Vítor Vieira Branquinho
Giovanni Arrighi em “O longo século XX” (1996), faz uma exposição teórico-histórica sobre como o capitalismo se desenvolveu ao longo das eras, mas, especificamente, as relações entre os Estados no tocante a esse modo de produção. Em sua categorização histórica, ele divide a ampliação do capitalismo em quatro grandes ciclos sistêmicos de acumulação capitalista: o genovês, o holandês, o inglês e o estadunidense (Arrighi, 1996).
É, assim, importante entender o que é o ciclo sistêmico de acumulação. Para que ele aconteça deve existir uma hegemonia no sistema, que, de acordo com Gramsci (2004) é um Estado - ou grupo de Estados - cuja influência é tamanha, ao ponto de alinhar as políticas externas dos Estados abaixo dele, de modo que, além dos vieses políticos e econômicos, os ideológicos e culturais estejam direcionados para o mesmo fim. Um exemplo disso é a Inglaterra durante a era industrial ou os Estados Unidos e a União Soviética no período da Guerra Fria. Esses Estados exerciam sua hegemonia sobre os Estados menores, apontando o modo de pensar e de fazer política; sobretudo, os interesses do hegemon eram destacados e o sistema convergia em direção a eles.
Além disso, há uma aliança entre o Estado e o capital: este é utilizado para crescer e possibilitar os objetivos daquele (Arrighi, 1996). O Estado utilizará do capital para se expandir e para ampliar ainda mais sua hegemonia e sua própria acumulação de riquezas. É apontado, dessa maneira, um processo de desenvolvimento e dependência entre os agentes - capital e Estado - que dá continuidade ao ciclo. Por fim, é importante notar que os períodos não são finitos em si mesmos, mas que cada intervalo beneficia-se do crescimento do anterior, começando de onde o último parou.
É nessa ideia que apresenta-se a conjuntura chinesa no cenário internacional. Os investimentos feitos pelo Estado chinês propulsionaram sua economia e abriram as portas para uma possível vaga como hegemonia global. Assim, o intuito dessa análise é entender como a China pode estar se apresentando como uma candidata a substituir o cargo do antigo hegemon no ciclo de acumulação e em quais aspectos ela precisa focar para concretizar esse processo.
O Estado empreendedor chinês
Hung (2018) irá demonstrar que o crescimento chinês só foi possível pela participação do país na nova ordem neoliberal, ou seja, no modelo capitalista internacional de livre-comércio, em que os países, como agentes, possuem uma relação de trocas comerciais. Para que esse crescimento aconteça, é necessário que haja uma aliança entre o poder estatal e as empresas privadas (Arrighi, 1996).
Nessa ordem, Polanyi (2000) afirma que a construção do capitalismo de livre-comércio foi um planejamento estatal, controlado e regulado pelo governo para que ele pudesse acontecer. Os constantes regulamentos, à medida que as trocas exigiam intervenção para funcionarem livremente, foram obra da mão estatal que visava o desenvolvimento desse modo de produção acumulador.
Por sua vez, a política externa chinesa, estabelecida pelo Partido Comunista Chinês, é baseada em três princípios - a soberania chinesa, a integridade territorial e a não interferência -, os quais estão enraizados na tradição do país e são fortemente utilizados com o propósito de servir os interesses do partido (Grimmel; Gurol, 2021). Esses princípios denotam um vínculo inseparável entre a soberania e o Estado forte, mostrando que, nesse sentido, a política externa chinesa funciona como uma extensão dos interesses econômicos e políticos do país (Giessmann, 2008). Assim, como Polanyi demonstra um Estado planejador, da mesma forma o Estado capitalista chinês propõe um projeto que visa sua propulsão no sistema internacional vigente (Hung, 2018).
Nos últimos sessenta anos, é demonstrado a habilidade chinesa de se especializar e de acumular, cada vez mais, novas e mais complexas capacidades, algo que é notado na diversificação e na sofisticação da sua cesta de produtos (Felipe et al., 2012). Um exemplo é a marca de carros elétricos chinesa, Build Your Dreams (BYD). Fundada na cidade de Shenzhen, China, antes era uma produtora de baterias e se tornou uma fábrica de carros elétricos. A produção de baterias, que pode ser considerada como uma vantagem inicial, foi substituída pela fabricação de motores de carros (BBC News, 2023). A empresa cresceu na bolsa de valores e, com isso, como diversificação, adquiriu uma marca estatal de carros.
Nessa mudança de produto, o governo chinês, que buscava ocupar espaço no mercado mundial de energia renovável, induziu incentivos e subsídios fiscais para que houvesse uma produção maior nesse setor. Assim, a marca se encontrava em um contexto excelente para se expandir. Hoje, a China domina a produção mundial de veículos elétricos - e grande parte devido à BYD (BBC News, 2023).
Outro exemplo é a criação da Nova Rota da Seda – a Belt and Road Initiative (BRI) –, uma iniciativa voltada para a internacionalização do desenvolvimento chinês. Dispondo do financiamento de um grande conjunto de bancos públicos e comerciais, a China lançou uma série de programas de investimentos, focados principalmente em infraestrutura, em 2013, com Xi Jinping, e, a partir de então, tem dado sequência a eles. O projeto inicial promoveu grandes planejamentos de construção civil nos países parceiros, com o viés de realizar uma integração econômica regional. Essa iniciativa tem sido responsável por condicionar e potencializar os fluxos de investimentos diretos aos países aliados à BRI e estabelecer um contexto cujo soft power chinês possa ser exercido (Mendonça; Filho; Oliveira, 2021).
Além do setor automotivo e de infraestrutura, a China demonstra um papel importante nas redes de produção global (Schindler et al, 2023). Inicialmente, elas eram inseridas como produtores, mas ao longo do tempo foram se aproximando da fronteira tecnológica. Em 2015, Pequim lançou a estratégia industrial Made in China 2025, cuja ambição era transformar o país no líder manufatureiro até 2049. Para isso, buscou melhorar sua inovação, integrar a indústria e a tecnologia e promover serviços relacionados à manufatura nos seguintes setores: nova tecnologia de informação, maquinário altamente especializado, equipamento aeroespacial, equipamento de engenharia oceânica, carros elétricos, equipamentos elétricos, maquinário agrícola, materiais novos como polímeros e equipamentos na área da saúde (The State Council…, 2015). Em 2021, foi injetado, somente nessa política, 31 bilhões de dólares (Kawase, 2022). Logo, é notório o esforço chinês para ser dominante nesse setor.
Esses três exemplos - setor automobilístico elétrico, infraestrutural e de redes de produção - fazem parte de um conjunto que indica a projeção da China para ocupar uma posição relevante no sistema capitalista internacional. Ela traz consigo o forte peso de algumas indústrias e também de alguns setores estratégicos nos quais exerce uma importante função, rivalizando com a potência americana, atual hegemon do ciclo de acumulação (Schindler et al, 2023). De modo geral, as políticas econômicas do país vêm ampliando sua capacidade capitalista de acumulação e empreendedorismo, gerindo seus recursos de modo a se qualificar como uma grande potência econômica (Grimmel, Gurol, 2021; Arrighi, 2008).
O problema da hegemonia
Todavia, na perspectiva de Arrighi, a hegemonia que se instala no ciclo de acumulação possui características para além do âmbito econômico, como o político e o cultural (Arrighi, 1996). A hegemonia americana, alicerçada sobre o grande domínio econômico e cultural que exerceu sobre o sistema internacional ao longo da Guerra Fria e no curto período sequencial, percebe sua decadência a partir de 1995 (Arrighi, 2008). Desse ano em diante, essa hegemonia se mantém devido aos arranjos institucionais realizados pelo país, como uma forma de estratégia para guardar seu posto. Entretanto, quando um Estado hegemônico não consegue mais expandir seu sistema de Estados de uma forma benéfica para seus membros, tem-se aí uma crise da hegemonia (Arrighi, 2008).
Mesmo assim, os Estados Unidos ainda ocupam uma posição importante em outros núcleos, como na própria liderança institucional, apesar de não conseguir mais expandir seu sistema de Estados de maneira tão benéfica, organizações como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) ainda possuem um papel diretor na ordem internacional (Santana, 2016; Rynning, 2019).
A Organização para Cooperação de Xangai (OCX) é uma tentativa - que vem se mostrando bem sucedida (Anadi, 2024) - de saída chinesa do domínio institucional americano. Ela consiste em uma organização cujo objetivo é a cooperação entre seus membros, em grande maioria asiáticos, direcionando seus recursos a solucionar problemas locais, como questões econômicas, culturais, étnicas e comerciais (Anadi, 2024). A BRI também é outro esforço institucional chinês de ampliar suas relações com os outros países, focando em uma integração regional e econômica (Mendonça; Filho; Oliveira; 2021). Com essas iniciativas, a China vem buscando sair do monopólio institucional americano e vencer mais um impasse para exercer sua hegemonia.
Outra questão é o aspecto cultural. Hung (2018) argumenta que a liderança chinesa no mercado mundial acontece sem que o país estabeleça uma hegemonia no sentido gramsciano. Ela está pautada em um pragmatismo econômico, voltado para produção e acumulação econômicas. Seus esforços, inclusive os institucionais, se apresentam como mais uma ferramenta de propulsionar suas relações econômicas (Grimmel; Gurol, 2021).
Ou seja, aquela estratégia americana de exportar seu American Way of Life, responsável por moldar o pensamento ocidental, não ocorre no perfil chinês. O impacto disso no estabelecimento de uma hegemonia consiste em não ser capaz de moldar as políticas dos países nos quais exerce sua influência (Arrighi, 1996). Sem esse arranjo ideológico, a hegemonia se transforma em um domínio (Watson, 2004 [1992]), o que descaracteriza o ciclo de acumulação.
Conclusão
Em suma, é notória a posição chinesa na nova ordem neoliberal como um país que contou com um intenso boom de crescimento e que se mantém – sem sinais de declínio – no pódio das potências econômicas. Os investimentos infraestruturais e de base feitos ao longo dos anos foram essenciais para o futuro que o país almeja ter. O país soube realizar um casamento entre as políticas estatais e o capital privado para se ascender, empreendendo os setores que lhe trariam retorno e aplicando medidas que fomentariam sua indústria.
Entretanto, o ciclo de acumulação sistêmico exige uma hegemonia para seu funcionamento. Os Estados Unidos estão em um estado de decadência, o que possibilita que outros países possam disputar para substitui-lo e a China se mostra com boas condições para fazê-lo. Sua projeção econômica é algo que se destaca na ordem internacional contemporânea, não obstante, para de fato ocupar o papel de hegemon, é necessário que ela alcance os outros fatores que caracterizam-no, como o institucional e o cultural.
Portanto, caso esse quadro se mantenha, o sucesso chinês poderia vir de uma maneira diferente das vistas até hoje e que Arrighi não discorre a respeito. A falta de um controle institucional e de uma influência cultural poderá ser um impasse que mine a capacidade chinesa de concretizar a transição hegemônica e, caso se concretize, de se manter nesse papel hegemônico por muito tempo.
Referências
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