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Da UnB Agência

New challenges, new threats Os desafios do futuro presidente norte-americano

Cecília Dias

 

    Os Estados Unidos da América (EUA) têm enfrentado uma série de crises internas e externas que testam não apenas os limites de sua liderança global, mas também o próprio tecido social da nação. Neste momento, a economia encontra-se fragilizada, o cenário internacional se torna cada vez mais instável e a sociedade americana, profundamente polarizada. A questão que permanece é: como o próximo presidente dos EUA enfrentará esses desafios simultâneos? 

Com Kamala Harris e Donald Trump como os principais candidatos à presidência, a disputa eleitoral se mostra acirrada, apresentando margens mínimas entre ambos, conforme apontado pela ABC News (2024). Independentemente de quem assuma a Casa Branca nos próximos quatro anos, é inegável que o novo líder terá de manejar crises acumuladas ao longo da última década.

É uma tarefa difícil sintetizar as intercorrências que levaram os Estados Unidos ao cenário atual. Contudo, esta análise propõe trazer luz aos principais desafios que o futuro presidente enfrentará, explorando forças políticas e históricas que culminaram neste momento decisivo.

 

A sumária crise de legitimidade política

Desde o 11 de setembro, a securitização tomou conta do ideário norte-americano. A Invasão ao Iraque em 2003, exemplo de ilícito internacional, foi justificada pela possível ameaça que Saddam Hussein representava contra a segurança da nação — sem provas, no entanto, da inteligência dos EUA (Evans, 2004). A Guerra no Afeganistão em 2001 também se liga a esse cenário, e ambos os eventos foram persuadidos pela retórica neoconservadora da “missão da América de exportação da democracia” (Castro Santos, 2010).

Tais eventos, contudo, reverberaram na danificação da imagem internacional dos EUA na época — não somente pelo fato de que a invasão não foi aprovada pelos membros das Nações Unidas, mas também pelo resultado catastrófico na salvaguarda humanitária. Principalmente no que tange à Guerra do Afeganistão, o fracasso norte-americano em manter as forças talibãs fora do poder, mesmo depois de 20 anos de intervenção, sintetiza esse contexto.

Assim, as sucessivas intervenções norte-americanas na região do Oriente Médio, sob o auspício de uma “Guerra contra o Terror”, mais influenciaram na perda de legitimidade da nação do que em uma efetiva subtração dos grupos terroristas. Resultado disso é que a multiplicação de células terroristas independentes transnacionais, como as do Estado Islâmico, em muito são decorrentes da desestabilização central do grupo após ataques contra suas bases pelos EUA (BBC, 2017). Além disso, os subprodutos dos ataques e das atuações norte-americanas resultaram em milhares de mortes e em uma instabilidade política e econômica na região, sem que fosse impedido um spillover da violência local (Pecequilo e Forner, 2017).

Dispor somente às intervenções norte-americanas no Oriente Médio o efeito da perda de credibilidade de seus líderes é minar toda uma conjuntura de fatores sociais, econômicos e políticos da história recente. Por isso, ressalto somente que o 11 de setembro serve de marco para inaugurar uma era de perda de legitimidade das instituições, tanto pela fraca crença da população quanto dos atores internacionais no país, insuflada, ainda, pela Crise financeira de 2008. 

Essa crise de legitimidade demandou uma nova representação para tornar os Estados Unidos grande novamente, culminando na eleição de Donald Trump. Presença à parte na história norte-americana, não é sabido até que ponto Trump afigura-se como uma síntese das manifestações radicais de grupos extremistas, como visto na invasão ao Capitólio. Todavia, sua administração representou não apenas uma mudança política, mas sim uma reformulação cultural da presidência, que desafiou os pilares do liberalismo que há décadas definiram o posicionamento dos EUA no cenário global (Pecequilo, 2016).

O retrocesso em diversos assuntos de matéria social, migratória, de saúde e ambiental evidenciou uma ruptura com as normas estabelecidas e uma polarização crescente na sociedade americana (Ibid.). Nesse sentido, a administração de Trump promoveu políticas que favoreciam uma narrativa nacionalista e anti-imigração, acentuando divisões internas e alimentando o ressentimento entre diferentes grupos sociais. Soma-se, também, um estudo da Universidade Cornell indicando que o ex-presidente foi responsável por quase 40% das desinformações que circularam em aproximadamente 38 milhões de artigos publicados de janeiro a maio de 2020 (BBC, 2020).

Por isso, os desafios ante a reversão dessas crises estabelecidas marca a administração de Biden e reflete o cenário norte-americano desde 2001: lideranças instáveis, com a imagem da nação corroída no ambiente internacional; crise política, com a ascensão de movimentos radicais apoiados pelo ex-presidente; e crise econômica, com causas diretamente ligadas à gestão da pandemia. Desse modo, o presidente implementou uma série de programas de recuperação econômica e fortificou as relações da nação com as alianças, que haviam sido deixadas de lado na gestão Trump. Ele também operacionalizou uma imagem de que “os EUA estavam de volta”, seu slogan de campanha.

Vale ressaltar, todavia, que atualmente é visualizado um recrudescimento da inflação no país, corroendo o poder de compra da população e aumentando as desigualdades. Além disso, os efeitos das guerras em curso da Rússia contra a Ucrânia e de Israel contra o Hamas despertam suspeitas quanto ao modo que os Estados Unidos se colocam no mundo, ditando um sistema “extorsivo de proteção” sem precedentes (Payne e Silver, 2022). Assim, o nível de popularidade do presidente em curso despencou do início de sua posse para cá, gerando dúvidas quanto ao futuro da gestão do país. 

O que a incapacidade de sucessivos governos de romperem com o ideal de primazia dos EUA resultou foi em uma situação de “dominação sem hegemonia” da nação, na qual eles desempenham papel cada vez mais disfuncional no mundo (Ibid.). Desse modo, demonstra-se a limitação norte-americana de se dispor como a principal potência global neste novo século. Parafraseando Richard Lachmann (2020): à medida que o navio que são os EUA afunda, um novo capitão faz a diferença?

 

Nova década, novos problemas     

Incapaz de gerir por mais 4 anos uma das maiores potências mundiais, Biden deixou sua candidatura à presidência a partir de 2025 para a vice, Kamala Harris, que atualmente concorre com o ex-presidente Donald Trump.    Independentemente de qual seja o próximo presidenciável, as frentes múltiplas das crises — social, política, migratória e ambiental — tornam-se cada dia mais latentes, demandando um reposicionamento dos EUA diante do cenário internacional para a manutenção de sua imagem.

Desde o agravante da pandemia de COVID-19, os índices de bem-estar social norte-americanos têm se deteriorado. Relatórios mais recentes de diferentes organizações mostram que o nível de pobreza da nação vem aumentando nos últimos anos. Além disso, o enfraquecimento de normas ambientais e a suspensão de diferentes exigências de monitoramento ambiental refletem em pioras nos indicadores ambientais. O recrudescimento da migração, sem políticas adequadas de refúgio, também marginaliza parcela significativa da população. Outro fator simbólico é, também, a crise na saúde pública, ocasionada pela epidemia de Fentanil e outros opioides (HRW, 2021; U.S. Social Indicators, 2024; Moslimani e Passel, 2024). 

    Em adição, o Relatório de Avaliação de Ameaças Anual de 2024, em seu escopo, inclui concorrência estratégica entre potências, papel de atores não estatais violentos, desafios transnacionais — como as mudanças climáticas — e a proliferação de armas de destruição em massa como principais temas de ameaças existenciais aos EUA. Atribui às ameaças extremistas internas um papel central, cada vez mais articulado por meio das redes digitais, e coloca a China como principal adversária (Office…, 2024).

No geral, a inaptidão de gerenciar crises internas e externas aponta para um enfraquecimento progressivo da liderança dos EUA. A candidatura de Harris carrega consigo a responsabilidade de enfrentar uma conjuntura marcada por tensões exacerbadas e incertezas, enquanto a volta de Trump representaria a intensificação das divisões internas da sociedade e uma possível retração das alianças multilaterais dos EUA recuperadas ao longo dessa última gestão. Em análise recente de Stuenkel (2024), a vitória do ex-presidente seria celebrada em Moscou, Buenos Aires, Jerusalém, Budapeste, Riade e Pequim. 

Outrossim, no debate mais recente de ambos candidatos, foi possível visualizar uma diferença considerável entre a compostura política de ambos. Trump rechaçou seu discurso com falas agressivas, já Harris adotou um discurso mais conciliador (BBC, 2024). O modo de gestão perante crises ficou explícito: ao passo que Harris mantém um perfil mais defensivo, Trump “promete que acabará com elas” (CNN Brasil, 2024).

Para Kissinger (2014), a compreensão do legado de qualquer líder depende de uma avaliação de médio e longo prazo dos impactos de suas decisões, e, até o momento, o que se vê são ciclos de políticas que não resolvem as causas subjacentes das crises enfrentadas, com tentativas de contenção que não abordam questões estruturais, como a desigualdade crescente, o radicalismo político e a perda de competitividade econômica em relação a outras potências. Assim, qualquer que seja o resultado eleitoral, o modo do próximo presidente de reposicionar os EUA como um ator confiável e capaz de liderar globalmente dependerá não apenas de recuperações econômica e social robustas, mas também de uma postura política que apazigue as divisões internas e reconstrua a confiança na governabilidade do país — caso contrário, o novo capitão deixará o navio afundar. 

Considerações finais

O ínterim Trump demonstrou uma mudança significativa no modus operandi da política norte-americana, colocada em xeque pelo prejuízo que isso trouxe à imagem da nação. Contudo, é impossível dissociar o cerne dessas crises recentes com a empreitada da Guerra ao Terror e todas as suas implicações políticas e sociais.

Logo, a política dos Estados Unidos nas últimas décadas revela um cenário repleto de crises interconectadas, demandando um líder que enfrente os desafios econômicos e sociais e a profunda crise de legitimidade que assola o país. As tensões internas, exacerbadas por uma retórica divisiva e uma crescente insatisfação popular, ressaltam a necessidade urgente de um reposicionamento estratégico. Nesse viés, o próximo presidente deverá não apenas implementar políticas eficazes e estratégicas para combater as desigualdades sociais, mas também cultivar um diálogo que reconcilie as diversas parcelas da sociedade americana. 

Seja Harris, seja Trump, fato é que o próximo presidente norte-americano deverá se preocupar com diferentes variáveis ao longo de sua gestão. Uma vez que a figura presidencial é incumbida de muito peso político, e se acima de tudo a preocupação final da política dos Estados Unidos é sua manutenção como uma potência global, fica claro que o próximo presidente despenderá muito esforço pela frente, ou então a nação se mostrará efetivamente em declínio.

 

 ¹Trecho retirado do discurso de Joe Biden na 79ª Sessão da Assembleia Geral da ONU: “New challenges, new threats, new opportunities were in front of us.”

 

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