Mercy Mercy Me: avanços e retrocessos da agenda ambiental na Era do Antropoceno
Camila Gomes
Oh, mercy, mercy me
Things ain't what they used to be
What about this over crowded land?
How much more abuse from man can she stand?
- Mercy Mercy Me, Marvin Gaye
Ondas de calor na França, incêndios florestais no Havaí, inundações na Líbia, chuvas extremas no Sul do Brasil, secas históricas no Nordeste e queimadas sem precedentes em biomas brasileiros. O que esses acontecimentos têm em comum, para além de serem considerados "naturais", são seus aspectos acentuados quando comparados com ocorrências similares observadas no passado. Muitas dessas mudanças em acontecimentos naturais são, hoje, atribuídas a um conceito ainda pouco internalizado nas ciências sociais e humanas (Viola; Basso, 2016): o Antropoceno.
Ainda que mudanças periódicas do clima e a ocorrência de determinados fenômenos naturais sejam esperadas em função de especificidades geográficas de diferentes regiões, episódios extremos e atípicos como os observados atualmente têm sido debatidos em diferentes esferas ao redor do mundo. Notadamente a partir de 1970, a temática apresentou um crescente grau de relevância nas discussões internacionais e em ações de âmbito global que visavam, em algum grau, conscientizar, mitigar e/ou conter a continuidade do impacto humano no ecossistema terrestre.
Nesse contexto, pretende-se discutir na presente análise alguns dos maiores desafios para a definição e implementação de políticas ambientais em contexto global desde a década de 1990, assim como uma breve exploração sobre a Agenda 2030 e seu desempenho até 2024. Delimita-se tal período considerando a crescente evidência da agenda ambiental desde então, a começar pela criação da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas em 1992, e sua atual relevância. Pretende-se, a partir disso, ampliar a compreensão do por quê, se a contenção das mudanças climáticas é tão importante para áreas diversas como socioeconômicas (Gasper; Blohm; Ruth, 2011; Tol, 2018) e securitárias (Rashid et al., 2011), decisões nesse âmbito parecem ser tão custosas para os Estados ao ponto de serem preteridas com frequência.
Controvérsias e desafios para a implementação de políticas ambientais globais
A Era do Antropoceno, marcada pelo maior impacto das ações e interferências humanas no planeta (Pereira; Freitas, 2017), tem ganhado cada vez mais notoriedade. Tal destaque, porém, não é necessariamente positivo; em muito, a maior atenção para a Era tem se dado em decorrência da maior frequência e intensidade de fenômenos naturais. Seus efeitos são, na atualidade, observados em diversas partes do mundo e, tão diversas quanto suas formas, são suas consequências.
Tamanha diversidade complexifica um processo já difícil de estabelecimento de políticas eficientes pelos Estados na temática por exigir ações plurais e coordenadas entre múltiplos atores, estatais e não estatais. Sem que ações conjuntas de mitigação sejam estabelecidas, os esforços individuais de países tornam-se menos efetivos ao ponto de pouco resultarem em mudanças efetivas à região.
Portanto, considerando os efeitos transfronteiriços das mudanças climáticas, é imprescindível que ações em prol do clima não sejam implementadas isoladamente (Barros-Platiau; Varella; Schleicher, 2004) em âmbito nacional. Ainda que estas sejam importantes, devem estar em consonância com políticas aplicadas em âmbito internacional – e, mais que isso, devem ser parte de um esforço global conjunto.
A Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC), de 1992, determina que:
[...] as Partes devem proteger o sistema climático em benefício das gerações presentes e futuras com base na equidade e em conformidade com suas respectivas capacidades. Em decorrência disso, os países desenvolvidos que participam da Convenção devem tomar a iniciativa no combate à mudança do clima e seus efeitos, devendo considerar as necessidades específicas dos países em desenvolvimento, em especial os particularmente vulneráveis aos efeitos negativos da mudança do clima.
Além do exposto, e reconhecendo as divergências existentes entre os Estados, a Convenção Quadro ainda apresenta o que conceitua como "responsabilidades comuns, porém diferenciadas". Ao tempo em que demonstra como as responsabilidades de cuidar do meio ambiente são comuns a todos os países, tal termo abrange a existência de desigualdades e considera que, como nem todos os países partem de um mesmo ponto, não há como terem todos o mesmo grau de responsabilidade na busca pela proteção ao meio ambiente.
Com isso em vista, os países considerados desenvolvidos teriam obrigações – voluntárias, uma vez que, de modo geral, convenções e tratados na temática de meio ambiente não possuem efeito vinculante – mais ambiciosas e abrangentes do que países em desenvolvimento. Tal distinção se dá, principalmente, em função dos respectivos poderes econômicos superiores de países considerados desenvolvidos (em muito conquistados a partir de processos intensos de degradação do meio ambiente e de aumentos acentuados nas emissões de gases de efeito estufa). A ideia de compromissos voluntários sucedeu-se em documentos seguintes, flexibilizando e possibilitando saídas para que os compromissos assumidos não fossem cumpridos caso estes em algum momento surgissem como barreiras para outros objetivos priorizados pelos atores.
O respeito à soberania dos Estados, princípio primordial para a manutenção do atual sistema internacional, surge como frequente impasse no estabelecimento de políticas globais mais rigorosas. Sem um ator fiscalizador e que possua capacidade de supervisionar e coagir a implementação de políticas eficazes – ou, ao menos, as pré-estabelecidas –, não há garantias de que os Estados agirão de acordo com o definido na UNFCCC (1992), protegendo o sistema climático em prol das gerações presentes e futuras.
Para além, outro fator que dificulta consideravelmente a implementação de tais políticas é a ausência de consenso no cenário internacional sobre como instituir políticas de contenção, sem que isso beneficie determinadas nações em detrimento de outras. Tal posicionamento segue em direção contrária ao conceito de "responsabilidades comuns, porém diferenciadas", mas aparenta ser a posição atual predominante.
Ainda assim, considerando a característica anárquica do sistema internacional em voga, não se pode menosprezar a importância que acordos sem características vinculantes possuem, mesmo com a ausência de obrigatoriedade por parte dos signatários. Nesse sentido, a Agenda 2030, um Plano de Ação Conjunto resultado da COP21, surge como a iniciativa recente que mais se popularizou fora da agenda estritamente ambiental. Tal popularização, porém, não necessariamente representou ampla implementação de ações que buscassem alcançar os objetivos propostos.
A Agenda 2030: um fracasso envolto de pequenos progressos
Seguindo a ideia central implementada na Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992, a ideia de desenvolvimento sustentável e de "governança por metas" (Galvão, 2022) volta a ganhar grande destaque na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. O referido Plano de Ação, compromisso assumido pelos 193 Estados-membros da ONU em 2015, propõe uma governança a partir de objetivos globais e se sustenta em três pilares imprescindíveis para o alcance de um desenvolvimento sustentável: social, ambiental e econômico (ONU Brasil, 2015; Galvão, 2022).
Tais pilares se dividem e convergem em 17 eixos temáticos, os denominados "Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)". A Agenda propõe, através dos ODS, participação ativa de atores não-estatais, reconhecendo, por meio disso, que dificilmente os objetivos audaciosos poderiam ser alcançados sem cessão de parte da soberania estatal para isso. Os referidos objetivos abrangem estratégias e metas a serem alcançadas até 2030, de forma a, dentre outros, “proteger o planeta da degradação [...] tomando medidas urgentes sobre a mudança climática, para que ele possa suportar as necessidades das gerações presentes e futuras” (idem.) antes de alcançar o ponto de não retorno.
A realidade é que, considerando que se, atualmente, a humanidade vive em seu auge de disseminação de informação, avanços tecnológicos e criação de renda, a implementação de agendas que visam garantir a manutenção do planeta de forma a “suportar as necessidades das gerações presentes e futuras” (ONU Brasil, 2015), por se tratar de consequências comuns, não deveria ser tão desafiadora. Ainda assim, é. Em uma crise do multilateralismo, em que a vontade política de cooperar em âmbito mais amplo se dissipa (Barros-Platiau; Soendergaard, 2021) cada vez mais, alcançar as metas estabelecidas ainda parece distante. Há 6 anos de 2030, parece já ser possível prever que o compromisso de “não deixar ninguém para trás” não será alcançado.
Sendo um objetivo que já era utópico e demasiado idealista em sua concepção, a proposta da Agenda não deve ser amplamente cumprida (Galvão, 2022) pelos Estados – tampouco suficientemente para conter o atual ritmo de degradação causada pela interferência humana no ecossistema terrestre. Conforme afirmado por Luiz Marques (2023), o colapso ambiental não é mais uma ideia futura e distante, é uma realidade já em curso e, se não contida, tende a uma curva de aceleração cada vez maior. Para mudar o caminho já sendo trilhado, é necessário deter a degradação de ecossistemas e empenhar-se na reconstrução do que foi destruído desde 1950 (Marques, 2023), algo possível apenas em um sistema multilateral que funcione, reconheça e trate a problemática como ela é: indissociável, transfronteiriça e coletiva.
No entanto, mesmo em um cenário que não parece favorável, não se pode desconsiderar o papel da Agenda 2030 na democratização das discussões relacionadas ao sistema climático. Mesmo que seus objetivos não sejam alcançados até a próxima década, a Agenda foi responsável por popularizar os processos e a própria discussão sobre desenvolvimento sustentável em âmbito global. A partir de objetivos de desenvolvimento sustentável apresentados de forma simplificada e que se tornam populares, a compreensão da problemática torna-se mais acessível e viabiliza a participação social em maior escala.
Presente em tantos ambientes, de inserção em realidades locais à presença mais significativa em espaços decisórios, a Agenda 2030 pode não cumprir com as 169 metas propostas, mas traz luz ao tópico e quebra barreiras ao conseguir se popularizar e incentivar a busca por sua aplicação. Ainda assim, não se pode ignorar a falha (ou ausência de interesse) do sistema internacional em se comprometer, verdadeiramente, com o cumprimento de metas mais audaciosas em prol da mitigação de ações que intensificam as mudanças climáticas cada vez mais.
Considerações finais
Conforme interpretado por Marvin Gaye na canção Mercy Mercy Me, até que ponto o planeta aguentará em um ritmo acelerado de exploração, como é o atual, sem ir em direção a um colapso definitivo e sem contornos? Conforme defendido por Marques (2023), se mantida a atual tendência humana de interferência, tal futuro, que já não parece tão distante, será definitivamente a nova realidade a qual a humanidade precisará tentar se adaptar em prol de sua própria sobrevivência. Ceteris paribus, as ondas de calor devem ser cada vez mais comuns, assim como incêndios generalizados. Secas, chuvas e calor extremo também tenderão a compor o “novo normal”, ao qual nem todos conseguirão se adaptar.
Mesmo com os avanços e estagnações na agenda ambiental desde o início da Era do Antropoceno, é necessário reconhecer, e, ainda mais, compreender a complexidade e intensidade da questão, de forma que esta esteja presente e seja discutida seriamente em âmbito global. Uma possível solução para o problema vai além do puro reconhecimento de sua existência; perpassa por encará-lo de modo realista e buscar por implementações e vontade, principalmente política, para tal. De nada adiantam objetivos utópicos e demasiadamente grandiosos sem que haja o mínimo de comprometimento real com o problema, além de engajamento para que as questões sejam mitigadas e contidas.
Como disse Le Prestre (2001), “os problemas do meio ambiente partem do político e finalizam no político”. Ainda que seja verdade, entre o início e o fim há o meio, espaço em que é imprescindível que as diversas camadas da sociedade estejam minimamente em harmonia quanto ao mesmo objetivo: agir em prol da mitigação dos danos já causados pelo homem ao meio ambiente de forma a não alcançar o ponto de não retorno. Ao tempo em que se busque um ritmo de existência, consumo, inovações tecnológicas e interação com o planeta, é preciso buscar também uma trilha que não direcione a passos largos à criação de um ambiente inóspito para uma sobrevivência humana digna.
Referências
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