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      O PET-REL tem o prazer de anunciar a publicação da Revista Petrel (ISSN 2675-777X) volume 5, número 2, edição de maio de 2023, dedicada a explorar o complexo e multifacetado tema da Guerra na Ucrânia. Esta edição, composta inteiramente por textos de autoria estudantil, marca dois anos desde o início do conflito, trazendo à luz as suas emergências e repercussões internacionais. Convidamos a todos a mergulhar nessas discussões, ampliando seu entendimento sobre um dos mais significativos conflitos contemporâneos. Leia a Revista Petrel hoje e junte-se a nós na reflexão sobre essas questões críticas     Apresentação - Dois anos de Guerra na Ucrânia: emergência e repercussões internacionais do conflito   Daniel Jatobá (Tutor PETREL/UNB)   As ameaças híbridas no contexto do conflito russo-ucraniano   Natália Grass (PETREL/UNB) Guerra entre Rússia e Ucrânia: uma proxy war do Ocidente?   Lenira Vitoria Barroso de Oliveira (PETREL/UNB) A interferência dos Estados Unidos no conflito entre Rússia e Ucrânia e as consequências para o sistema internacional   Mariana Nascimento (PETREL/UNB) Rússia e Ucrânia: uma proxy war dos Estados Unidos   Camila Gomes (PETREL/UNB) O nazismo ucraniano: causas, origens e consequências   João Paulo Urbano e Nathália Rabelo (PETREL/UNB) As Consequências Ambientais da Guerra entre Rússia e Ucrânia   Isis Aquino (PETREL/UNB) Weaponizing the environment in Ukraine: silent and neglected victim of war and International Law   Marina Morena Caires (PETREL/UNB) The case of Putin's arrest warrant and the judicialization of international relations   Ana Helena Resende and Amanda Arrigo (PETREL/UNB) Should the EU escalate in Ukraine?   Marco Octávio de Meneses (PETREL/UNB) Is China a credible mediator for the Russia-Ukraine war?   Lucas Cavalcanti dos Santos (PETREL/UNB) Homophobic War in Ukraine: a queer eye on International Security   Felipe Alexandre Moura (PETREL/UNB)  

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    Sociedade Internacional e a Crise Incendiária Amazônica Vítor Branquinho   Introdução     Em agosto de 2022, a Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) aprovou uma Resolução, na qual dizia-se que o meio ambiente, de caráter saudável, limpo e sustentável, é apontado como um dos direitos humanos (AGNU, 2022). Nesse contexto, volta-se a 2019, no Brasil, quando uma crise incendiária ocorreu na Amazônia e perdurou até 2021 (INEP, 2019; 2021), trazendo repercussões de caráter nacional, com pressões ao presidente, e internacionais, com embates diplomáticos entre França e Brasil.     Diante disso, essa análise é dividida em duas partes. A primeira, sobre a Amazônia enquanto um recurso comunitário da humanidade. Considerando a má gestão governamental e as queimadas na floresta, discute-se, uma tragédia dos comuns no território brasileiro. A segunda parte, apresenta-se como os diálogos entre os estadistas da França e do Brasil refletem a tentativa de resolução desse problema, tendo como base conceitos da Sociedade Internacional. Assim, as duas partes possuem o intuito de mostrar a perene relevância das questões ambientais e uma das medidas diplomáticas que tentou resolver o problema brasileiro.    A Tragédia dos Comuns Amazônica     De antemão, faz-se necessário entender o que é um recurso comunitário. De acordo com o economista Gregory Mankiw (2014), um recurso comunitário seria aquele que é rival e não excludente. A rivalidade é a impossibilidade de um mesmo bem ser utilizado por duas pessoas ao mesmo tempo. Já a não-excludência é que o seu usufruto não pode ser impedido, mas passível de ter seu uso competido pelos agentes. Logo, um exemplo desse tipo de bem é o próprio meio ambiente, em que não há barreiras ao consumo de oxigênio, da umidade e de frutos produzidos, mas o uso de uma unidade impede outro consumidor de usufruir dessa mesma unidade (Mankiw, 2014). A partir de tal definição, a Floresta Amazônica se encaixa nesse tipo de bem, já que é constituinte de um bioma e abrange diversas comunidades, tendo seus rios, suas árvores, fauna e flora utilizados por todos que nela se comportam, além de influenciar os climas americanos e ser responsável pelo controle de chuvas na América do Sul.      Ademais, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) considera todo o ecossistema terrestre um patrimônio comum global, ou seja, equivalente a toda a humanidade (PNUD, 2007). Por conseguinte, diante da inexistência fronteiriça do meio ambiente e seus benefícios ao planeta (Jackson, Sorensen, 2007), a Amazônia, embora esteja localizada majoritariamente, em território brasileiro, é considerada um recurso comunitário de todas as Nações, visto que alguns de seus produtos de ordem biológica, se espalham ao redor do globo (WWF Brasil, 2023).     Todavia, apesar de ser um recurso comunitário e apresentar benefícios a toda a humanidade, Garret Hardin (1968) apresentou um problema que concerne aos recursos comunitários: a Tragédia dos Comuns. Hardin argumenta que, diante de um recurso comunitário, que é de propriedade de todos, as pessoas não consideram todos os custos e benefícios derivados de suas ações e, assim, tendem a usar esse recurso de modo abusivo, visando o ganho pessoal, já que não possuem nenhum incentivo a usá-lo de modo efetivo e ecologicamente seguro. Para ele, uma vez que não há barreiras para consumi-lo ou mecanismos para sua proteção, esse bem pode se tornar escasso e pode deixar de trazer os benefícios que antes possuía. Enfim, segundo Hardin (1968), para solucionar o problema e impedir que as ações em relação a ele afetem ainda mais o ecossistema que está inserido, é necessária uma regulação estatal diante do uso do recurso, para que esse venha a durar por muito tempo.     Apesar da floresta ser de usufruto de toda a humanidade, a responsabilidade de sua proteção e fiscalização é brasileira (Júnior, 2020). Com esse escopo, aconteceram, em 2019, mais de 50.000 focos de incêndio no bioma (INEP, 2019), além de mais de 3.000 quilômetros quadrados avisados de desmatamento (IBAMA, 2019). Já em 2021, houveram registros de mais de 82.000 focos de incêndios (INEP, 2021). Sendo assim, esses dados apontam um grande descuido do recurso natural por parte do país (El País, 2021). Por conseguinte, essa realidade mostra como a administração desse bioma está se aproximando, perigosamente, da tragédia dos comuns.    A intervenção francesa      É nesse contexto das queimadas que a “Sociedade Internacional”, apresentada por Hedley Bull, se torna importante. Para Bull (1969), as relações internacionais se constituem em uma Sociedade de Estados, em que os atores são especializados no estadismo, sendo suas decisões políticas voltadas ao âmbito global. Ele ainda diz que essa sociedade existe quando esses Estados se juntam, vinculados por um conjunto de regras e normas conjuntas e participantes de instituições comuns (Bull, 1995). Então, todos os Estados fazem parte dessa sociedade, com as suas ações tomadas por estadistas que visam o bem global.     Além disso, para fundamentar os alicerces dessa sociedade, Bull propõe a ordem internacional, que se refere “ao padrão ou à disposição da atividade internacional que sustenta os objetivos básicos da sociedade de Estados” (Bull, 1995) e a justiça internacional, que são essas regras morais que “conferem direitos e obrigações aos Estados e às Nações” (Bull, 1995), tais como o respeito à soberania e a resolução diplomática dos conflitos.      Por isso, nesse período, enquanto ocorria essa tragédia dos comuns amazônica, o presidente francês Emmanuel Macron alertou que era preciso retomar cuidados com a Amazônia, uma vez que essa representava uma forte influência em aspectos climáticos e ambientais do planeta (Estado de Minas, 2019). Entretanto, o então Presidente da República, Jair Bolsonaro, mostrou várias vezes o descaso com a situação da floresta, acusando o presidente francês de sensacionalismo e colonialismo, além de deixar parceiros políticos maldizerem o estadista (ibid, 2019). Em 2021, novas atitudes do presidente brasileiro, como o de enfraquecer o órgão responsável pelo monitoramento dos incêndios (El País, 2021), fizeram que o estadista francês argumentasse que, caso o país não mudasse seu comportamento perante as questões ambientais, a França não iria assinar o acordo de livre comércio entre União Europeia e Mercosul (UOL, 2021), o que, por sua vez, decorreria em desvantagens econômicas para o Brasil.     Com a mudança política em 2022 e a mudança estratégica no tocante à questão amazônica, o Brasil recebeu 20 milhões de euros para o Fundo Amazônia, além da contribuição individual de cada país (Agência Brasil, 2023). Isso revela como um diferente comportamento da sociedade internacional se torna benéfica: para o país, que recebeu capital para investir em seu cuidado, e para o doador, que verá os bons resultados ambientais do grande bioma.     É nesse enredo que se mostra a importância da sociedade internacional. John Vincent (1986) defende que, mesmo havendo a necessidade intrínseca de respeitar a soberania dos Estados, a humanidade, como um todo, possui os direitos humanos e, a fim de garanti-los, a intervenção humanitária, como foi no caso da ameaça econômica francesa ao Brasil, é legitimada. Assim, sem medidas drásticas, o estadista francês tomou uma decisão diplomática para manter a ordem internacional, visando o efetivo uso da Floresta, e fazer a justiça internacional, ao impedir que o presidente brasileiro desrespeitasse as normas da sociedade, trazendo a resolução do conflito a esse contexto.  Portanto, essa atitude é equivalente à medida estatal proposta por Hardin para solucionar a tragédia dos comuns, visto que, em prol da sociedade internacional, Macron tomou uma ação que instigaria o presidente brasileiro a seguir e buscar as normas de regulamentação da Amazônia, sendo possível aumentar a fiscalização e o combate aos incêndios, que, em consequência, faria o uso desse recurso comunitário ser controlado e ecologicamente seguro.      Conclusão     Por fim, esse evento mostra como a resolução diplomática da sociedade internacional, no caso representada e atuada por Macron, foi eficaz para tratar problemas da ordem da tragédia dos comuns, em relação às queimadas, comparando sua atitude como a de um Estado ao seu território, como proposto por Hardin.      Em suma, depois da Resolução da AGNU, o meio ambiente se mostra cada vez mais como uma grande preocupação internacional (O’Neil, 2009), ao passo que tange todas as nações e, por isso, deve ser tratado com mais rigor, visando um desenvolvimento sustentável, o qual se caracteriza como um “desenvolvimento que atenda as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de atender as suas” (Comissão…, 1988). Com isso, o uso do meio ambiente, como um recurso comunitário, pode ser mais eficaz e perene, sendo provado que, utilizado de certo modo, tem potencial para suprir as necessidades das gerações atuais e, no futuro, ser capaz de suprir, de modo justo e digno, as das gerações futuras.   Referências ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS (AGNU). Resolução 76/300, 2022. Disponível em: <https://undocs.org/Home/Mobile?FinalSymbol=A%2FRES%2F76%2F300&Language=E&DeviceType=Mobile&LangRequested=False>. Acesso em: 09 de maio de 2023.   BOLETIM de qualificação dos alertas de desmatamento na Amazônia Legal. Ibama, 2019. Disponível em: <https://www.gov.br/ibama/pt-br/centrais-de-conteudo/arquivos/arquivos-pdf/boletim-de-qualificao-dos-alertas-de-desmatamento-na-amazonia-legal-abril-2019-pdf>. Acesso em: 05 de maio de 2023.   BOLSONARO e Macron: entenda como começou a crise entre os presidentes. Estado de Minas, Belo Horizonte, ago 2019. Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2019/08/26/interna_politica,1080030/bolsonaro-e-macron-como-comecou-a-crise-entre-os-dois-presidentes.shtml>. Acesso em: 05 de maio de 2023.    BULL, Hedley. International Theory: The Case for a Classical Approach. In: KNORR, K.; ROSENAU, J. N.. Contending Approaches to International Politics. Princeton : Princeton University Press, 1969.   BULL, Hedley. The Anarchical Society: A Study of Order in World Politcs. 2ª edição. Londres: Macmillan, 1995.    COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO (CMMAD). Nosso futuro comum. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1988. FRANÇA diz que Amazônia não é só dos brasileiros e não assina com Mercosul. UOL, São Paulo, maio 2021. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/05/20/franca-diz-que-amazonia-nao-e-so-dos-brasileiros-e-nao-assina-com-mercosul.htm>. Acesso em: 05 de maio de 2023.   GOVERNO Bolsonaro enfraquece o INPE e retira do órgão divulgação sobre dados de queimadas. El País, São Paulo, jul 2021. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2021-07-13/governo-bolsonaro-enfraquece-o-inpe-e-retira-do-orgao-divulgacao-sobre-dados-de-queimadas.html>. Acesso em: 05 de maio de 2023. HARDIN, Garret. The Tragedy of the Comuns, Science, vol. 162, n 3859, dez 1968, pp. 1243-1248.    INFOQUEIMA: Boletim mensal de Monitoramento e Risco de Queimadas e Incêndios Florestais. Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INEP), Brasília, 2019. Disponível em:  <https://queimadas.dgi.inpe.br/queimadas/portal/outros-produtos/infoqueima/home>. Acesso em: 05 de maio de 2023.   INFOQUEIMA: Boletim mensal de Monitoramento e Risco de Queimadas e Incêndios Florestais. Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INEP), Brasília, 2021. Disponível em: <https://queimadas.dgi.inpe.br/queimadas/portal/outros-produtos/integrado/documentos/012_RelAgregadoDETER_2021_082021_12.pdf>. Acesso em: 05 de maio de 2023.   JACKSON, Robert; SORENSEN, George. Introdução às Relações Internacionais. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.   JÚNIOR, Henrique Lúcio da Cruz Peixoto. A Geopolítica da Amazônia: os recursos naturais estratégicos e a presença do Exército Brasileiro. Rio de Janeiro, 2020. Disponível em: <MO 6344 – PEIXOTO.pdf (eb.mil.br)>. Acesso em: 05 de maio de 2023.   MANKIW, N. Gregory. Introdução à Economia. 6ª edição. São Paulo: Cengage Learning, 2014.   O’NEIL, K. The Environment and International Relations. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.   POR que a Amazônia é importante?. WWF Brasil, Brasília, 2023. Disponível em: <https://www.wwf.org.br/natureza_brasileira/areas_prioritarias/amazonia1/bioma_amazonia/porque_amazonia_e_importante/>. Acesso em: 05 de maio de 2023.    UNDP. A world of development experience. Site do United Nations Development Programme, 2007. Disponível em: <http://www.undp.org>. Acesso em: 03 de maio de 2023.   UNIÃO Europeia fará doação de 20 milhões de euros para Fundo Amazônia. Agência Brasil, Brasília, junho 2023. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2023-06/uniao-europeia-fara-doacao-de-20-milhoes-de-euros-par-fundo-amazonia>. Acesso em: 14 de dezembro de 2023.   VINCENT, R. J.. Human Rights and International Relations. Cambridge: Cambridge University Press, 1986.                  

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    Entre o Peso e o Dólar: A ascensão de Javier Milei João Paulo Urbano O caótico cenário político da Argentina foi atravessado por uma onda de extrema-direita que invadiu o país e inverteu a ordem histórica da política nacional. Com a ascensão de Javier Milei, a Argentina viu suas duas forças mais tradicionais, o peronismo e o anti-peronismo, serem suplantadas por um grupo político caracterizado por serem 'outsiders', ultraliberais e autoproclamados 'anarco-capitalistas'. Na figura central de Milei, a extrema-direita emplacou uma derrota ao atual Ministro da Economia, o peronista de direita, Sérgio Massa, em uma eleição que inaugura uma nova era na política argentina. É a primeira vez desde a redemocratização, que um presidente eleito não estava estritamente atrelado às tradicionais correntes políticas do país. Inspirado pela linha econômica da escola Austríaca, Milei foi eleito prometendo fechar o Banco Central e substituir o Peso como moeda para dolarizar o país (SQUIRES et al, 2023). Economista de formação, o presidente eleito centralizou seu discurso no plano econômico, já que a crise argentina se estende por décadas e a inflação se tornou cotidiana.  Foi nesse contexto que cresceu no país o descontentamento com o Kirchnerismo (de Néstor e Cristina) e com a direita mais tradicional, protagonizada pelo ex-presidente Mauricio Macri. Tanto nos governos dos Kirchner como no governo de Macri, a insatisfação popular se deu pelos inúmeros casos de corrupção, altas taxas de inflação e desemprego, e, sobretudo, por um alto sentimento de frustração contra o establishment político, ou, nas palavras de Milei, "la casta" (Dos Santos, 2018). Esse foi o cenário perfeito para o crescimento da extrema-direita. Ao se apresentar como "outsiders" e demonstrar insatisfação com a situação econômica do país, Milei e seu grupo conseguiram conquistar uma juventude que passou a maior parte de suas vidas em um país em crise. Esse apoio da juventude, no entanto, rapidamente se transformou em um apoio transversal, com diferentes partes da população, de diversas regiões, classes sociais e idades, acreditando que o programa de Milei merecia um voto de confiança (VÁZQUEZ, 2024). Com um forte apoio nas redes sociais, Milei e sua equipe souberam se comunicar com essa juventude insatisfeita. Em comparação a Massa, Milei tem mais de 18 vezes o número de seguidores em sua conta no TikTok. Nas ruas, os apoiadores de Milei se envolveram em uma "batalha cultural", na qual buscaram disputar as práticas agitativas tradicionalmente ligadas à esquerda (VÁZQUEZ, 2023). Esse conjunto de forças resultou na perpetuação de uma "derecha popular" que prega um "liberalismo de bases populares" e terminou por de fato conquistar as camadas baixas e médias da população argentina (VÁZQUES, 2023). Explicar a ascensão de Milei e do movimento político na Argentina é uma tarefa complexa que não pode ser concluída dentro dos limites desta análise. No entanto, aqui, procuraremos refletir sobre e destacar alguns pontos essenciais do fenômeno ocorrido no cenário argentino. Por um lado, é necessário compreender a história recente do país, que passou por anos de crises sem solução. Por outro lado, é fundamental observar como Milei e seu grupo aproveitaram essa conjuntura para promover seu projeto ultraliberal. Nesta análise, busco apenas iniciar o debate sobre a ascensão da extrema-direita argentina, sem a pretensão de esgotar as discussões. A história de uma crise histórica Desde o início da ditadura militar de 1976, iniciou-se um acelerado processo de desmantelamento dos setores industriais produtivos e um esfacelamento do mínimo de seguridade social alcançado nos anos do peronismo. A miséria e a desigualdade herdadas da ditadura militar foram seguidas por governos neoliberais que apenas aprofundaram o estado de crise. As dívidas externas adquiridas no período ditatorial passaram a marcar a política nacional. As constantes negociações perante o FMI visando a renegociação da dívida se fizeram presentes em todos os governos subsequentes (DOS SANTOS, 2018). Desde os anos de Carlos Menem, presidente argentino entre 1989 e 1999, as medidas neoliberais tomadas na época enfraqueceram a moeda nacional, o Peso, e criaram uma conversibilidade insustentável com o Dólar. A consequência foi uma dolarização indireta que enfraqueceu o poder de compra dos argentinos. Uma vez que a conversibilidade não poderia mais ser sustentada, a crise se agravou ainda mais. A situação chegou a um cenário tão crítico que, em 2001, já no mandato posterior de Fernando De La Rua, o país se viu afundando devido à dívida, e a população tomou as ruas contra a onda neoliberal que assolava o país (DOS SANTOS, 2018).  A crise foi tão intensa que De La Rua foi deposto, e os presidentes que assumiram após sua deposição não conseguiram se manter no cargo. No que ficou conhecido como "Argentinazo", o país teve 5 presidentes em um período de 1 semana (EL ALI, 2021). Aqui, é interessante analisar a contradição presente nesses processos. Menem era um peronista, enquanto De La Rua era um anti-peronista convicto. Entretanto, os dois presidentes mantiveram o mesmo ministro da economia, Domingo Cavallo, mantendo a mesma política econômica e aprofundando a crise ao longo dos anos (DOS SANTOS). "La casta" política, que Milei costuma apontar, é entendida por esses grupos tradicionais, que, mediante seus programas políticos em teoria antagônicos, apresentam as mesmas políticas quando chegam ao poder. Os anos subsequentes, entretanto, marcaram o surgimento de um novo tipo de peronismo, que ganhou vida própria: o Kirchnerismo. Dentro de uma conjuntura internacional favorável, com o boom mundial das commodities e o início da onda progressista na América do Sul, o governo de Néstor Kirchner, de 2003 a 2007, alcançou uma rápida aceleração econômica, aliado a programas de cunho assistencialista. Em um primeiro momento, o país declarou moratória perante a dívida, o que permitiu redirecionar o dinheiro destinado ao pagamento da dívida, possibilitando um maior investimento nos setores produtivos do país. Kirchner, então, conseguiu diminuir a desigualdade, o desemprego e obteve uma redução drástica da inflação. Em um segundo momento, a dívida foi renegociada com êxito, conferindo a Kirchner um forte apoio popular (DOS SANTOS, 2018). Com o fim do boom das commodities, as medidas econômicas até então sustentadas principalmente na expansão do setor primário se mostraram insuficientes para superar a crise no país. Agora, no mandato de Cristina Kirchner, de 2007 a 2015, os mesmos problemas de antes retornaram à política nacional. Na prática, esse período de crescimento econômico não desafiou a estrutura de dependência do capitalismo argentino e, em vez disso, apenas reforçou o processo de desindustrialização do país diante do crescimento do setor agroexportador. Segundo o professor Fabio dos Santos: Em síntese, analisando o perfil da economia e das relações de trabalho durante os governos Kirchner, observa-se que o padrão de acumulação legado pelas reformas que remontam à ditadura se perpetuou, a despeito de melhoras que têm como referência comparativa a crise mais grave que o país já viveu. (..) Sob o kirchnerismo, o motor da economia argentina foi a exportação primária, notadamente a soja, acompanhada por hidrocarbonetos e um inédito crescimento na exploração de minérios. (DOS SANTOS, 2018.) O fortalecimento do agronegócio custou muito caro aos Kirchner. Notavelmente, os latifundiários argentinos, ao serem fortalecidos por políticas que valorizavam a venda de produtos primários, passaram a ser uma classe política determinante no cenário nacional. No governo de Cristina, uma proposta de aumento da tributação do superlucro do agronegócio dividiu o país e uniu o patronato rural contra o governo. A proposta foi aprovada no congresso e levada para o senado, onde foi recusada. O voto de minerva caiu nas mãos do vice-presidente de Cristina, que recusou a proposta, dando a vitória ao agronegócio. Desde então, a classe latifundiária do país tem crescido como um polarizador da política argentina, possuindo um caráter notadamente anti-peronista e reacionário. Não à toa, o desgaste político ocasionado pela crise econômica e pelo enérgico embate com os latifundiários abriu caminho para a eleição de Maurício Macri, um político da direita liberal (DOS SANTOS, 2018). Macri, seguindo a cartilha econômica da direita, contribuiu para aprofundar ainda mais a crise no país. A dívida externa voltou a aumentar, e o número de desempregados cresceu para cerca de 1,5 milhão de argentinos (CENTENERA, 2016). Macri foi sucedido por Alberto Fernández, que tinha Cristina Kirchner como vice-presidente. Fernández também falhou em encontrar soluções para a crise, que se agravou, especialmente no cenário da pandemia de COVID-19. Nas ruas, a insatisfação com "la casta" cresceu cada vez mais. Fernández enfrentou a resistência da direita, que via as medidas protetivas relacionadas à pandemia de COVID-19 como uma "tirania comunista". O distanciamento social era considerado uma tentativa de reprimir a juventude insatisfeita de manifestar seu descontentamento (VÁZQUEZ, 2024). O kirchnerismo perdeu força, permitindo que outras forças políticas ganhassem destaque. Novamente, na Argentina, a sucessão de grupos tradicionalmente históricos e supostamente antagônicos foi incapaz de resolver a crise econômica. A alternância de poder na teoria representava, para a população argentina, a continuação da crise e da estagnação. Milei e o Abismo da Extrema-Direita Nesse cenário de instabilidades políticas, não foi surpresa notar o crescimento da extrema-direita argentina. Acompanhando o movimento internacional, Milei é para a Argentina o que Bolsonaro é para o Brasil e Trump para os Estados Unidos. As semelhanças entre esses movimentos são evidentes e não é à toa que Milei e sua base militante reivindicam abertamente os governos de Bolsonaro e Trump como experiências políticas positivas. Por outro lado, Milei tem suas peculiaridades que definem a identidade do movimento ultradireitista argentino. Com o cabelo sempre desalinhado, um jeito escrachado e direto de falar, Milei ganhou popularidade ao criticar os grupos tradicionais argentinos e prometer mudanças, principalmente no campo econômico. Entretanto, o presidente construiu em torno de si um personagem extremamente caricato que foi essencial para diferenciá-lo dos políticos tradicionais. Uma das maiores expressões desses momentos, foi quando o presidente, afirmou que o espírito de seu falecido cachorro Conan ainda o acompanhava todas as noites e o aconselhava em suas decisões (JAVIER…, 2023). Esse movimento serviu para consolidar a popularização de Milei transformando-o no principal candidato das eleições e consequentemente, em presidente eleito. Além desse aspecto mais "teatral", o que o presidente e seu grupo conseguiram na prática foi de fato bastante eficaz. Reconhecer que a insatisfação popular com a economia era o cerne da política argentina fez com que Milei elevasse o tom contra as medidas econômicas atuais. Ele foi um dos poucos candidatos a demonstrar verdadeira insatisfação com a direção do país. Ao contrário de Massa, seu oponente no segundo turno, que, por ser o atual Ministro da Economia, enfrentava uma contradição bastante óbvia - se já era o Ministro da Economia atual, por que não resolveu a crise? -, Milei reforçou em seus discursos soluções simples e diretas. Culpou o Banco Central (BC) e prometeu encerrar as atividades do BC. A partir disso, também prometeu abandonar o Peso e adotar exclusivamente o Dólar como moeda na Argentina. Por mais incertas que essas medidas possam parecer na prática, os cidadãos argentinos, saturados das mesmas "soluções" de sempre, viram em Milei um candidato que trazia algo diferente. A direita argentina soube, sobretudo, capitalizar uma nova geração de jovens que, desde que nasceram, testemunharam a Argentina passar por inúmeras crises e uma forte instabilidade política. Para os filhos de uma classe média mais bem remunerada, a solução para um futuro melhor é sair do país para estudar e trabalhar no exterior. A Argentina de hoje não oferece oportunidades atraentes para esses jovens. Como mencionado anteriormente, Milei soube utilizar as redes sociais para adotar uma linguagem que se conectava com a juventude e foi extremamente bem-sucedido nesse empreendimento. Ao lado de Milei, um casal de jovens influenciadores opera como os responsáveis pelo seu marketing nas redes. Iñaki Gutiérrez, de 23 anos, e sua noiva, Eugenia Rolón, de 21 anos, desempenham um papel fundamental nessa estratégia. Gutiérrez costuma aparecer nos vídeos do TikTok fazendo perguntas diretas a Milei sobre medidas econômicas, opiniões sobre propostas de candidatos e avaliações das medidas do governo atual. As respostas são sempre fornecidas de maneira simples e direta, transmitindo a ideia de um presidente que "joga limpo" e explica os problemas e soluções econômicas de maneira clara e objetiva. Já Rolón se define no Twitter como uma militante de direita e do antifeminismo. A capa da sua rede social apresenta uma foto de Trump, Bolsonaro e Milei atrás das respectivas bandeiras de seus países. Rolón também desempenha um papel ativo na campanha online e afirma que Milei fornece respostas que nenhum outro político argentino conseguiu dar. O sucesso do presidente é observado quando se compara os seus números com os dos outros candidatos. A conta de TikTok de Milei possui cerca de 1,5 milhão de seguidores, enquanto a de seu oponente, Sérgio Massa, tem apenas 238 mil.  Outro traço reivindicado por Milei é o seu desprezo pelas pautas sociais. Nesse aspecto, o movimento que o presidente argentino apoia é bastante semelhante ao que representa o Bolsonarismo no Brasil. Todas as pautas associadas à esquerda e aos movimentos sociais são rejeitadas e desqualificadas como preocupações “de comunistas”. Milei se posiciona contrariamente ao feminismo e também contra o aborto legal, conforme foi aprovado recentemente na Argentina. No entanto, muitas mulheres que participaram do movimento pela descriminalização do aborto acabaram votando no atual presidente entendendo que a economia era a questão central. Milei também viralizou em um vídeo no qual remove adesivos representando os ministérios do país, jogando-os fora um por um e deixando apenas aqueles que, em sua visão, seriam essenciais. O Ministério da Educação foi descartado, pois, nas palavras de Milei, era considerado um “Ministério de Doutrinação". Os ministérios relacionados à seguridade social também foram descartados, sendo acusados de prejudicar o desenvolvimento do país. No final, restaram apenas ministérios como o da Economia e da Defesa, baseando-se na clássica concepção de que o Estado deve interferir o mínimo possível na economia e permitir que o livre mercado atue. Conclusão Por mais peculiar que pareça, a ascensão de uma figura como Javier Milei no cenário político da Argentina é mais bem compreendida ao considerar os contextos históricos que levaram a essa vitória. Um país que enfrenta anos de crise, no qual os grupos políticos tradicionais não conseguiram oferecer soluções eficazes para a população, abre espaço para figuras como Milei ganharem força. Seguindo as tendências extremistas que influenciaram o cenário internacional, Milei traz uma nova perspectiva para a extrema-direita na região e contribui para o que pode ser a nova onda de extrema-direita da América Latina. Com uma significativa parcela da juventude ao seu lado e as classes médias e baixas reivindicando para si um “liberalismo de bases populares”, a extrema-direita está ganhando força e demonstra, na prática, que deixa os grupos tradicionais de esquerda desorientados e perdidos na ação política concreta. No entanto, como vimos com Bolsonaro no Brasil, o custo humano da extrema-direita no poder é extremamente alto. Milei no poder é a representação do que há de pior na política latino-americana; sua vitória é, em grande medida, a derrota da Argentina. Referências CENTENERA, M. Argentina tem 1,4 milhão de novos pobres desde que governa Macri. 2016. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/04/01/internacional/1459536107_743633.html. Acesso em: 18 nov. 2023. EL ALI, J. Cinco presidentes en 11 días, una prueba a la institucionalidad argentina. 2021. Disponível em: https://www.telam.com.ar/notas/202112/577669-dos-semanas-cinco-presidentes-institucionalidad-argentina.html. Acesso em: 18 nov. 2023.   JAVIER Milei, candidato à presidência da Argentina, tem clones de seu cachorro que morreu em 2017. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/10/24/javier-milei-candidato-a-presidencia-da-argentina-tem-clones-de-seu-cachorro-que-morreu-em-2017.ghtml. Acesso em: 18 nov. 2023.   SQUIRES, S. et al. Milei promete pagar dívida da Argentina, fechar BC, deixar Mercosul e romper com a China. Disponível em: https://valor.globo.com/mundo/noticia/2023/08/16/milei-promete-pagar-divida-da-argentina-e-fechar-banco-central.ghtml. 2023. Acesso em: 18 nov. 2023.   VÁZQUEZ, Melina. "242 “Change Is to the Right” Youth Participation and “New Right-Wing Formations” in the 2018–2021 Cycle." In Argentina's Right-Wing Universe During the Democratic Period (1983–2023) Processes, Actors and Issues, pp. 242-258. Routledge, 2024.   ______. Los Rappi de Milei. 2023. Disponível em: https://www.revistaanfibia.com/los-rappi-de-milei/. Acesso em: 18 nov. 2023.      

  • Destaques

    RD Congo e coltan: uma crise por recursos?   Por Marina Morena Caires     A República Democrática do Congo (RDC) é um país localizado na África Central que detém a quarta maior população do continente africano, com 102 milhões de habitantes. Desde sua independência da Bélgica em 1960, a nação, anteriormente chamada de Zaire, passa por enorme instabilidade política, guerras e conflitos armados entre seus diversos grupos étnicos nacionais e de nações vizinhas. O país vive há décadas a maior crise humanitária do mundo, que afeta, atualmente, mais de 26 milhões de pessoas (UNICEF, 2023). Os números de pessoas em situações deploráveis continuem a crescer, como as 1.44 milhões de pessoas deslocadas desde janeiro de 2023 (UNICEF, 2023).  No centro da instabilidade, surge a discussão sobre a extração de coltan, uma mistura dos metais columbita e tantalita, cuja tantalita tem propriedades úteis em diversas indústrias, como a automobilística e a telefônica. O leste da RDC é rico nesse metal que alimenta conflitos na região. Sua exploração é um epicentro de violações contra os direitos humanos, colocando até crianças em situações deploráveis para sua comercialização. A presente análise tem como intuito evidenciar o papel do coltan nos conflitos na região leste do país e discutir seu lugar como causa primária ou como financiador deles.    O coltan: produção e exportação A tantalita é um metal com capacidade de resistência a altas temperaturas e a corrosão, grande força, ductilidade, entre outras, que levam ele a ser extremamente útil em indústrias eletrônicas, medicinal, militar, automobilística e química, entre outras (Auping et al., 2013).  O coltan é um dos muitos metais valiosos que existem e são explorados no país. A RD Congo, é o maior exportador mundial do metal, mantendo a liderança disparada em comparação a outros produtores. Em 2022, as minas do país produziram mais de 2 vezes a quantidade de coltan que o segundo maior produtor mundial, o Brasil, e o terceiro, a Ruanda (Pistilli, 2023). O último país é um dos que está ativamente ligado ao conflito na RDC, espacialmente no leste do território, onde há inúmeras reservas, e que se beneficia do metal congolês para alimentar a exportação ruandesa.  A extração do coltan é feita não só por grandes mineradoras, mas também por mineração artesanal e de pequena escala, realizada por indivíduos, famílias, trabalhadores e pequenas empresas (Auping et al., 2013). Essa atividade, na maioria, é irregular ou ilegal e acontece quando as pessoas não têm outra forma de renda, assim, fazendo até crianças e mulheres se colocarem em condições perigosas para a saúde (Materials World, 2005). Na República Democrática do Congo, esse fenômeno é prevalente e perpetua situações subumanas, além de contribuir para a competitividade do material, devido a sua exploração barata. O boom dos preços do metal nos anos 2000 gerou uma “febre do coltan” que fez com que diversas pessoas largassem tudo para tentar fazer dinheiro nesse mercado (ibid).    Os conflitos no Congo           A RDC é um país extremamente diverso, com mais de 200 etnias e diversas línguas oficiais, além dos dialetos locais, e a rivalidade entre esses grupos está na origem de diversas rebeliões que ocorrem desde a independência do país (ibid). Durante toda sua história, houve diversos conflitos por poder e controle do Estado, que sempre foi instável e falho. Cinco anos após a independência, no qual ocorreram diversos conflitos, o poder do país é assumido pelo ditador Joseph Mobutu, que liderou o país por 32 anos. Antes da queda de Mobutu, a Primeira Guerra do Congo (1996-1997) aconteceu. O genocídio em Ruanda, país vizinho, levou Tutsis e Hutus do país ao território congolês. Essa migração levou políticos na província de Kivu, no leste do Congo, a querer expulsar o grupo Tutsi que se estabeleceu no país, conhecidos como Banyamulenge, do território.  A existência de grupos armados formados de antigos apoiadores dos genocidas de Ruanda que não foram desarmados também era de preocupação para o governo do país vizinho. Assim, essas duas questões levaram Ruanda a invadir o Congo, apoiada por diversos outros governos africanos, iniciando a guerra e depondo Mobutu (ibid). Em seu lugar, Laurent Kabila assumiu o poder e, entre 1998 e 2003, presenciou a Segunda Guerra do Congo. O então presidente pediu a retirada de tropas ruandesas, ferindo a relação diplomática dos países e gerando protestos de congoleses Tutsis que levaram à invasão das tropas novamente. Em nome de um novo grupo, o Rassemblement Congolais pour la Démocratie (RCD), a Ruanda e a Uganda, depois Burundi, buscaram derrubar Kabila e assegurar suas fronteiras, afirmando que o Congo tinha grupos armados que ameaçavam seus territórios (Auping et al., 2013). O novo grupo Rassemblement Congolais pour la Démocratie (RDC) chegou a controlar o leste do país até seu desmembramento. O conflito só acaba com a morte de Kabila e a ascensão de seu filho à presidência, que assinou tratados de paz com Rwanda e Uganda.   O último conflito, que perdura até o presente, é o Conflito Kivu no Leste do Congo, nas províncias de Kivu do Norte e do Sul, onde há grandes conflitos étnicos, grupos armados e falta de serviços básicos, como saúde e educação, do Estado (Auping et al., 2013). Algumas dessas milícias são financiadas continuamente por Ruanda e Uganda, como o March 23 Movement (M23), que domina várias partes da região, que traficam minerais para esses países e se financiam com essa exploração (Auping et al., 2013).    O papel do Coltan       Em 2000, o Conselho de Segurança do ONU solicitou um relatório para que pudessem deliberar sobre a exploração ilegal de recursos naturais no RDC que criou O Painel de peritos sobre a exploração ilegal dos recursos naturais e outras formas de riqueza da República Democrática do Congo. Esse relatório indicou que, além de causar danos sociais, econômicos e ambientais na região, a exploração desses recursos naturais estava gradualmente se tornando o “motivo primário” para Rwanda e Uganda, mesmo que tenham invadido a RDC, a princípio, por motivos de segurança (Taka, 2017).   According to the report, illegal exploitation of resources by Burundi, Rwanda and Uganda took different forms, including confiscation, extraction, forced monopoly and price-fixing.  The first two forms reached proportions that made the war in the DRC a very lucrative business.  There are strong indications that, even if security and political reasons were the professed motivation to move into the eastern DRC, some top army officials clearly had economic and financial objectives. (ONU, 2001)       É inegável que a parceria entre companhias privadas e militares sustentam e financiam o ciclo de violência. No entanto, é importante entender se essa exploração ilegal realmente se tornou a causa primária a ser combatida. Campanhas internacionais apoiadas por ONGs e pela própria ONU que buscam, desde o início do conflito, focar no fim do “blood coltan” (coltan de sangue), buscaram unir apoio para parar o comércio do metal vindo dessas regiões exploradas por milícias.  Independente dessas inúmeras tentativas, a situação se mantém fundamentalmente inalterada, mesmo que o coltan nunca tenha recuperado as proporções que atingiu no seu boom de 2000 (Taka, 2017).    Coltan: causa primária ou perpetuante do conflito Existem várias abordagens distintas para compreender esse conflito, desde a análise das questões sociais, históricas e do Estado falho da RDC, até as econômicas. O debate entre greed vs grievance (ganância vs queixas), na qual as causas de ganância criam conflitos por questões econômicas e as de queixas por questões sociais, conduziu a visão internacional a crer na questão da ganância (Auping et al., 2013).  Isso acontece independentemente de estudos de 2008 que afirmam que somente 6% dos ganhos de grupos armados no conflito congolês vinham do coltan, sendo 62% da cassiterita e 28% do ouro (Auping et al., 2013). Outras nuances como os conflitos étnicos e religiosos, com milícias islâmicas também tentando invadir o país, foram pouco trabalhados no cenário internacional.    Conclusão          Se torna nítido que o conflito na República Democrática do Congo tem diversas camadas que tornam extremamente difícil apontar somente uma causa como primária ou primordial para ser resolvida pela comunidade internacional.      Em 2008, a ONU publicou outro relatório que comprovou que mesmo com suas campanhas, que buscam fazer empresas como a Nokia, Samsung e Motorola pararem de comprar coltan da região, o minério ainda era vendido em grandes quantidades na Europa e a Ruanda continuava contrabandeando ele para venda (Totolo, 2009).      Além disso, a ajuda humanitária para o conflito continua subfinanciada, sendo 80% dela de somente cinco doadores e recebendo menos de 74% das doações da Ucrânia em 2022, apesar de ter um número consideravelmente maior de pessoas necessitadas (NRC, 2023). Isso se dá por diversos fatores, desde o descaso internacional com conflitos africanos devido a questões sociais e econômicas, até a forma equivocada de tratar o conflito como um problema do coltan.      Como afirmou o World Bank após a Segunda Guerra do Congo, a mineração é vital para a recuperação econômica do país e o setor privado vai ser ator-chave nessa mudança (Bergh, 2021). Contudo, nesse momento de complexas teias de razões para o contínuo conflito, a comunidade internacional precisa deixar de tratar o coltan como uma das causas primárias do conflito e evidenciar o coltan como somente uma dos diversos fatores infortúnios, voltando seus esforços ao angariamento de fundos para ajuda humanitária.        Referências   AUPING, Willem et al. Coltan, Congo & Conflict. The Hague Centre for Strategic Studies (HCSS), 2023. Disponível em: https://hcss.nl/wp-content/uploads/2013/06/HCSS_21_05_13_Coltan_Congo_Conflict_web.pdf . Acesso em: 4 nov. 2023     BERGH, Sylvia et al. From ‘conflict minerals’ to peace? Reviewing mining reforms, gender, and state performance in eastern Democratic Republic of Congo. The Extractive Industries and Society, v. 8, n. 2, 2021. Disponível em: From ‘conflict minerals’ to peace? Reviewing mining reforms, gender, and state performance in eastern Democratic Republic of Congo - ScienceDirect. Acesso em: 4 nov. 2023     DR Congo: An unprecedented crisis goes ignored. Norwegian Refugee Council. 23 ago. 2023. Disponível em: DR Congo: An unprecedented crisis goes ignored | NRC. Acesso em: 4 nov. 2023     Nações Unidas. SECURITY COUNCIL CONDEMNS ILLEGAL EXPLOITATION OF DEMOCRATIC REPUBLIC OF CONGO’S NATURAL RESOURCES. 3 maio 2001. Disponível em: SECURITY COUNCIL CONDEMNS ILLEGAL EXPLOITATION OF DEMOCRATIC REPUBLIC OF CONGO’S NATURAL RESOURCES | UN Press . Acesso em: 4 nov. 2023     PISTILLI, Melissa. Top 5 Tantalum-mining Countries (Updated 2023). Investing News Network, 8 maio 2023. Tantalum-mining. Disponível em: Top 5 Tantalum-mining Countries (Updated 2023) (investingnews.com). Acesso em: 6 nov. 2023     TAKA, Miho. Colton Mining and Conflict in the eastern Democratic Republic of Cong. In: MCINTOSH, Malcolm; HUNTER, Alan. New Perspectives on Human Security. 2. ed. Nova York: Routledge, 2017, p 159-174. Disponível em: New Perspectives on Human Security - 1st Edition - Malcolm McIntosh - (routledge.com). Acesso em: 4 nov. 2023     TOTOLO, Edoardo. Coltan and conflict in the DRC. ISN Security Watch, 11 fev. 2009. Disponível em: Coltan and conflict in the DRC - Democratic Republic of the Congo | ReliefWeb. Acesso em: 4 nov. 2023     UNICEF. Humanitarian Situation Report No. 1. 13 set. 2023. Disponível em:UNICEF Democratic Republic of the Congo Humanitarian Situation Report No.1 (1 - 30 June 2023) - Democratic Republic of the Congo | ReliefWeb. Acesso em: 4 nov. 2023