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PET-REL

Gabriel Boaventura

 

O saber popular pode proporcionar importantes reflexões sobre nosso tempo. Diz-se que “em terra de cegos, quem tem olhos é rei”. O ditado evoca a superioridade daqueles que, entre os que ignoram, conseguem olhar, observar e perceber fatos e fenômenos. Utilizando um silogismo simples, pode-se entender que, se esses indivíduos — os que têm olhos — são reis, e reis são figuras que gozam de prestígio e poder, então esses indivíduos vivem em uma realidade que os valoriza e os coloca na posição de soberanos.

No entanto, a realidade traz consigo uma brutal inversão dessa lógica. Principalmente em tempos de guerra, os jornalistas — aqueles que têm olhos, os que conseguem observar, perceber e, mais importante, relatar — têm sido alvos sistemáticos da desvalorização e da perseguição de governos, de comunidades e de autoridades que violam direitos e desrespeitam as regras do jogo. Não à toa, o Direito Internacional Humanitário estabelece que os jornalistas em missão profissional em zonas de conflito armado devem ser considerados civis e, portanto, não podem ser alvo de ataques (Comitê Internacional da Cruz Vermelha, 2017).

Ocorre que, assim como o ditado popular, os marcos legais e jurídicos que deveriam proteger esses profissionais não encontram respaldo na realidade concreta. A violência contra jornalistas por parte das Forças de Defesa de Israel (FDI) não é um fenômeno recente — contudo, desde 7 de outubro de 2023, atingiu níveis sem precedentes, resultando no maior número de mortes de profissionais da imprensa já registrado na história mundial (León, 2025). A partir de tal cenário, essa análise tem como objetivo entender o impacto desses profissionais, em especial dos fotojornalistas, como verdadeiras testemunhas no conflito em questão, bem como refletir sobre os interesses que sustentam esse “cegamento” em massa.

 

Na Mira da Câmera, na Mira da Arma

 

A Faixa de Gaza há muito se consolidou como um dos lugares mais inóspitos para jornalistas, cinegrafistas e operadores de câmera. Por um lado, Israel restringiu o acesso desses profissionais a Gaza, permitindo apenas viagens escoltadas e controladas pelas FDI (Rufo; Gritten, 2024). Por outro, o governo israelense acusa jornalistas de terem participado, como terroristas do Hamas, no ataque de 7 de outubro (Mallinder, 2024), o que lhes tira o direito de serem tratados como civis. Tais acusações são veementemente desmentidas por veículos de mídia, como a Al Jazeera, que as classificou como “fabricadas” e pertencentes a uma tentativa de silenciar jornalistas remanescentes na região (Israel…, 2024).

Em outubro de 2025, a Repórteres Sem Fronteiras (RSF) apresentou à Corte Penal Internacional sua quinta queixa por crimes de guerra contra a imprensa em Gaza, reunindo trinta casos de jornalistas palestinos mortos ou feridos entre 2024 e 2025. Segundo a entidade, Israel recorre a campanhas de difamação, acusando jornalistas de “terrorismo” sem provas consistentes, o que legitima, perante a opinião pública, a eliminação desses profissionais e o controle da narrativa sobre o conflito (RSF apresenta…, 2025).

Ao registrar e difundir a realidade dos palestinos durante o conflito, esses indivíduos assumem um importante papel na representação da dor coletiva. É o que percebeu Susan Sontag quando afirmou que “as fotos são meios de tornar ‘real’ (ou ‘mais real’) assuntos que as pessoas socialmente privilegiadas, ou simplesmente em segurança, talvez preferissem ignorar” (Sontag, 2025, p. 10). O ato de registrar, nesse contexto, converte a câmera em uma arma simbólica contra o apagamento e o silêncio. Alguns profissionais palestinos entrevistados pela ONU revelaram, dentre outras coisas, que a guerra é pessoal para muitos deles (Gaza …, 2025). Eles fotografam como testemunhas, mas também como vítimas, registrando uma realidade da qual também fazem parte e que os reconhece como alvos.

Estima-se que mais de 270 jornalistas palestinos tenham sido assassinados desde o início dos confrontos (The names …, 2025). Essa cifra torna o conflito em questão o mais letal para os trabalhadores de mídia da história. Além disso, segundo o Repórteres Sem Fronteira (Bruttin, 2024), Israel tornou-se, no mesmo período, o país que mais prendeu jornalistas em razão direta do conflito em Gaza, ocupando atualmente a posição de terceiro maior cárcere de jornalistas do mundo.

Um caso emblemático dessa lógica de eliminação de vozes é da jornalista da Al Jazeera, Shireen Abu Akleh. Apesar de Abu Akleh estar acompanhada de outros repórteres, claramente identificável como jornalista, com capacete e jaqueta azul marcada com a inscrição “PRESS”, ela foi atingida por uma única bala disparada de forma precisa. Investigações indicaram que o disparo partiu de um soldado israelense — fato que, num primeiro momento, foi negado pelo governo de Israel, que depois recuou e admitiu (Mackenzie, 2022). 

Mas, afinal, onde reside o poder das fotografias e registros de guerra? Dentre as múltiplas respostas que podem ser dadas, pode-se afirmar que sem fotos, não há materialidade para o choque, não há “eixo” em torno do qual afetos e causas se cristalizam (Sontag, 2025). Impedir o trabalho dos jornalistas, matando e prendendo, é, em última instância, atacar a possibilidade de construção de memória coletiva. Ao mesmo tempo, a câmera não é apenas uma arma simbólica, é também um veículo afetivo, capaz de mobilizar e transformar emoções diante da dor alheia.

 

O Afeto e o Testemunho

 

    O trabalho do fotojornalista ultrapassa a dimensão informativa, atingindo a construção simbólico-afetiva dos corpos registrados. As emoções, segundo Ahmed (2013), não residem nos sujeitos ou nos objetos, mas circulam entre eles, produzindo efeitos de aproximação e afastamento. Nesse sentido, cada imagem de Gaza não apenas torna visível uma realidade, mas também faz circular afetos: o choque, o luto, a raiva e a solidariedade aderem às fotografias e aos corpos palestinos nelas retratados — crianças, famílias, hospitais destruídos —, convertendo-os em expressões vivas da dor compartilhada.

O testemunho dos jornalistas funciona, nesse aspecto, como um potencial catalisador de solidariedade global em torno da causa palestina. Enquanto Israel, por meio de seus veículos de comunicação oficial, busca fixar aos corpos palestinos a imagem do “terrorista” (Tamimi; Vargas, 2025), produzindo medo e justificando ataques, as imagens produzidas pelos jornalistas reorientam esses afetos, desestabilizando a narrativa hegemônica e reinscrevendo o sofrimento palestino no campo da denúncia ética.

Ainda, de acordo com Ahmed (2013), a dor, mesmo quando experimentada no corpo individual, não é privada, porque, além de ser mediada pela linguagem e cultura, ela exige reconhecimento social para ter sentido. Os jornalistas funcionam como a testemunha que garante a inteligibilidade da dor palestina. Israel, ao matá-los, busca romper essa mediação e dissolver a própria possibilidade de reconhecimento político do sofrimento — isto é, eliminar a memória coletiva da violência.

Murilo e De Paris (2025) demonstram a materialidade dessas ideias: entre maio e setembro de 2025, os protestos pró-Palestina aumentaram 43% em relação aos cinco meses anteriores, evidenciando a expansão e persistência da mobilização internacional em torno da causa palestina. Essa tendência é corroborada por dados jornalísticos, que registram manifestações reunindo de centenas a milhares de pessoas em diversas cidades do mundo — como Londres, Paris, Istambul e Rio de Janeiro — em defesa do cessar-fogo e do fim dos ataques israelenses (Manifestações …, 2025).

A reorientação afetiva global também reverberou no plano diplomático. A indignação internacional diante das imagens vindas de Gaza aumentou a pressão sobre governos ocidentais e reconfigurou o debate público sobre o conflito. Em 2024 e 2025, países historicamente aliados de Israel, como Reino Unido, França, Noruega e Espanha, reconheceram formalmente o Estado da Palestina (Mapa …, 2025). Essas mudanças de posicionamento ampliaram o isolamento internacional de Israel e expressou a crescente legitimação política da causa palestina.

Desse modo, a eliminação sistemática de jornalistas e profissionais de mídia perpetrada pelas FDI busca cumprir dois objetivos elementares: silenciar as testemunhas e bloquear a circulação de emoções capaz de reorientar o campo afetivo global em relação aos palestinos. Impedindo que a dor se torne visível, Israel não apenas suprime a informação, mas tenta interromper a formação de vínculos afetivos que possibilitam a criação de uma narrativa contra-hegemônica sobre o conflito. 

 

Considerações Finais

 

Diante do exposto, o jornalista, indivíduo que encarna o olhar e o testemunho, converte-se em um alvo dos regimes que buscam controlar ou impedir a circulação de informações e afetos sobre os objetos de violência. Os ataques a Gaza evidenciam essa lógica ao registrarem o maior número de jornalistas assassinados em um conflito na história.

Ao revelar o que se tenta apagar, as fotos e relatos tornam-se ferramentas de memória coletiva e organização política: eles produzem choques, constroem solidariedades e desestabilizam narrativas oficiais que pretendem justificar o extermínio de um povo. É por isso que o controle sobre o olhar — quem pode ver e quem pode ser visto — torna-se um campo de disputa tão importante. 

Assim, silenciar jornalistas é uma estratégia utilizada para destruir o registro da violência. No entanto, cada imagem e cada relato que rompe essa censura reafirma o poder de ver como ato político e ético. Contra o apagamento, o fotojornalismo em Gaza defende que, em terra de cegos, quem tem olhos não é rei, mas é revolucionário. 

 

Referências bibliográficas

 

AHMED, S. The Cultural Politics of Emotion. Routledge, 2013.

 

BRUTTIN, T. 2024 Round-UP: Journalists killed, detained, held hostage and missing. Reporters Without Borders, 11 dez. 2024. Disponível em:https://rsf.org/sites/default/files/medias/file/2024/12/RSF%20Round-up%202024%20EN.pdf. Acesso em: 4 out. 2025.

 

COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA (CICV). Os Protocolos Adicionais às Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949. Genebra: CICV, 2017. Disponível em: https://www.icrc.org/pt/publication/os-protocolos-adicionais-convencoes-de-genebra-de-12-de-agosto-de-1949. Acesso em: 20. set. 2025.

 

GAZA Through The Eyes Of Its Photographers. UN OCHA, 3 set. 2025. Disponível em: https://unocha.exposure.co/gaza-through-the-eyes-of-its-photographers. Acesso em: 20 set. 2025.

 

ISRAEL names Al Jazeera reporters as Gaza militants, network condemns 'unfounded allegations'. Reuters, 24 out. 2024. Disponível em: https://www.reuters.com/world/middle-east/israel-names-al-jazeera-reporters-gaza-militants-network-condemns-unfounded-2024-10-23/. Acesso em: 20 out. 2025.

 

LEÓN, L. P. Israel matou mais jornalistas que qualquer guerra da história mundial. Agência Brasil, Brasília, 27 ago. 2025. Disponível em: agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2025-08/israel-matou-mais-jornalistas-que-qualquer-guerra-da-historia-mundial. Acesso em: 10 set. 2025.

 

MACKENZIE, J. Israel admite que repórter da Al Jazeera provavelmente foi morta por suas forças. G1, 5 out. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/09/05/israel-admite-que-reporter-da-al-jazeera-provavelmente-foi-morta-por-suas-forcas.ghtml. Acesso em: 8 out. 2025.

 

MALLINDER, L. Shooting war: Gaza's visual storytellers under 'blatant attack. Al Jazeera, 3 fev. 2024 Disponivel em: www.aljazeera.com/features/2024/2/3/shooting-war-the-risks-faced-by-gazas-visual-storytellers. Acesso em: 20 set. 2025.

 

MANIFESTAÇÕES pró-Palestina reuniram milhares de pessoas no mundo. Agência Brasil, 4 out. 2025. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2025-10/manifestacoes-pro-palestina-reuniram-milhares-de-pessoas-no-mundo. Acesso em: 8 out. 2025.

 

MAPA mostra Israel isolado: veja quais países reconhecem o Estado palestino. UOL, 27 set. 2025. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2025/09/27/mapa-mostra-israel-isolado-veja-quais-paises-reconhecem-o-estado-palestino.htm. Acesso em: 8 out. 2025. 

 

MURILO, C; DE PARIS, C. Two years of global demonstrations in support of Palestine. Armed Conflict Location & Event Data, 3 out. 2025. Disponível em: acleddata.com/infographic/two-years-global-demonstrations-support-palestine. Acesso em: 5 out. 2025.

 

RSF apresenta quinta queixa à Corte de Haia por crimes de guerra contra a imprensa em Gaza. MediaTalks, 1 out. 2025. Disponível em: https://mediatalks.uol.com.br/2025/10/01/denuncia-crimes-guerra-jornalistas-gaza/. Acesso em: 8 out. 2025.

 

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SONTAG, S. Diante da dor dos outros. Companhia das Letras, 2025.

 

TAMIMI, T.; VARGAS, D. S. Propaganda vs. Truth: Israeli Propaganda and Palestinian Demonisation. E-International Relations, 13 fev. 2024. Disponivel em: www.e-ir.info/2024/02/13/israeli-propaganda-and-palestinian-demonisation. Acesso em: 4 out. 2025.

 

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