Lenira Oliveira
Nenhum grupo e nenhum país pode agir sozinho ou isoladamente. Tem de ser uma comunidade de nações que trabalhem como uma família global para enfrentar os desafios globais (António Guterres, 2024).
No dia 24 de outubro de 2024, ocorreu a 16° Cúpula dos líderes dos BRICS, em Kazan, na Rússia, que reuniu representantes de 36 países e de seis organizações internacionais, incluindo o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres (León, 2024). A primeira Cúpula - após a adesão de cinco novos membros ao agrupamento (Egito, Irã, Etiópia, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos) em janeiro de 2024 - resultou na Declaração de Kazan, que destacou logo em seu título (“Fortalecimento do Multilateralismo para o Desenvolvimento e a Segurança Globais Justos”) a questão do multilateralismo.
A presente análise tem como objetivo investigar a forma pela qual o conceito de multilateralismo pode ser compreendido no âmbito dos BRICS. Nesse sentido, busca-se entender também se esse agrupamento de países realmente desafiam a Ordem Global vigente ao proporem uma nova perspectiva de desenvolvimento com vista a suprir as demandas dos países em desenvolvimento.
O conceito de multilateralismo
A definição mais tradicional de multilateralismo postula que ele se refere meramente à coordenação das relações entre três ou mais Estados de acordo com certos princípios (Ruggie, 1992), dando bastante ênfase à uma dimensão quantitativa. Em seu texto intitulado “Multilateralism: the Anatomy of an Institution” (1992), o autor Ruggie critica a definição do multilateralismo vinculada apenas ao seu aspecto numérico, visto que essa perspectiva engloba o que de fato o distingue, que é a dimensão qualitativa deste fenômeno.
O autor busca na sua conceituação de multilateralismo evidenciar o aspecto das relações que são instituídas entre os Estados que participam desses arranjos interestatais. Portanto, o que distingue um regime multilateral de outros arranjos é que o primeiro coordena o comportamento de três ou mais Estados baseados em princípios de conduta generalizados (Ibid, p. 571). A dimensão qualitativa tem entre seus corolários à indivisibilidade e a reciprocidade difusa, isto é, os custos e os benefícios de um arranjo multilateral devem ser distribuídos entre os seus componentes, que podem antecipar a continuidade da cooperação coletiva ao longo do tempo (Ibid., p. 571-572).
Um balanço da Cúpula dos BRICS 2024
A Declaração de Kazan, publicada em ocasião da 16a Cúpula dos BRICS, destacou a posição dos líderes presentes na reunião sobre questões políticas e econômicas atuais. Dentre os aspectos geopolíticos abordados estão a guerra entre Rússia e Ucrânia e o conflito no Oriente Médio (BRICS summit…, 2024). Em ambos os casos, nota-se uma postura bastante cautelosa nas palavras utilizadas nesse documento, o que é justificado pela presença de países integrantes do grupo que estão envolvidos diretamente nesses conflitos – Rússia e Irã, respectivamente.
No entanto, o tema mais abordado na declaração foram as questões econômicas, como sanções, o sistema financeiro, dentre outros. De modo geral, é perceptível uma visão bem crítica a Ordem vigente e dominada pelos países desenvolvidos do Norte Global, de forma com que os países que compõe o agrupamento clamem por uma transformação na atual conjuntura do sistema internacional para uma Ordem que seja mais justa e inclusiva (Nota à imprensa nº 505, 2024).
Apesar dos países que integram o grupo possuírem posicionamentos distintos em questões geopolíticas atuais – tendo até mesmo conflitos entre alguns deles, como no caso da disputa fronteiriça entre Índia e China -, nota-se um maior alinhamento entre esses países na pauta econômica, sobretudo, em fazer deste agrupamento um espaço capaz de desafiar às instituições financeiras existentes que pouco favorecem os países em desenvolvimento. Portanto, esses países se alinham quanto a necessidade de reforma no sistema financeiro vigente, mas possuem visões distintas em temas centrais, como questões geopolíticas, o que é um fator limitador para o alinhamento e a construção da Ordem que o grupo almeja.
O papel dos BRICS no debate sobre multilateralismo e suas limitações
Tendo em vista o conceito de multilateralismo, apresentado no texto do autor Ruggie (1992), e a proposta dos BRICS, enquanto um grupo de países que buscam desafiar a Ordem vigente dominada por países desenvolvidos do Norte Global, é possível postular que esse agrupamento de fato contribuiu para o avanço deste objetivo em comum. Os BRICS procuram reformular a Ordem Global ao criar instituições, como o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), que visam fortalecer a presença desses países nas estruturas existentes (Stuenkel, 2016, p. 39).
Segundo Stuenkel (2016), os BRICS não buscam reinventar as regras e as normas globais existentes, mas tão somente institucionalizar sua nova liderança global por meio das novas instituições criadas por eles (Ibid., p. 39-40). Dessa forma, o objetivo central deste agrupamento seria desafiar a hegemonia dos Estados Unidos, a fim de reduzir a dependência dos países do Sul Global das instituições e dos interesses do Ocidente (Ibid., p. 40).
Além dessa crítica, Stuenkel avança ao pontuar que o interesse em mudanças na estrutura de organizações como a ONU, mais especificamente no Conselho de Segurança (CSNU) - composto por cinco membros permanentes (Estados Unidos, França, Reino Unido, China e Rússia) -, não é de fato compartilhado por todos os integrantes dos BRICS. Essa pauta, bastante defendida pelo Brasil, não é consenso dentro do grupo, devido a China e a Rússia já serem membros permanentes do CSNU (Ibid., p. 51).
Nessa perspectiva, questiona-se até onde os BRICS, como um grupo de países que se dizem ser porta voz dos anseios do Sul Global por uma Ordem mais justa e inclusiva, estão de fato focados em atingir esse objetivo ou se buscam apenas conquistar seus próprios interesses por meio deste grupo - o que não exclui a possibilidade de mudança, mas tem o potencial de limitar o seu escopo. Apesar dessa visão sobre o agrupamento ser de fato plausível, é inegável que os BRICS foram responsáveis por ampliar o questionamento da Ordem liberal do Ocidente, ao pautarem as questões dos países em desenvolvimento e criarem instituições alternativas - como o NBD -, além de alavancarem a pauta da desdolarização em um processo contra-hegemônico (Resende, 2023).
Considerações finais
O debate sobre o multilateralismo pode ser conectado e abarcado pela discussão dos BRICS, à medida que esse grupo se impõe como um espaço multilateral que almeja uma Ordem Global mais justa e inclusiva. No entanto, essa perspectiva pode ser questionada em até que ponto os países integrantes do grupo de fato desafiam a Ordem vigente e propõe a reconfiguração de sua estrutura para melhor responder às demandas dos países em desenvolvimento.
Destarte, pode-se argumentar que o grupo realmente avançou no questionamento de uma Ordem Global liberal dominada pelos países do Ocidente. Por outro lado, o agrupamento não responde a todas às demandas dos países em desenvolvimento, inclusive não supre até mesmo algumas dos seus membros, à exemplo do anseio do Brasil pela reforma do CSNU, a fim da inclusão de novos membros permanentes. Portanto, com a inclusão de novos membros e parceiros nos BRICS, pode-se esperar um fortalecimento das instituições criadas pelo grupo e até mesmo projetos mais ambiciosos em seu escopo, mas seria muito ambicioso pensar que esse grupo será capaz de realizar uma total reconfiguração da Ordem Global em prol dos países em desenvolvimento, haja visto que isso iria ao encontro dos interesses de alguns membros do grupo.
Referências
BRICS summit: Key takeaways from the Kazan declaration. Reuters, 24 out. 2024. Disponível em: https://www.reuters.com/world/factobox-main-points-brics-declaration-2024-10-23/. Acesso em: 26 out. 2024.
LEÓN, Lucas Pordeus. Cúpula ampliada do Brics pede maior protagonismo do Sul Global. Agência Brasil, 24 out. 2024. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2024-10/cupula-ampliada-do-brics-pede-maior-protagonismo-do-sul-global. Acesso em: 26 out. 2024.
Nota à imprensa nº 505 - XVI Cúpula do BRICS – Kazan, Rússia, 22 a 24 de outubro de 2024 - Declaração Final. MRE, 24 out. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/xvi-cupula-do-brics-2013-kazan-russia-22-a-24-de-outubro-de-2024-declaracao-final. Acesso em: 27 out. 2024.
RUGGIE, John Gerard. Multilateralism: the anatomy of an institution. International organization, v. 46, n. 3, p. 561-598, 1992.
RESENDE, Ana Helena. BRICS: a counter hegemonic project?. PET-REL, 22 jun. 2023. Disponível em: http://petrel.unb.br/destaques/205-brics-a-counter-hegemonic-project-2. Acesso em: 15 nov. 2024.
STUENKEL, Oliver. The BRICS: Seeking Privileges by Constructing and Running Multilateral Institutions. Global Summitry, Vol. 2, Issue 1, 2016, p. 38-53.