2025, a Repórteres Sem Fronteiras (RSF) apresentou à Corte Penal Internacional sua quinta queixa por crimes de guerra contra a imprensa em Gaza, reunindo trinta casos de jornalistas palestinos mortos ou feridos entre 2024 e 2025. Segundo a entidade, Israel recorre a campanhas de difamação, acusando jornalistas de “terrorismo” sem provas consistentes, o que legitima, perante a opinião pública, a eliminação desses profissionais e o controle da narrativa sobre o conflito (RSF apresenta…, 2025). Ao registrar e difundir a realidade dos palestinos durante o conflito, esses indivíduos assumem um importante papel na representação da dor coletiva. É o que percebeu Susan Sontag quando afirmou que “as fotos são meios de tornar ‘real’ (ou ‘mais real’) assuntos que as pessoas socialmente privilegiadas, ou simplesmente em segurança, talvez preferissem ignorar” (Sontag, 2025, p. 10). O ato de registrar, nesse contexto, converte a câmera em uma arma simbólica contra o apagamento e o silêncio. Alguns profissionais palestinos entrevistados pela ONU revelaram, dentre outras coisas, que a guerra é pessoal para muitos deles (Gaza …, 2025). Eles fotografam como testemunhas, mas também como vítimas, registrando uma realidade da qual também fazem parte e que os reconhece como alvos. Estima-se que mais de 270 jornalistas palestinos tenham sido assassinados desde o início dos confrontos (The names …, 2025). Essa cifra torna o conflito em questão o mais letal para os trabalhadores de mídia da história. Além disso, segundo o Repórteres Sem Fronteira (Bruttin, 2024), Israel tornou-se, no mesmo período, o país que mais prendeu jornalistas em razão direta do conflito em Gaza, ocupando atualmente a posição de terceiro maior cárcere de jornalistas do mundo. Um caso emblemático dessa lógica de eliminação de vozes é da jornalista da Al Jazeera, Shireen Abu Akleh. Apesar de Abu Akleh estar acompanhada de outros repórteres, claramente identificável como jornalista, com capacete e jaqueta azul marcada com a inscrição “PRESS”, ela foi atingida por uma única bala disparada de forma precisa. Investigações indicaram que o disparo partiu de um soldado israelense — fato que, num primeiro momento, foi negado pelo governo de Israel, que depois recuou e admitiu (Mackenzie, 2022).  Mas, afinal, onde reside o poder das fotografias e registros de guerra? Dentre as múltiplas respostas que podem ser dadas, pode-se afirmar que sem fotos, não há materialidade para o choque, não há “eixo” em torno do qual afetos e causas se cristalizam (Sontag, 2025). Impedir o trabalho dos jornalistas, matando e prendendo, é, em última instância, atacar a possibilidade de construção de memória coletiva. Ao mesmo tempo, a câmera não é apenas uma arma simbólica, é também um veículo afetivo, capaz de mobilizar e transformar emoções diante da dor alheia.   O Afeto e o Testemunho       O trabalho do fotojornalista ultrapassa a dimensão informativa, atingindo a construção simbólico-afetiva dos corpos registrados. As emoções, segundo Ahmed (2013), não residem nos sujeitos ou nos objetos, mas circulam entre eles, produzindo efeitos de aproximação e afastamento. Nesse sentido, cada imagem de Gaza não apenas torna visível uma realidade, mas também faz circular afetos: o choque, o luto, a raiva e a solidariedade aderem às fotografias e aos corpos palestinos nelas retratados — crianças, famílias, hospitais destruídos —, convertendo-os em expressões vivas da dor compartilhada. O testemunho dos jornalistas funciona, nesse aspecto, como um potencial catalisador de solidariedade global em torno da causa palestina. Enquanto Israel, por meio de seus veículos de comunicação oficial, busca fixar aos corpos palestinos a imagem do “terrorista” (Tamimi; Vargas, 2025), produzindo medo e justificando ataques, as imagens produzidas pelos jornalistas reorientam esses afetos, desestabilizando a narrativa hegemônica e reinscrevendo o sofrimento palestino no campo da denúncia ética. Ainda, de acordo com Ahmed (2013), a dor, mesmo quando experimentada no corpo individual, não é privada, porque, além de ser mediada pela linguagem e cultura, ela exige reconhecimento social para ter sentido. Os jornalistas funcionam como a testemunha que garante a inteligibilidade da dor palestina. Israel, ao matá-los, busca romper essa mediação e dissolver a própria possibilidade de reconhecimento político do sofrimento — isto é, eliminar a memória coletiva da violência. Murilo e De Paris (2025) demonstram a materialidade dessas ideias: entre maio e setembro de 2025, os protestos pró-Palestina aumentaram 43% em relação aos cinco meses anteriores, evidenciando a expansão e persistência da mobilização internacional em torno da causa palestina. Essa tendência é corroborada por dados jornalísticos, que registram manifestações reunindo de centenas a milhares de pessoas em diversas cidades do mundo — como Londres, Paris, Istambul e Rio de Janeiro — em defesa do cessar-fogo e do fim dos ataques israelenses (Manifestações …, 2025). A reorientação afetiva global também reverberou no plano diplomático. A indignação internacional diante das imagens vindas de Gaza aumentou a pressão sobre governos ocidentais e reconfigurou o debate público sobre o conflito. Em 2024 e 2025, países historicamente aliados de Israel, como Reino Unido, França, Noruega e Espanha, reconheceram formalmente o Estado da Palestina (Mapa …, 2025). Essas mudanças de posicionamento ampliaram o isolamento internacional de Israel e expressou a crescente legitimação política da causa palestina. Desse modo, a eliminação sistemática de jornalistas e profissionais de mídia perpetrada pelas FDI busca cumprir dois objetivos elementares: silenciar as testemunhas e bloquear a circulação de emoções capaz de reorientar o campo afetivo global em relação aos palestinos. Impedindo que a dor se torne visível, Israel não apenas suprime a informação, mas tenta interromper a formação de vínculos afetivos que possibilitam a criação de uma narrativa contra-hegemônica sobre o conflito.    Considerações Finais   Diante do exposto, o jornalista, indivíduo que encarna o olhar e o testemunho, converte-se em um alvo dos regimes que buscam controlar ou impedir a circulação de informações e afetos sobre os objetos de violência. Os ataques a Gaza evidenciam essa lógica ao registrarem o maior número de jornalistas assassinados em um conflito na história. Ao revelar o que se tenta apagar, as fotos e relatos tornam-se ferramentas de memória coletiva e organização política: eles produzem choques, constroem solidariedades e desestabilizam narrativas oficiais que pretendem justificar o extermínio de um povo. É por isso que o controle sobre o olhar — quem pode ver e quem pode ser visto — torna-se um campo de disputa tão importante.  Assim, silenciar jornalistas é uma estratégia utilizada para destruir o registro da violência. No entanto, cada imagem e cada relato que rompe essa censura reafirma o poder de ver como ato político e ético. Contra o apagamento, o fotojornalismo em Gaza defende que, em terra de cegos, quem tem olhos não é rei, mas é revolucionário.    Referências bibliográficas   AHMED, S. The Cultural Politics of Emotion. Routledge, 2013.   BRUTTIN, T. 2024 Round-UP: Journalists killed, detained, held hostage and missing. Reporters Without Borders, 11 dez. 2024. Disponível em:https://rsf.org/sites/default/files/medias/file/2024/12/RSF%20Round-up%202024%20EN.pdf. Acesso em: 4 out. 2025.   COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA (CICV). Os Protocolos Adicionais às Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949. Genebra: CICV, 2017. Disponível em: https://www.icrc.org/pt/publication/os-protocolos-adicionais-convencoes-de-genebra-de-12-de-agosto-de-1949. Acesso em: 20. set. 2025.   GAZA Through The Eyes Of Its Photographers. UN OCHA, 3 set. 2025. Disponível em: https://unocha.exposure.co/gaza-through-the-eyes-of-its-photographers. Acesso em: 20 set. 2025.   ISRAEL names Al Jazeera reporters as Gaza militants, network condemns 'unfounded allegations'. Reuters, 24 out. 2024. Disponível em: https://www.reuters.com/world/middle-east/israel-names-al-jazeera-reporters-gaza-militants-network-condemns-unfounded-2024-10-23/. Acesso em: 20 out. 2025.   LEÓN, L. P. Israel matou mais jornalistas que qualquer guerra da história mundial. Agência Brasil, Brasília, 27 ago. 2025. Disponível em: agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2025-08/israel-matou-mais-jornalistas-que-qualquer-guerra-da-historia-mundial. Acesso em: 10 set. 2025.   MACKENZIE, J. Israel admite que repórter da Al Jazeera provavelmente foi morta por suas forças. G1, 5 out. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/09/05/israel-admite-que-reporter-da-al-jazeera-provavelmente-foi-morta-por-suas-forcas.ghtml. Acesso em: 8 out. 2025.   MALLINDER, L. Shooting war: Gaza's visual storytellers under 'blatant attack. Al Jazeera, 3 fev. 2024 Disponivel em: www.aljazeera.com/features/2024/2/3/shooting-war-the-risks-faced-by-gazas-visual-storytellers. Acesso em: 20 set. 2025.   MANIFESTAÇÕES pró-Palestina reuniram milhares de pessoas no mundo. Agência Brasil, 4 out. 2025. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2025-10/manifestacoes-pro-palestina-reuniram-milhares-de-pessoas-no-mundo. Acesso em: 8 out. 2025.   MAPA mostra Israel isolado: veja quais países reconhecem o Estado palestino. UOL, 27 set. 2025. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2025/09/27/mapa-mostra-israel-isolado-veja-quais-paises-reconhecem-o-estado-palestino.htm. Acesso em: 8 out. 2025.    MURILO, C; DE PARIS, C. Two years of global demonstrations in support of Palestine. Armed Conflict Location & Event Data, 3 out. 2025. Disponível em: acleddata.com/infographic/two-years-global-demonstrations-support-palestine. Acesso em: 5 out. 2025.   RSF apresenta quinta queixa à Corte de Haia por crimes de guerra contra a imprensa em Gaza. MediaTalks, 1 out. 2025. Disponível em: https://mediatalks.uol.com.br/2025/10/01/denuncia-crimes-guerra-jornalistas-gaza/. Acesso em: 8 out. 2025.   RUFO, Y.; GRITTEN, D. Journalists call for foreign media access to Gaza in open letter. BBC, 28 fev. 2024. Disponivel em: https://www.bbc.com/news/world-middle-east-68423995. Acesso em: 5 out. 2025.   SONTAG, S. Diante da dor dos outros. Companhia das Letras, 2025.   TAMIMI, T.; VARGAS, D. S. Propaganda vs. Truth: Israeli Propaganda and Palestinian Demonisation. E-International Relations, 13 fev. 2024. Disponivel em: www.e-ir.info/2024/02/13/israeli-propaganda-and-palestinian-demonisation. Acesso em: 4 out. 2025.   THE names of Palestinian journalists killed by Israel in Gaza. Al Jazeera, 1 set. 2025, Disponível em: www.aljazeera.com/video/newsfeed/2025/9/1/the-names-of-palestinian-journalists-killed-by-israel-in-gaza. Acesso em: 20 set. 2025.

  • Destaques

    O Irã no Tabuleiro Geopolítico: Poder Nuclear, Conflito Regional e Grandes Potências   Yasmin Freitas Taia        O programa nuclear iraniano constitui um dos pontos mais sensíveis da agenda internacional contemporânea, marcado pela tensão entre os compromissos assumidos em tratados multilaterais e a desconfiança de atores ocidentais quanto às reais intenções de Teerã. Desde o estabelecimento do Plano de Ação Conjunto Global (JCPOA) em 2015, buscou-se criar mecanismos de fiscalização e transparência capazes de garantir o caráter pacífico da política nuclear iraniana. No entanto, relatórios recentes, publicados em 2025, da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) evidenciam o aumento do enriquecimento de urânio e a ausência de informações sobre certas instalações, o que reavivou preocupações de segurança e levou à reimposição de sanções internacionais.       Tal cenário insere-se em uma conjuntura de crescente instabilidade no Oriente Médio, em que o programa nuclear do Irã se articula com dinâmicas de segurança regional, rivalidades históricas e disputas de poder entre grandes potências. Embora o debate sobre armas nucleares tenha ressurgido nos últimos anos, sua origem recorre ao final da Segunda Guerra Mundial, — marco histórico que evidenciou as terríveis consequências de seu uso. No entanto, a escalada de confrontos diretos com Israel, a participação ativa dos Estados Unidos e o fortalecimento da cooperação do Irã com Rússia e China indicam que a questão nuclear permanece como instrumento coercitivo, político e estratégico. Assim, compreender as implicações desse processo é fundamental para analisar a atual correlação de forças no sistema internacional.   O Programa Nuclear Iraniano       Desde 2015, as sanções ao Irã haviam sido suspensas com a criação do Plano de Ação Conjunto Global (JCPOA), em troca da garantia que o programa nuclear do Irã seria de natureza pacífica (Conselho Europeu). Além desse acordo, o Irã é signatário do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), que estabelece diversas obrigações aos Estados signatários com o objetivo de não disseminar as armas nucleares. A exemplo dessas medidas, está a não transferência, fabricação e aquisição de armas nucleares ou outros explosivos nucleares. Ademais, estabelece a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), como órgão que fiscaliza o cumprimento das medidas impostas pelo TNP (Brasil, 2025). Nesse sentido, a presença da AIEA foi essencial para definir os próximos passos do Irã, visto que realizou visitas e produziu relatórios sobre a situação nuclear do país, causando preocupação internacional.       O relatório da AIEA, publicado em maio de 2025, aponta o Irã como único país não nuclear do TNP — são definidos como aqueles que não testaram ou explodiram arma nuclear antes de 1967 —,  que enriquece Urânio a níveis altíssimos próximos a 60%. Porém, ainda é um nível alarmante, mesmo que o TNP não estabeleça uma porcentagem limite, por se aproximar do enriquecimento de 90% que é utilizado na construção de armas nucleares (Léon, 2025). Por outro lado, há descumprimento dos acordos quando o Irã não promove informações sobre as suas capacidades nucleares reais e muitos locais de desenvolvimento nuclear não foram declarados, como o Lavitan-Shian, Marivan, Varamin e Turquzabad (IAEA, 2025). Logo, este relatório deu base para as ações seguintes de ataque ao país.     O discurso de luta por uma mudança política e da ameaça nuclear iraniana foi utilizado por Israel em 13 de junho para atacar instalações do país, principalmente nucleares, e assassinar pessoas estratégicas ao governo, como cientistas nucleares e comandantes militares (Doucet, 2025). Em contrapartida, o Irã lançou diversos mísseis e drones em Israel. Não obstante, os Estados Unidos decidiu tomar partido de Netanyahu e atacou três instalações iranianas e recebeu ameaças de ter suas bases militares no Oriente Médio atacadas (Léon, 2025). De fato, o Irã cumpriu o seu discurso e lançou mísseis contra a base dos Estados Unidos no Catar, chamada Al Udeid, e logo em seguida foi ratificado um cessar-fogo desse conflito (G1, 2025).     Após o conflito discutido, houve uma reunião entre Grã-Bretanha, França e Alemanha, que definiram que o Irã receberia um ultimato para apresentar que o seu programa nuclear não representava um risco à segurança internacional (O Globo, 2025). Nesse período, foram realizadas diversas reuniões, discussões e apresentações de propostas pelo Irã, com a defesa argumentando que seria vítima das manipulações do Ocidente, em especial pelos Estados Unidos (O Globo, 2025). Portanto, no final de setembro foram restabelecidas as sanções da Organização das Nações Unidas ao Irã, com a acusação de que estaria desrespeitando os compromissos do acordo nuclear JCPOA de não construir bombas nucleares (CNN, 2025). Apesar dos argumentos do Irã de que as suas usinas nucleares seriam apenas para fins civis e energéticos, na prática ainda causa desconfiança no âmbito da segurança.      A partir das negociações realizadas entre Irã e Rússia, foi ratificado um acordo de US$25 bilhões no mesmo dia da decisão da aplicação das sanções pela ONU (The Moscow Times, 2025). Com a parceria entre a empresa iraniana Hormoz e a russa Rosatom, serão construídos quatro novos reatores no território iraniano, na cidade de Sirik (The Moscow Times, 2025). Segundo o Islamic Republic News Agency (IRNA), a capacidade de cada uma das usinas será de aproximadamente 1,255 MW de eletricidade, resultando em um total de 5,20 MW (Shafaq News, 2025). Logo, o Irã será um adversário do Ocidente mais fortalecido, com o apoio da Rússia e das capacidades econômicas que as novas usinas irão proporcionar.   Segurança e defesa do Irã     Um dos mecanismos de poder utilizado pelo Irã é o chamado “Axis of Resistance” (AOR), em que grupos armados são financiados e apoiam ações militares alinhadas aos interesses do país. Segundo a Ministra de Defesa Israelense Naftali Bennet, o Eixo da Resistência seria como um polvo, em que o Irã controla os segmentos sem se colocar diretamente no conflito. Nesse sentido, a cooperação do AOR com o Irã é muito estratégica, pois equilibra os interesses de cada grupo junto ao desejo iraniano de ter um maior controle regional (Day, 2025).     Em segundo lugar, o próprio programa nuclear do Irã é uma fonte de projeção de poder, visto que os países sentem-se ameaçados e limitam os seus ataques frente à possibilidade de uma retaliação. No entanto, os países do Ocidente promoveram o retorno das sanções econômicas ao Irã como forma coercitiva de limitar a expansão nuclear. Infelizmente, para as potências que apoiaram Israel no conflito e as decisões de sanção, o Irã possui apoio tanto de grupos regionais, do AOR, como de potências como Rússia e China (Day, 2025). Logo, podemos analisar que os conflitos ligados ao Irã estão diretamente ligados à disputa das grandes potências.     Por último, a utilização da narrativa iraniana como forma de se colocar como vítima das grandes potências e dos organismos internacionais é muito eficiente, principalmente diante da recente crise do multilateralismo (Day, 2025). Nesse sentido, a diferença de tratamento da ONU com Israel e o Irã é muito perceptível, visto que ambos desacatam o direito internacional, mas apenas um deles recebe retaliação e pressão internacional. Ao realizar a comparação dos dois países nos últimos anos, é facilmente identificado a desproporcionalidade dos crimes, em que o Irã — que era o principal vilão do Oriente Médio — se tornou uma vítima do então presidente Netanyahu e seu apoiador Trump.   Crise do Multilateralismo     A crise do multilateralismo evidencia-se pela incapacidade das organizações internacionais de agir de forma imparcial e eficaz diante de disputas estratégicas entre grandes potências e países considerados periféricos no sistema internacional. O caso do Irã é um exemplo disso: enquanto Israel, que também viola normas do direito internacional em diferentes contextos, enfrenta respostas brandas da ONU, o Irã é submetido a intensas sanções e pressões políticas. Nesse sentido, o próprio Relatório da AIEA intensificou as preocupações internacionais, levando a um olhar desigual das instituições que acordaram em impor sanções ao Irã. Esse tratamento assimétrico revela como as instituições multilaterais acabam refletindo o desequilíbrio de forças do Conselho de Segurança da ONU, onde os membros permanentes exercem poder de veto e influenciam diretamente a agenda internacional.     Além disso, a fragilidade do multilateralismo contemporâneo está associada à própria crise de legitimidade das instituições criadas no pós-Segunda Guerra Mundial. Diante da ascensão de novos polos de poder, como Rússia, China, Índia e até atores regionais como o próprio Irã, o modelo centrado no Ocidente perde capacidade de representar a diversidade de interesses globais. Essa discrepância alimenta narrativas de vitimização e resistência, exploradas por países que se sentem marginalizados pela ordem internacional. Nesse sentido, a crise do multilateralismo não se traduz apenas em ineficiência prática, mas também em perda de credibilidade, abrindo espaço para arranjos paralelos de cooperação — como parcerias bilaterais e regionais — que desafiam a centralidade das instituições universais.   Conclusão     A análise do programa nuclear iraniano demonstra como a questão da segurança internacional não se limita ao cumprimento de normas jurídicas, mas envolve narrativas políticas, disputas de poder e diferentes padrões de legitimidade. Enquanto o Ocidente enxerga no Irã uma ameaça à ordem internacional, o governo iraniano se coloca como vítima de uma política seletiva e assimétrica das grandes potências e das instituições multilaterais. Nesse sentido, o uso da narrativa da resistência, aliado ao fortalecimento de alianças com o “Axis of Resistance” e com parceiros estratégicos como Rússia e China, confere a Teerã novas margens de manobra frente às pressões internacionais.     Portanto, o futuro do programa nuclear iraniano será determinado não apenas pela eficácia das sanções e das fiscalizações internacionais, mas também pelo jogo geopolítico que envolve atores regionais e globais. A crescente militarização da região, somada à fragilidade do multilateralismo e à seletividade das respostas internacionais, reforça a ideia de que a disputa em torno do Irã extrapola a questão nuclear, configurando-se como reflexo das transformações mais amplas da ordem regional e internacional contemporânea.   Referências Bibliográficas   AGÊNCIA BRASIL. Chefe da AIEA diz que não tem prova de armas nucleares do Irã. Agência Brasil, 2025. Disponível em:https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2025-06/chefe-da-aiea-diz-que-nao-tem-prova-de-armas-nucleares-do-ira. Acesso em: 29 set. 2025.   AGÊNCIA BRASIL. Israel ataca prisão em Teerã; Irã lança 21ª onda de mísseis balísticos. Agência Brasil, 2025. Disponível em:https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2025-06/israel-ataca-prisao-em-teera-ira-lanca-21%C2%AA-onda-de-misseis-balisticos. Acesso em: 29 set. 2025.   BBC NEWS BRASIL. Entenda o que é o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares. BBC News Brasil, 2025. Disponível em:https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4g8e3kk3x4o. Acesso em: 29 set. 2025.   CNN BRASIL. Mesmo com apelos da Rússia e China, ONU reimpõe sanções ao Irã. CNN Brasil, 2025. Disponível em:https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/mesmo-com-apelos-da-russia-e-china-onu-reimpoe-sancoes-ao-ira/. Acesso em: 29 set. 2025.   CNN BRASIL. Entenda o que é o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares. CNN Brasil, 2025. Disponível em:https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/entenda-o-que-e-o-tratado-de-nao-proliferacao-de-armas-nucleares/. Acesso em: 29 set. 2025.   CONSELHO EUROPEU. Medidas restritivas contra o Irã: plano de ação conjunto global (JCPOA). Conselho Europeu, 2025. Disponível em:https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/jcpoa-iran-restrictive-measures/#:~:text=O%20acordo%20sobre%20o%20plano,relacionadas%20com%20o%20dom%C3%ADnio%20nuclear. Acesso em: 29 set. 2025.   Day, P. Narrative Intelligence: Decoding Iran’s Influence Campaigns in Iraq. Foreign Policy Research Institute (FPRI), 2025. Disponível em:https://www.fpri.org/article/2025/08/decoding-iran-influence-iraq/. Acesso em: 29 set. 2025.   G1. Irã fala em “grande vitória” e anuncia fim do conflito com Israel. G1, 2025. Disponível em:https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/06/24/ira-fala-em-grande-vitoria-e-anuncia-fim-do-conflito-com-israel.ghtml. Acesso em: 29 set. 2025.   SERRANO, C. Hiroshima e Nagasaki: como foi o 'inferno' em que milhares morreram por causa das bombas atômicas. BBC News Brasil, 2025. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/resources/idt-897d70df-056b-413c-ac44-cdacae33bc8c. Acesso em: 15 out. 2025.    SHAFAQ NEWS. Iran, Russia sign nuclear deal to generate 5K MW. Shafaq News, 2025. Disponível em:https://shafaq.com/en/Middle-East/Iran-Russia-sign-nuclear-deal-to-generate-5K-MW#:~:text=US%20says%20Iran%20risks%20dependency%20on%20Russia. Acesso em: 29 set. 2025.   THE MOSCOW TIMES. Iran and Russia sign $25B deal to build 4 nuclear plants. The Moscow Times, 2025. Disponível em:https://www.themoscowtimes.com/2025/09/26/iran-and-russia-sign-25b-deal-to-build-4-nuclear-plants-a90640. Acesso em: 29 set. 2025.