15 de Outubro de 2018
por Daniel Cunha Rego
Durante sua entrevista no Jornal Nacional, o candidato à Presidência da República Jair Bolsonaro afirmou que o livro “Aparelho Sexual e Cia.” estava sendo distribuído nas escolas públicas como parte de um suposto “kit gay”, fato negado pela editora do livro e pelo Ministério da Educação (O GLOBO, 2018). O mesmo candidato cita, em seu plano de governo, o “marxismo cultural” que estaria se unindo a oligarquias para “destruir a família” (p. 8), além de sugerir uma conspiração totalitária por parte do Foro de São Paulo (p. 11). Circulam, nas redes sociais, textos que alertam para uma “venezuelização” do Brasil caso o candidato do PT, Fernando Haddad, ganhe as eleições.
Os fatos citados no último parágrafo são exemplos do que é aqui chamado de revisionismo ideológico do presente. Assim como o revisionismo histórico negacionista do holocausto[1] ou, mais próximo de nossa realidade, da ditadura civil-militar (LENTZ, 2018), ganhou força a interpretação ideológica e personalíssima de fatos da história recente ou do presente, concatenada a objetivos políticos explícitos. Mais do que apenas propagar fake news, esse tipo de revisionismo cria uma realidade à par dos fatos e blindada de contestação, prontamente rejeitada e estigmatizada como propaganda de adversários políticos: a academia torna-se “comunista” ou “esquerdista” junto a outras instituições antes reputadas como confiáveis (o jornalismo profissional ou a própria Justiça Eleitoral, por exemplo), que caem em descrédito.
Exemplos não faltam, e não cabe aqui mencioná-los exaustivamente. O que interessa é a espantosa fluidez com que essas narrativas são popularizadas através das mídias sociais sem que percam sua credibilidade ao serem atacadas. Tal fenômeno aproxima-se do que se convencionou a chamar de “pós-verdade”[2], porém diferente dela: o foco aqui é na narrativa histórica, e não nas fake news pontuais ou nas versões sobre notícias. O revisionismo ideológico, por exemplo, coloca num mesmo contínuo a criação do Foro de São Paulo (uma união de partidos de esquerda latino-americanos iniciada na década de 1990), o “kit gay” (expressão pejorativa para o material “Escola sem Homofobia”, proposta que nunca chegou a ser executada pelo governo) e a crise econômica e política na Venezuela. Assim, apela-se sobretudo para o medo (de ver seus filhos “doutrinados” na escola, de se ver numa situação de crise, autoritarismo e emigração como no país vizinho) e para a capacidade de difusão e de falsa credibilidade das mídias sociais.
Outra frente desse revisionismo é o negacionismo tácito: enfatiza-se, por exemplo, a narrativa do PT como o partido mais corrupto da história e que pouco ou nada fez de bom pelo país, negando o fato objetivo de que, por bem ou por mal, as instituições democráticas de combate à corrupção estão relativamente sadias e atuantes. Nega-se, também, a confiabilidade das urnas eletrônicas, que estariam sujeitas à manipulação para favorecer a esquerda, ignorando o fato de que a missão observadora das eleições da Organização dos Estados Americanos (OEA) não achou qualquer indício de fraude eleitoral no Brasil (FOLHA, 2018).
O uso político da história – inclusive de suas distorções – não é um fenômeno novo, tampouco uma “jabuticaba”: está presente, por exemplo, no mito fundador histórico de toda nação, ou nas diversas batalhas revisionistas ideológicas travadas ao longo do tempo. O que chama atenção atualmente, entretanto, é que este revisionismo deslocou-se do passado distante (ou até mesmo remoto, no caso dos mitos fundadores) para o tempo de vida da maioria dos eleitores: são revisadas narrativas que se estendem até o presente, que foram vistas e vividas por grande parte das pessoas vivas. Fica fácil afirmar, então, que o Brasil virará uma Venezuela, descambando para o autoritarismo ditatorial socialista caso o PT ganhe. Mesmo que ignore o fato ululante de que, nos últimos 14 anos, não virou.
[1] O negacionismo do holocausto atua principalmente em duas vertentes: ou nega que ele sequer existiu, como o fez o ex-presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad ao se colocar contra o Estado de Israel ou nega sua dimensão e suas maiores atrocidades, como a existência de câmaras de gás: ex-procurador e escritor estadunidense Edgar J. Steele chega a afirmar que as fotos de corpos atribuídos a judeus mortos seriam na verdade de checos e polacos que morreram de febre tifóide (HOLOCAUST, 2009). Chama atenção que grande parte dos negacionistas não possuem formação acadêmica em história, sendo políticos ou escritores “leigos”.
[2] Segundo o dicionário de Oxford, que elegeu pós-verdade como palavra do ano em 2016, o termo é um substantivo “que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais” (FÁBIO, 2016).
Referências bibliográficas
O GLOBO. É #FAKE que livro citado por Bolsonaro no JN é o que aparece com carimbo de escola de Maceió. G1, 04 set. 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/fato-ou-fake/noticia/2018/09/04/e-fake-que-livro-citado-por-bolsonaro-no-jn-e-o-que-aparece-com-carimbo-de-escola-de-maceio.ghtml>. Acesso em 13 out. 2018.
HOLOCAUST Revisionism. Time, 2009. Disponível em: <http://content.time.com/time/specials/packages/article/0,28804,1860871_1860876_1861026,00.html>. Acesso em 13 out. 2018.
CATTINI, Giovanni C. Historical revisionism. Transfer: Journal of Contemporary Culture, v. 6, p. 28-38, 2011.
LENTZ, Rodrigo. O STF e a “maldição autoritária” em andamento. Le Monde Diplomatique, 4 out. 2018. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/o-stf-e-a-maldicao-autoritaria-em-andamento/>. Acesso em 13 out. 2018.
FÁBIO, André Cabette. O que é ‘pós-verdade’, a palavra do ano segundo a Universidade de Oxford. Nexo, 16 nov. 2018. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/11/16/O-que-%C3%A9-%E2%80%98p%C3%B3s-verdade%E2%80%99-a-palavra-do-ano-segundo-a-Universidade-de-Oxford>. Acesso em 13 out. 2018.
03 de Outubro de 2018
por Daniel Gualberto
Acompanhado por dias de manifestações, o 67º Encontro Anual da Comissão Baleeira Internacional (CBI) – que ocorreu em Florianópolis durante os dias 4 e 14 de setembro – ficou marcado pela já tradicional disputa entre os países que são contrários e os que são favoráveis à pesca baleeira. Alcançaram-se três importantes decisões durante o evento: a rejeição da criação do Santuário de Baleias do Atlântico Sul; a adoção da Declaração de Florianópolis, proposta brasileira que reitera a importância da moratória sobre caça comercial de baleias; e, mais significativamente, a rejeição de uma proposta japonesa para liberar esse mesmo tipo de caça (G1, 2018). A tentativa nipônica representa mais um capítulo da histórica e polêmica relação entre Japão e pesca baleeira, marcada por conflitos de natureza cultural, comercial e de política interna e externa.
As relações japonesas com a caça de baleias
A história recente da pesca de baleias no Japão, que remonta ao século XII (JAPAN WHALING ASSOCIATION, 2018), foi marcada por um aumento dessa prática após a Segunda Guerra Mundial, motivado pela escassez de alimentos (VOX, 2016). Desse período até meados dos anos 1960, a carne de baleia foi o tipo de carne mais consumido no país [1]. A partir de 1967, o consumo de outros animais, como frango e porco, ultrapassou o de baleias, que, já na década de 1980, representava menos de 2% do consumo total. Em 2013, por exemplo, consumiu-se cerca de 1% dos valores registrados em 1962 (INTERNATIONAL FUND FOR ANIMAL WELFARE, 2013).
Durante a segunda metade do século XX, concomitantemente à ascensão e queda do consumo de baleias no Japão, houve uma série de esforços internacionais para a preservação dos números desses animais nos oceanos – prejudicados pela pesca intensa. Ao fim de 1946 foi assinada a Convenção Internacional para a Regulamentação da Pesca da Baleia, que visava ao desenvolvimento ordenado da pesca baleeira e, ao mesmo tempo, à proteção de espécies ameaçadas. Para garantir a implementação da convenção, a CBI foi formada dois anos mais tarde (MINISTRY OF FOREIGN AFFAIRS OF JAPAN, 2018). Desde de que entrou em operação, houve tensão entre os países favoráveis e contrários à pesca baleeira – com uma importante vitória deste último grupo em 1982, quando foi estabelecida a moratória sobre a pesca comercial de baleias, vigente até hoje.
O Japão deixou de contestar a moratória em 1985 – o que não significou o abandono, na prática, da pesca baleeira. Aproveitando-se de uma brecha nas regras da moratória, que abre exceção para pesquisa científica, o governo japonês passou a caçar diferentes espécies de baleias alegando fins de estudo. Em 2014, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) julgou ilegal a pesca, supostamente científica, de baleias levada a cabo pelo Japão na Antártica; a decisão, no entanto, foi posteriormente ignorada pelo país, que considerou a jurisdição da Corte não se aplicava sobre os recursos marítimos. Além disso, através principalmente da alocação de recursos de ajuda internacional, os japoneses passaram a pressionar outros países – majoritariamente do Caribe e do Oeste Africano – para que entrassem na CBI e votassem em bloco a favor das medidas defendidas pelos japoneses (BUTLER-STROUD, 2016; THE SYDEY MORNING HERALD, 2018; VOX, 2018).
O que guia o Japão: custos e ganhos
Considerando a tendência histórica de baixa do consumo interno de carne de baleia, vale a pena questionar as motivações japonesas para arcar com os custos financeiros e diplomáticos acarretados pela defesa da caça baleeira. Enquanto diversas hipóteses são levantadas para explicar o posicionamento japonês – motivos materiais, culturais e de estrutura política são alguns exemplos – nem todos são abertamente declarados, dificultando a tarefa de apontar quais têm maior ou menor importância.
Em seu estudo, Keiko Hirata argumenta que a explicação para o posicionamento japonês é encontrada ao se analisar as estruturas domésticas cultural e política. No lado cultural, a autora elenca três perspectivas que impedem o povo japonês de enxergar as normas internacionais com certo grau de legitimidade: (i) a percepção de que comer carne de baleia é um costume difundido e milenar – mesmo que isso não se sustente historicamente; (ii) a ideia popular de que baleias são peixes e não mamíferos; (iii) um ressentimento para com uma aparente interferência ocidental em hábitos locais (2005). A última dessas perspectivas pode se associar ao movimento político japonês chamado Nippon Kaigi, que tenta reforçar o papel da pesca baleeira no ideário nacionalista (BUTLER-STROUD, 2016).
A explicação política é relativamente mais simples: a estrutura que versa sobre questões baleeiras é muito hierarquizada e a liderança burocrática, forte. A caça de baleias, por ser considerada uma atividade pesqueira, fica sob supervisão da Agência de Pescas que, por sua vez, faz parte do Ministério de Agricultura, Silvicultura e Pesca [2]. Além desses fatores que dificultam o aparecimento de posicionamentos contrários à caça, é possível, também, que essas agências tenham medo de perder poder político com o fim da pesca de baleias (HIRATA, 2005).
Já Butler-Stroud, ao levantar sua série de explicação para as atitudes japonesas, traz um interessante argumento econômico e material – também levantado numa coluna de opinião do New York Times dois anos antes (2018) – à contenda da caça baleeira. O autor argumenta que a resistência do governo japonês às consecutivas tentativas de restringir a caça baleeira não parte necessariamente da defesa do pouco lucro que essa prática traz, mas, sim, de uma vontade de defender a pesca japonesa como um todo (2016). Haveria um medo, sustentado, em parte, por uma experiência dos anos 1980 com os Estados Unidos, de que outras pescas de grande importância para o Japão – como a de atum – poderiam ser restringidas caso o governo cedesse na questão baleeira (THE NEW YORK TIMES, 2018). Aqui, como no argumento político de Hirata, uma proibição à caça não seria ruim por si só; consequentes perdas de poder ou direitos seriam os verdadeiros perigos a se evitar.
Alguns desses posicionamentos já foram postos explicitamente e outros, não. Um argumento abertamente defendido pelo governo japonês contra o fim da moratória, por exemplo, é a ideia de que a população de diversas espécies de baleias já se normalizou e uma pesca comercial regulada pela CBI não traria riscos para a sobrevivência delas (ABC NEWS, 2018). Isso, no entanto, não diz muito além daquilo que já se sabe: o governo Japonês quer manter, no mínimo, ou expandir a caça de baleias, apesar de os dados apontarem a prática como pouco sustentável economicamente.
A já citada baixa de consumo interno de baleia – em 2012, por exemplo, o leilão da carne das baleias mortas para “pesquisas científicas” viu apenas ¼ de seu estoque ser vendido – faz com que os ganhos desse mercado não alcancem o valor necessário para manter a frota baleeira. Nesse sentido, o Instituto de Pesquisa de Cetáceos, responsável pelas expedições baleeiras científicas, recebe subsídios governamentais no montante de dezenas de milhões de dólares. De acordo com pesquisas de opinião conduzidas em 2012, apenas 1.8% dos entrevistados apoiavam completamente o uso de dinheiro público para bancar pesca baleeira (INTERNATIONAL FUND FOR ANIMAL WELFARE, 2013).
A esperança a longo prazo
Mesmo sem apontar qual dos fatores citados tem maior influência no comportamento japonês, fica evidente que dificilmente o país mudará seu posicionamento em curto prazo. As estruturas internas e as estratégias externas já há tempo seguem no mesmo caminho, apesar de duvidoso que as baleias sejam em si o objetivo final dessas práticas.
No âmbito da política interna, as perspectivas de mudanças são desanimadoras; o corpo burocrático japonês e as relações entre ministérios devem ser alterados para que o abandono da caça se torne politicamente tolerado ou desejado. É possível que uma garantia internacional de manutenção de diferentes pescas possa evitar anseios internos – isso, no entanto, não deve significar o abandono da proteção de outras espécies marinhas.
Por outro lado, a população nipônica parece trazer alento à defesa das baleias. Tanto em hábitos quanto em opinião, o público japonês não se mostra muito aberto à caça e venda desses animais. Contudo, há uma importante exceção: a reação adversa às tentativas internacionais de controle e constrangimento das práticas japonesas. Talvez fosse mais prudente esperar a rejeição popular japonesa à caça se fortalecer sozinha – seja pela dispensabilidade ou pelos custos dessa prática. Manter e fortalecer os mecanismos internacionais de proteção às baleias é essencial, mas a esperança de um recuo japonês definitivo reside em seu povo e não em seu governo.
[1] A fonte consultada não disponibiliza dados sobre o consumo de peixe
[2] Tradução própria de Ministry of Agriculture, Forestry and Fisheries.
Referências Bibliográficas
ABC NEWS. Japan to continue to push resumption of commercial whaling. Disponível em: <https://abcnews.go.com/international/wirestory/japan-continue-push-resumption-commercial-whaling-58115841>. Acesso em: 27 set. 2018.
BUTLER-STROUD, Christopher. What Drives Japanese Whaling Policy?. Frontiers in Marine Science, [S.L], v. 3, mar. 2016. Disponível em: https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fmars.2016.00102/full#h7
G1. Proposta de liberar caça a baleias tem votação adiada em florianópolis. Disponível em: <https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2018/09/13/proposta-de-caca-a-baleias-tem-votacao-adiada-em-florianopolis.ghtml>. Acesso em: 27 set. 2018.
HIRATA, Keiko. Why Japan Supports Whaling. Journal of International Wildlife Law and Policy, [S.L], v. 8, p. 129-149, jan. 2015.
INTERNATIONAL FUND FOR ANIMAL WELFARE. The Economics of Japanese Whaling: A Collapsing Industry Burdens Taxpayers. Massachusetts, 2013. Disponível em: https://s3.amazonaws.com/ifaw-pantheon/sites/default/files/legacy/economics-of-japanese-whaling-japan-ifaw.pdf
JAPAN WHALING ASSOCIATION. History of whaling. Disponível em: <https://www.whaling.jp/english/history.html>. Acesso em: 27 set. 2018.
MINISTRY OF FOREIGN AFFAIRS OF JAPAN. Iwc management. Disponível em: <https://www.mofa.go.jp/ecm/fsh/page25e_000228.html>. Acesso em: 27 set. 2018.
THE NEW YORK TIMES. The big lie behind japanese whaling. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2014/10/14/opinion/the-big-lie-behind-japanese-whaling.html>. Acesso em: 27 set. 2018.
THE SYDNEY MORNING HERALD. Japan rejects international court jurisidiction over whaling. Disponível em: <https://www.smh.com.au/politics/federal/japan-rejects-international-court-jurisidiction-over-whaling-20151019-gkc7rm.html>. Acesso em: 27 set. 2018.
VOX. Japan’s excuse for killing 333 whales in antarctica is ridiculous. Disponível em: <https://www.vox.com/2016/3/28/11318512/japan-kill-minke-whales>. Acesso em: 27 set. 2018.
19 de Setembro de 2018
por Mauro Cazzaniga
Casos de saques a supermercados, anúncios de greve geral, protestos: assim tem estado a situação da Argentina há algumas semanas. Com juros a 60% (atualmente a taxa mais alta do mundo), a inflação mensal mais alta dos últimos dois anos (3,6% no mês de agosto – a fim de comparação, o IPCA brasileiro foi de 2,95% para 2017 inteiro), o dólar a 40 pesos, e um PIB estagnado há oito anos, nosso país vizinho enfrenta uma grave crise econômica, política e social – que, curiosamente, parece não chegar às manchetes e jornais brasileiros. O atual presidente Mauricio Macri anunciou, no dia 3 de setembro, uma série de medidas de austeridade na esperança de adiantar créditos do FMI, que foram recebidas negativamente pela sociedade. Esta análise propõe responder algumas perguntas sobre o cenário em questão: quem é Macri, como a Argentina chegou a essa situação, e quais são as saídas, erros e acertos.
Assim como outros países na América Latina, incluindo o Brasil, a Argentina enfrentou uma crise hiperinflacionária na década de 80, causada, em grande parte, pela crise dos energéticos e a alta dos juros dos Estados Unidos no fim da década de 70. Consoante com a época, foram empreendidas uma série de reformas liberais para tentar solucionar o problema, sem grandes resultados. A saída encontrada foi semelhante à do Plano Real, porém foi um passo além: o governo de Carlos Saúl Menem atrelou o peso ao dólar. Embora tenha estabilizado a economia , a medida significou a perda da capacidade de controlar sua própria política cambial.
Na virada do milênio, isso causou uma crise incontornável nas reservas internacionais da Argentina. A falta de liquidez mundial devido à crise do México e à crise russa, assim como o encarecimento das exportações argentinas com a desvalorização do real em 1999, reduziram de forma significativa a oferta de dólares no país, que não conseguia mais pagar sua dívida externa e sofria com fuga de capitais. Mesmo com um pacote de emergência do FMI em 2000, a Argentina ainda não conseguiu lidar com seus juros dos empréstimos externos, decretando moratória em 2001. Os episódios ajudam a ilustrar algumas das fraquezas estruturais da economia argentina e também a importância do dólar, que, mesmo não tendo mais paridade com o peso, continua uma variável determinante em índices de preços e juros.
Após um período de grave crise econômica, política e social no governo de Fernando de la Rúa, em 2002 foi eleito Néstor Kirchner, vencendo Menem no segundo turno. Kirchner levou adiante um programa econômico neodesenvolvimentista, com aumento de gastos públicos e manutenção de um câmbio desvalorizado em relação ao dólar. A desvalorização artificial do câmbio favoreceu exportadores, principalmente em um período de expansão das commodities, e serviu como política protecionista para a indústria devido ao encarecimento de importações. Ainda, eram cobradas taxas de retenção sobre os exportadores, o que ajudava a financiar os custos do Estado. O modelo provou ter sucesso, com aumento do emprego, renda e do superávit da balança comercial.
Entretanto, as políticas do neodesenvolvimentismo começaram a mostrar seu esgotamento durante o governo de Cristina Kirchner, de 2007 a 2015. Por um lado, embora tenha garantido superávit e aumento da renda, a inflação é uma consequência inevitável de medidas de desvalorização cambial e aumento dos gastos públicos. Com a redução no valor das commodities a partir de 2010, a situação favorável à exportação começou a se reverter, e mesmo com seu crescimento, a indústria argentina não era competitiva o suficiente face à brasileira. A Argentina entrou em um período de estagnação e de aumento do déficit público e externo. Somado a problemas de transparência e corrupção no governo de Cristina, a insatisfação era crescente.
A “Era Kirchner” chegou a seu fim com a eleição de Mauricio Macri à presidência argentina. Filho de um grande empresário, Macri foi presidente do clube Boca Juniors e prefeito de Buenos Aires de 2007 a 2011. Seu partido, Proposta Republicana, defendia as ideias da administração pública por gestores, contra os políticos tradicionais – trajetória e ideais não muito diferentes da de João Dória à prefeitura de São Paulo. Algumas de suas primeiras medidas econômicas foram o fim das taxas de retenção sobre exportações, aumentos nos juros, regularização do câmbio e corte em impostos e subsídios. Em 2017, sua agenda incluía reformas tributária, trabalhista e previdenciária.
Com o aumento recente dos juros americanos e do dólar, entretanto, a economia passou a sofrer os efeitos de uma nova crise: para tentar valorizar o câmbio, o governo gastou uma parte de suas reservas para aumentar a oferta de dólares. A taxa, no entanto, teve apenas leve queda de 40 para 38 pesos. Apesar da retomada de confiança de investidores com Macri e a elevação dos juros a 60%, investimentos estrangeiros saem do país. A inflação e o déficit comercial aumentaram. Para tentar contornar o problema, o presidente anunciou o retorno das taxas de retenção e um corte de gastos públicos (reduzindo o número de ministérios de 22 para 10, por exemplo), na tentativa de adiantar créditos de um acordo com o FMI.
A falha dos programas de Macri não pode ser explicada por uma simplificação de que o neoliberalismo sempre dará errado – a longo prazo, qualquer programa econômico dará errado. A questão é exatamente saber avaliar os problemas e gargalos da economia para tomar as providências necessárias a fim de solucionar o problema. E nesse sentido, o erro de Macri é semelhante ao ocorrido na época de Menem: o atual presidente simplesmente seguiu uma “receita de bolo” da ortodoxia econômica, com políticas de cortes de gastos. No entanto, o problema estrutural de seu país era o da dívida externa e reservas internacionais, não o de dívida pública. Embora esta estivesse elevada e por isso aumentasse a demanda por financiamento internacional, apenas reduzir a dívida pública não acaba com os juros externos. Mesmo com o aumento dos juros, o risco do calote na dívida externa aguça as suspeitas dos investidores, causando fugas de capitais.
Nenhuma “receita de bolo” econômica guarda os segredos do crescimento. É necessária sempre ação pragmática com avaliação técnica – mesmo Macri teve de admitir a necessidade da volta das retenções. Joseph Stiglitz, Nobel de Economia, recomendou a renegociação da dívida – exatamente porque, no momento, a dívida é seu principal problema, e sacrificar sua estrutura econômica interna não será suficiente para saná-la.
Por fim, tendo considerado toda a questão da crise argentina, por que o fato parece ausentar-se dos noticiários brasileiros? Em tempos de eleição, talvez seja mais vantajoso para aqueles com “receitas” em programas e propagandas não aprender com os erros ao nosso lado.
Referências bibliográficas
SALAMA, P. Crescimento e inflação na Argentina nos governos Kirchner. Estudos Avançados, n. 26, v. 75, p. 157-172, 2012.
VIANINI, F. M. N. A trajetória econômica da Argentina: 1989 – 2007. Juiz de Fora: UFJF, 2012.
Notícias e artigos consultados para a elaboração da análise
Perguntas e respostas: entenda a crise argentina; https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2001/011221_perguntasargentinabg.shtml
Os fundamentos da crise argentina; https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2001/010404_mercosul4.shtml
Medidas de austeridade terão um alto custo para o povo; https://g1.globo.com/economia/noticia/2018/09/09/medidas-de-austeridade-terao-um-alto-custo-para-o-povo-diz-nobel-de-economia-sobre-plano-de-macri-para-argentina.ghtml
Conheça Mauricio Macri, que assume presidência da Argentina; https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2015/11/1709756-conheca-mauricio-macri-que-assumira-presidencia-da-argentina.shtml
Las 10 principales medidas económicas de Mauricio Macri; https://www.infobae.com/2016/01/03/1780348-las-10-principales-medidas-economicas-mauricio-macri-y-10-asignaturas-pendientes/
As reformas econômicas de Macri; https://www.clarin.com/clarin-em-portugues/destaque/as-reformas-economicas-macri_0_SJX_cu_kz.html
A crise econômica da Argentina em 6 gráficos; https://www.bbc.com/portuguese/internacional-45470709
Argentina vive a maior crise econômica desde 2001; https://www.redebrasilatual.com.br/mundo/2018/09/argentina-vive-a-maior-crise-desde-2001-diz-economista
Argentina tem manifestações contra novas medidas de ajuste econômico; https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/mundo/2018/09/13/interna_mundo,705638/argentina-tem-manifestacoes-contra-novas-medidas-de-ajuste-economico.shtml
Crise na Argentina: “Queríamos a mudança que Macri propunha, não a que ele fez”; https://brasil.elpais.com/brasil/2018/09/09/internacional/1536501249_312152.html
Dólar dispara na Argentina: por que as medidas de Macri não estão funcionando?; https://www.bbc.com/portuguese/internacional-45363350
Dinheiro encolhendo e contas no vermelho: veja 11 perguntas e respostas sobre a crise na Argentina; https://g1.globo.com/economia/noticia/2018/09/04/dinheiro-encolhendo-e-contas-no-vermelho-veja-11-perguntas-e-respostas-sobre-a-crise-na-argentina.ghtml
Argentina registra mês de maior inflação dos últimos dois anos; https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/09/argentina-registra-mes-de-maior-inflacao-dos-ultimos-dois-anos.shtml
22 de Agosto de 2018
por Guilherme Pimenta Cyrne
A fala de Benevenuto Daciolo no debate da Band do dia 09 de agosto, conseguiu alavancar a popularidade do Cabo perante ao público, transformando-se em um dos fenômenos da internet e das redes sociais nas semanas seguintes. Infelizmente para ele, a maior parte dessa fama veio no tom de chacota, principalmente pelo seu comentário sobre o plano URSAL (União das Repúblicas Socialistas da América Latina), em questionamento ao candidato Ciro Gomes, remontando o Foro de São Paulo e uma articulação dos partidos de esquerda da América Latina.
Parece que Daciolo não pesquisou o suficiente, pois o referido plano (felizmente para a direita brasileira) não existe de fato. O termo “plano URSAL”, que pela primeira vez foi usado ironicamente em um artigo de jornal, teria apenas sido mencionado com seriedade por Olavo de Carvalho, cujas fontes foram obtusas. Mas aproveitando a oportunidade de se falar da integração do espaço americano, é possível identificar diversas instituições multilaterais reais entre os países do continente no continente latino-americano, o que cabe a pergunta: como as América tem figurado em termos de integração regional?
A ideia de integrar o continente como um todo vem desde Simón Bolívar, que tentou reunir em 1826 os latino-americanos, desde a Argentina até o México, no Congresso do Panamá. Poucas das recém independentes nações compareceram, por razões diversas. Desde então vários outros grupos surgiram na intenção de promover a integração. Levando em conta diferentes perspectivas regionais (ao incluir ou não Estados Unidos e Canadá, ou então restringir ao cone sul) e diferentes âmbitos (econômico, político, jurídico ou ambiental, por exemplo). A título de ilustração, nomeia-se a Organização dos Estados Americanos, Mercosul, ALADI, Comunidade Andina, grupo do Rio e NAFTA. Curiosamente, nenhuma delas reúne todos os países do continente, de norte a sul.
A lista de organizações pela integração no continente é relativamente grande. Ao mesmo tempo, não há como falar de integração regional sem mencionar o exemplo da União Europeia. Apesar do período atual do bloco ser de grandes incertezas, percebe-se que o modelo de integração da União Europeia é quase sempre tomado como principal exemplo pelos tomadores de decisão, e o seu nível de complexidade (uma união aduaneira, de livre circulação de pessoas e uma moeda comum) uma meta a ser buscada do lado de cá do atlântico. Boa parte das organizações daqui parecem sempre caminhar para uma integração ao menos parecida com a que a Europa logrou realizar.
Andrés Malamud e Gian Luca Gardini (2012) argumentam que o “regionalismo divergente” promovido pelas múltiplas organizações que falham em reunir todos os países acaba por separar o Norte, o Sul e o Centro mais do que integrar. Além disso, as múltiplas tentativas de tantos projetos segmentados e sobrepostos é um sinal de exaustão do seu potencial. A integração europeia não falha nesse aspecto, já que esta, através de sistemas como a própria União Europeia, a Zona do Euro e o Conselho Europeu são concêntricas e não sobrepostas.
Realmente, a Organização dos Estados Europeus é extremamente eficiente e foi capaz de promover uma estrutura muito robusta de integração, de maneira tal que nada nas Américas consegue ao menos se aproximar. O Mercosul talvez tenha conseguido ensaiar alguns dos aspectos econômicos de união aduaneira e da livre circulação de pessoas. No entanto, ainda assim foi limitado (não há força suficiente para implantar uma moeda comum, por exemplo) e inclui um número pequeno de países no bloco. Mas no geral, a integração europeia como modelo tornou-se mais a utopia inalcançável do que uma possibilidade sólida. Mas afinal, será que a União Europeia deveria ser o modelo a ser seguido?
É claro que a integração final dos países das Américas deve ser um objetivo a ser perseguido. O continente como um todo representa uma imensa força econômica, política, cultural, comercial, jurídica (em especial em matéria de direitos humanos), que poderia ter um potencial transformador sem igual se houvesse uma articulação coesa e objetivos comuns. Os países da América Latina, por exemplo, ainda compartilham de uma raiz histórica comum relativamente forte, como a ferida colonial[1], o período de ditaduras e a recente “guinada à esquerda” que parece ter chegado ao fim[2].
Talvez seguir o exemplo da União Europeia não seja necessariamente o caminho para a integração do continente (com certeza o modelo soviético à lá URSAL também não). Ao invés de considerar exemplos de fora, levar em conta os fatores históricos, culturais, econômicos e políticos regionais para conseguir coordenar toda a diversidade e todos os esforços em um único caminho convergente. O relatório da CEPAL de 2014 por ocasião do trigésimo quinto período de sessões aponta para essa direção (CEPAL, 2014).
Vale aqui a reflexão. Usar o exemplo da União Europeia para modelo de integração continental pode até ser um caminho possível, mas deve-se lembrar que a própria nasceu de uma organização bem menos ambiciosa; o Benelux, que mais tarde evoluiu aos poucos, adicionando membros e pautas, englobando cada novo membro e nova agenda de maneira muito orgânica ao desenvolvimento do continente. Nas Américas, há diferentes fatores, um diferente histórico em um diferente momento político e econômico. Evidentemente, é possível criar um modelo bem sucedido de integração nesta porção de terra, mas apenas se for levado em conta esses fatores específicos.
Enfim, a integração regional das Américas continua sendo um assunto demasiado complexo e multifacetado. As tentativas anteriores que acabaram criando sobreposições e maiores distâncias institucionais entre as regiões precisam ser agora instrumentalizadas para criarem um denominador comum, em um afastamento pragmático dos exemplos em outros cantos do mundo, para levar-se em consideração as necessidades e pautas daqui. A partir disso, deverá ser possível ver um maior desenvolvimento para os países de maneira conjunta.
[1] O conceito de ferida colonial é bastante desenvolvido do Walter Mignolo. Ver mais em MIGNOLO, 2007.
[2] Ou “onda rosa”, como identifica-se o fenômeno de ascensão de partidos de esquerda aos governos de diversos países da América Latina durante a primeira década dos anos 2000.
Referências Bibliográficas:
MALAMUD, Andrés; GARDINI, Gian Luca. Has Regionalism Peaked? The Latin American Quagmire and its Lessons. The International Spectator: Italian Journal of International Affairs, v. 47, n. 1, p. 116–133, 2012.
MIGNOLO, Walter. La idea de América Latina: la herida colonial y la opción decolonial. Barcelona: Gedisa, 2007.
CEPAL. Integração regional: por uma estratégia de cadeias de valor inclusivas. NY & Santiago, Chile, 2014.
06 de Agosto de 2018
por Luiane Magalhães Dias
“Policy sits above the concience”
William Shakespeare
Se algum místico ou economista em um passado recente dissesse que o Brasil estagnaria seu crescimento em 2014, provavelmente ninguém daria crédito. Parecia que o futuro previsto pelo escritor austríaco Stefan Zweig, que cunhou o termo “Brasil o país do futuro”, tinha de fato chegado. E o Brasil se mostrava cada vez mais ser um país de orgulho para o povo brasileiro, com reconhecimento no exterior, não é à toa que foi eleito para sediar a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016. Parecia de fato ser a hora dos BRICS alavancarem, e o Brasil estava em uma posição privilegiada entre os principais emergentes do mundo.
O ano de 2014 pode ter sido o momento de virada de um caminho de crescimento econômico e redução das desigualdades sociais, que parecia sólido, para um momento de aumento da violência, pobreza e desemprego. De lá para cá, o Brasil enfrentou uma crise política, econômica e moral, que de modo menos latente vigora até hoje, e bastou isso para o futuro brasileiro ser interrompido por um presente com as marcas amedrontadoras do passado[1].
Assim, o aumento da violência no Brasil vem crescendo consideravelmente nos últimos anos. Temos a exemplo, os aumentos dos conflitos agrários na região Norte e a violência generalizada no Rio de Janeiro, cidade que, no dia 1° deste mês, foi marcada por dois eventos, um positivo e o outro que representa uma vergonha para o nosso país. Mantendo a exuberância, a bela cidade brasileira sediou pela primeira vez no hemisfério Sul o “Congresso Internacional dos Matemáticos”, evento que ocorre desde fins do século XIX (IMU, s.d). Já o segundo evento reflete a situação vivenciada por nosso país: o iraniano Caucher Birkar, vencedor de uma das quatro medalhas Fields, que é concedida em ocasião do Congresso, teve seu prêmio roubado. A medalha de ouro era estimada em aproximadamente 16 mil reais (“GANHADOR”, 2018), tendo, entretanto, valor inestimável para um refugiado curdo que apenas por instantes pôde ter o prêmio em mãos.
Eventos como esse parecem retomar a descrição de “país das contrariedades”, como defendido pelo economista Edmar Bacha, na década de 70 do século passado, com a criação do termo “Belíndia”, caracterizando o Brasil como um país contraditório, que agrupa simultaneamente as características da Bélgica, desenvolvida e com elevada qualidade de vida, e da Índia, pobre e com a maioria da população em estado de miséria e vulnerabilidade (FELDMAN, 2018).
O retrato desse retrocesso se revela nas Agendas de Desenvolvimento da ONU. O Brasil se mostrou exemplar no cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), alcançando e superando a maioria das metas dos ODM antes de 2015 (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 2017). Resultado muito diferente está ocorrendo com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030[2], na qual especialistas apontam que poucos foram os passos dados para a implementação dos ODS no país até o momento (NILO; PINTO, 2017).
Assim[3], retrocedemos com o aumento da pobreza e da fome, com o surto de doenças que estavam controladas ou eram inexistentes no passado, como no caso da malária, febre amarela, chikungunya e zika, e com relação inclusive com a questão do saneamento básico, problema que nunca foi resolvido no Brasil mas que se torna um obstáculo ainda maior com o crescimento da pobreza e da fome. O desemprego, que se mantinha controlado desde o início do século, vem alcançando índices alarmantes com a marca recorde de 13,1% no primeiro trimestre deste ano (IBGE apud GRUPO DE TRABALHO DA SOCIEDADE CIVIL PARA AGENDA 2030, 2018). Tudo isso reverbera no crescimento da desigualdade social no Brasil, que, como demonstrada no seguinte gráfico, aumentou bruscamente em 2015, após uma redução do índice desde 2003 (GRUPO DE TRABALHO DA SOCIEDADE CIVIL PARA AGENDA 2030, 2018).
Fonte: Ipeadata/PNAD e IBGE/PNAD (GRUPO DE TRABALHO DA SOCIEDADE CIVIL PARA AGENDA 2030, 2018).
Por coincidência, no mesmo dia que roubaram a medalha do Matemático Caucher Birkar, a Capes enviou uma nota ao ministério da Educação postulando a ameaça de extinção das bolsas de pós-graduação para o próximo ano, bem como do Programa de Iniciação Científica e do Sistema Universidade Aberta Brasil, pelos cortes orçamentários promovidos pela Reforma Constitucional 95 (LEITE; REZENDE, 2018).
De fato a política está acima da consciência, ou seja, está além daquilo que julgamos ter uma relação direta com esse poder. Uma crise política certamente reverberará na economia e nos dados sociais, como está ocorrendo no Brasil. Muitos podem argumentar que as pioras dos índices brasileiros possuem diferentes causalidades e não estão restritas apenas à política. De fato isso é certo, mas boas políticas interferem diretamente no andamento de uma sociedade, e se a política vai mal, mesmo que a economia não se abale, as questões sociais tendem a piorar[4].
É possível melhorar o futuro? Ou estamos fadados ao que ocorreu com a Argentina, que no início do século XX estava entre os sete países mais ricos do mundo e hoje não está nem sequer entre os vinte primeiros (PNUD, 2015)? Em minha opinião, sim, é completamente possível melhorarmos nossos índices sociais e obtermos crescimento econômico. A primeira tarefa é não nos estagnarmos na dependência e no fracasso econômico com relação aos países de maior desenvolvimento relativo. Outra parte depende de nossas escolhas políticas e essa resposta devemos tê-la ainda este ano, e esperamos que seja uma resposta à altura deste país das maravilhas, com um povo que precisa mais do que nunca de um governo inteligente para o crescimento econômico e principalmente sensível às nossas latentes demandas sociais.
[1] Me refiro como marcas amedrontadoras do passado o desemprego, o crescimento da pobreza, a fome de uma parte considerável da população, entre outras mazelas.
[2] Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), estão presentes no documento “Transformando Nosso Mundo a Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável”, a Agenda corresponde a um plano de ação de prioridades para os países seguirem a fim de se obter um Desenvolvimento pleno e sustentável, com vigência de 2015, quando foi criado, até 2030.
[3] Os retrocessos descritos correspondem aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável de números 1, 2, 3, 6, 8 e 10 que dizem respeito respectivamente à pobreza, à fome, à saúde, a água e saneamento, ao emprego e às desigualdades sociais.
[4] Saliento que o roubo da Medalha Fields reafirmou a caracterização do Brasil como um país de contrariedades, e que deixou mais evidente os maus tempos que estamos passando, entretanto quando estabeleço uma relação entre política e piora dos dados sociais, não incluo o roubo da medalha; para mim a questão representa muito mais um desvio moral do que um problema estruturalista, até mesmo pelo valor simbólico que a medalha e o evento possuíam.
Referências Bibliográficas:
FELDMAN, Boris. O Brasil é mesmo uma Belíndia! Disponível em:<https://autopapo.com.br/noticia/o-brasil-e-mesmo-uma-belindia/>. Acesso em: 03 ago. 2018.
GANHADOR de ‘Nobel da Matemática’ tem medalha roubada no Rio de Janeiro. Correio Braziliense. 01 ago. 2018. Disponível em: < https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2018/08/01/interna-brasil,698780/ganhador-de-nobel-da-matematica-tem-medalha-roubada-no-rio-de-janeiro.shtml>. Acesso em: 04 ago. 2018.
GRUPO DE TRABALHO DA SOCIEDADE CIVIL PARA A AGENDA 2030. Relatório Luz da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável Síntese II. Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para Agenda 2030. 2018. Disponível em:<http://actionaid.org.br/wp-content/files_mf/1532366375relatoriosicc81ntese_final_download.pdf> Acesso em: 31 jul. 2018.
INTERNATIONAL MATHEMATICAL UNION (IMU). Fields Medal [s.d]. Disponível em:<https://www.mathunion.org/imu-awards/fields-medal>. Acesso em: 04 ago. 2018.
LEITE, Hellen; REZENDE, Humberto. Sem orçamento, Capes fala em suspender bolsas de 93 mil pesquisadores. Correio Braziliense. 03 ago. 2018. Disponível em: <www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/eu-estudante/ensino_ensinosuperior/2018/08/02/ensino_ensinosuperior_interna,698991/capes-cortara-bolsas-de-93-mil-pesquisadores.shtml>. Acesso em: 3 ago. 2018.
27 de Julho de 2018
por Tiago M. Rubo
“sinto-me, às vezes, incomodado, quando escuto que a seleção de 1970 foi o ópio do povo e que foi usada pela ditadura. Todos os governos, de todo o mundo, ditaduras e democracias, como a atual do Brasil, fazem o mesmo” (TOSTÃO, 2014).
Com o encerramento da Copa do Mundo e a vitória da Seleção Francesa, algumas imagens são “eternizadas” em nosso imaginário, dentre tantas: a cambalhota do técnico Tite comemorando o gol brasileiro, a alusão à bandeira da Albânia pelos jogadores suíços e especialmente o presidente francês Emmanuel Macron beijando a taça sob chuva e festa. Quebrando protocolos e padrões de comportamento de autoridades em Copas do Mundo, Macron entrou no vestiário da seleção francesa, foi filmado para um Snapchat junto com Pogba, fotografado pelo lateral Benjamin Mendy e beijou as testas dos ídolos Mbappé e Griezmann (SE, 2018).
Não sem um tom irônico, nos perguntamos: o que faz o “presidente dos ricos”[1] na Rússia? Sua contagiante vibração se contrastava com o pequeno percentual de aprovação dos franceses (45% no final de 2017). Macron contava com uma generalizada insatisfação frente à série de reformas neoliberais empreendidas pelo seu governo. Porém, já neste começo de 2018, a sua aprovação alcançou 50% (mais que seus 2 antecessores, Sarkozy e Hollande, no mesmo período) e ele se encontra em uma onda de popularidade, mesmo frente ao seu perfil reformador[2] (MAGALHÃES, 2018). Segundo o cientista político Pascal Perrineau, Macron ocupou o centro (no espectro direita-esquerda) de uma França desunida e está promovendo uma abertura nacional (ibid, 2018).
A partir de uma visão da Diplomacia Midiática[3] (BURITY, 2013) e da análise cartográfica[4] (PRADO FILHO & TETI, 2013), é possível traçar linhas de influência política nestas produções estéticas do presidente francês. O argumento em análise evidencia a busca por legitimidade do projeto de Estado neoliberal por imagens e discursos que alcançam um nível das subjetividades e afetos. A onda de otimismo nacional, os possíveis efeitos na moral econômica francesa e comportamento do consumidor (REUTERS BRASIL, 2018) seguem parâmetros históricos: “em 1998, a popularidade do então presidente Jacques Chirac disparou para o “efeito Copa do Mundo”, um salto de 18 pontos, de acordo com pesquisas do Ifop.” (ibid, 2018). O presente trabalho busca ir às subjetividades e ao lado estético deste fenômeno, abordando a ação midiática de Emmanuel Macron como um dispositivo de poder[5], pretendendo ser uma contribuição à compreensão da diplomacia midiática pela Virada Estética em RI[6].
Assim é rotulado Macron: um presidente da “sociedade aberta”, neoliberal e jovem (MAGALHÃES, 2018). Transita da esquerda à direita em sua agenda. A impressão é de um “chuchuzinho” da França[7], que encontra no pragmatismo ideológico, associado à imagem pessoal, uma potência para realizar mudanças do seu governo em nível internacional. Possui um projeto de fortalecimento da Europa, e para tal faz simpatias com grandes atores (EUA e Alemanha) a fim de tornar a belle époque factível. A nós, periféricos, a pergunta da vez é: vale a pena? Ao que nos interessa uma França fortalecida em seu mercado econômico e financeiro, rejuvenescida culturalmente? Em plena conflagração de guerra fiscal entre os EUA e a China, em pleno ocaso da agenda da reforma das organizações internacionais e em pleno entrave das negociações entre Mercosul e União Europeia, um gaulês se contrapõe a russos e estadunidenses e suas políticas protecionistas, se inserindo internacionalmente como uma figura de confiança.
É este o exato momento em que Macron entra no palco em sua versão “Allez les bleus”. A estética do herói europeu retorna, desta vez vestindo a camisa da seleção francesa e investindo contra os malvados protecionistas. Um ato dentro de uma peça de teatro, cuja narrativa distante da realidade, reificada por metáforas (como “abertura” da sociedade e “rejuvenescimento” da política, para citar algumas naturalizações da ciência política) carregadas politicamente e repetidas a tal ponto que a tomamos como a realidade representada (BLEIKER, 2001). De fato, Macron é ambivalente, e a realidade não se resume a este maniqueísmo que ele buscou construir em discursos oficiais e exposições midiáticas, especialmente durante suas visitas à Rússia. Ainda assim, o campo dos símbolos e das ideias, que é construído pelo binômio saber-poder, que por sua vez enreda nossa política em sentido amplo e se dá por dispositivos de poder (PRADO FILHO & TETI, 2013), nos sujeita às impressões midiáticas enviesadas à dicotomia.
“Representação sempre é um ato de poder. Esse poder está em seu ápice se uma forma de representação é capaz de disfarçar suas origens subjetivas e valores.”[8] (BLEIKER, 2001). Entender Macron como um reformador e um ampliador do mercado franceses, sem compreender os valores destas pontuações, invisibiliza as injustiças e a hierarquia de prioridades dos setores franceses na agenda de Macron, o “presidente dos ricos”, o seu projeto de poder. E qual o projeto de poder por trás de tal construção estética? Não se coloca em questão a autenticidade do gosto do presidente francês pelo futebol, mas é preciso deixar a ingenuidade para compreender certos efeitos esperados que custaram o risco político de se romper o bloqueio diplomático com a Rússia: o eclipse do “caso Benalla”[9], das políticas de austeridades anti-humanitárias (especialmente contra refugiados) e as greves estudantis contra as reformas no ensino superior. A concessão pelo presidente de cidadania ao jovem do Mali que ganhou os noticiários como o “Homem-Aranha” por escalar prédio para salvar um menino de quatro anos dependurado, enquanto o governo expulsava 1.700 refugiados de Paris e estudava leis de deportação seria outra amostra da utilização da sua imagem e representação presidencial como um dispositivo de poder.
O projeto neoliberal se reveste de pompa e juventude, como foi ilustrado no caso francês. Porém, contra todo projeto de poder emergem resistências ao que nos produz e assujeita (PRADO FILHO & TETI, 2013). O atual cenário francês pouco se diferencia dos momentos anteriores ao Maio de 68, quando ocorreu a eclosão de uma série de protestos e greves gerais com vontade de mudança radical.
Se “À operação macropolítica de desmonte do Estado e da economia, soma-se a operação micropolítica de produção de subjetividades.” (ROLNIK, 2018) do medo sobre as crises constantemente noticiadas, fazendo com que “as subjetividades tendam a agarrar-se a qualquer promessa de estabilidade e segurança” (ibid, 2018), possibilitando a legitimidade das reformas neoliberais, a “sociedade aberta” promovida por Macron precisa ser reconceituada como “a tomada do poder político e econômico pelo capitalismo globalitário” (ROLNIK, 2018) a partir da estética.
Uma última reflexão breve, porém valiosa e bem pontuada precisa ser feita neste momento de eleições em nosso país. Você pensa criticamente o papel político das imagens? Vis-à-vis Macron, os presidenciáveis brasileiros promovem doméstica e internacionalmente seus projetos a partir de seus dispositivos de poder. O que podemos aprender do caso francês?
Não cabe nestas últimas linhas desenvolver análises profundas a respeito. Mas na falta de uma autoria, se recomenda a leitura da análise “Crise da Democracia e extremismos de direita”, de Esther Solano. Uma conjuntura política-estética parece ser esboçada, mas ainda é cedo para sugerir uma multiplicação destas práticas políticas. A “extrema direita mais antidemocrática, simbolizada no pensamento do deputado Jair Bolsonaro” (SOLANO, 2018, p.3) conta com sua maior força política na construção estética de um candidato honesto em contraposição aos corruptos políticos (ibid, 2018), o que se comunica muito com a ascensão de Macron como um candidato alheio à corrupção (MAGALHÃES, 2018). Talvez o que se conforme seja o novo golpe de Estado conceituado pela psicanalista e filósofa Suely Rolnik: “passada a perplexidade inicial, torna-se evidente que o capitalismo financeirizado precisa destas subjetividades rudes no poder. São como capangas que se incumbirão do trabalho sujo: destruir todas as conquistas democráticas e republicanas, dissolver seu imaginário e erradicar da cena seus protagonistas” (ROLNIK, 2018). Porém, no caso de Macron, acrescentaria ao “rude” a caracterização das subjetividades como jovens e torcedoras de futebol, sem pretender uma maior precisão conceitual, mas sim demonstrando como o campo político dos imaginários é muito mais interconectado do que se supõe e emerge em múltiplas facetas, se atualizando esteticamente.
[1] Abatendo impostos de grandes fortunas, empreendendo medidas de austeridade (Jornal de Angola, 2018).
[2] Em várias agendas, desde leis trabalhistas, aposentadoria e setor ferroviário.
[3] “A influência e o uso das redes internacionais de comunicação nas decisões, nos planejamentos e nas propagandas estatais”, conceito cunhado por Eytan Gilboa.
[4] “Uma exposição da relação de forças à medida que não desenha a “grande política” – do Estado, da sociedade, das instituições – mas, traça um esboço de relações capilares de poder, dando visibilidade à dinâmica micropolítica de um campo social” (PRADO FILHO & TETI, 2013)
[5] “É isto, o dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles.” (FOUCAULT, 1984, p.246)
[6] Caracterizada pelo retorno dos estudos estéticos e teorias da representação nas análises políticas. Estética, pela etimologia grega aisthesis, se refere às percepções e impressões, às formações de visão de mundo e de self (BELFRAGE & GAMMON, 2016).
[7] Referência ao presidente brasileiro Getúlio Vargas, apelidado de “chuchuzinho” por ser popular, ao mesmo tempo que tomava os sabores do lado que mais lhe conviesse ao momento.
[8] Tradução livre
[9] Guarda-costas de Macron violenta protestantes e o silêncio se estende. Para saber mais: https://br.reuters.com/article/worldNews/idBRKBN1K92RW-OBRWD
Referências Bibliográficas
BELFRAGE, Claes; GAMMON, Earl. Aesthetic International Political Economy. Millennium: Journal of International Studies, [s.l.], v. 45, n. 2, p.223-232, 21 dez. 2016.
BLEIKER, Roland. The Aesthetic Turn in International Political Theory. Millennium: Journal of International Studies, [s.l.], v. 30, n. 3, p.509-533, dez. 2001.
BURITY, Caroline Rangel Travassos. A influência da mídia nas relações internacionais: um estudo teórico a partir do conceito de diplomacia midiática. Contemporânea (Título não-corrente), v. 11, n. 1, 2013.
FOUCAULT, Michel. “Sobre a história da sexualidade”. In: MACHADO, R. (Org.). Microfísica
do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1984, p.243-276
Jornal de Angola. Macron acusado de ser Presidente dos “ricos”. 2018. Disponível em: <http://jornaldeangola.sapo.ao/mundo/macron_acusado_de_ser_presidente_dos_ricos> Acesso em 23 jul 2018.
MAGALHÃES, Guilherme. Um ano depois, Macron faz reformas e ainda é popular, diz cientista político. Folha de S. Paulo, São Paulo, 13 de maio de 2018. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/05/um-ano-depois-macron-faz-reformas-e-ainda-e-popular-diz-cientista-politico.shtml >. Acesso em 23 jul 2018.
PRADO FILHO, Kleber; TETI, Marcela Montalvão. A cartografia como método para as ciências humanas e sociais. Barbarói, n. 38, p. 45-49, 2013.
REUTERS BRASIL. Após França vencer a Copa, sorte de Macron pode ganhar força. 15 de julho de 2018. Disponível em: <https://br.reuters.com/article/worldNews/idBRKBN1K50ZF-OBRWD> Acesso em 23 jul 2018.
ROLNIK, Suely. O novo tipo de golpe de estado: um seriado em três temporadas. El País, 12 de maio de 2018. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/12/actualidad/1526080535_988288.html> Acesso em 23 jul 2018.
SE (Super Esportes). Após beijar Mbappé, Griezmann e até taça da Copa, Macron diz ‘obrigado’ à seleção. 2018. Disponível em: <https://www.mg.superesportes.com.br/app/noticias/copa-do-mundo/2018/noticias/2018/07/15/copa-do-mundo,490179/apos-beijar-mbappe-griezmann-e-ate-taca-da-copa-macron-diz-obrigado.shtml > Acesso em 23 jul 2018.
SOLANO, Esther. Crise da Democracia e extremismos de direita. Friedrich-Ebert-Stiftung Brasil, Análise nº 42/2018. Disponível em: <http://library.fes.de/pdf-files/bueros/brasilien/14508.pdf> Acesso em 23 jul 2018.
TOSTÃO. Faltaram os estrategistas. Folha de S. Paulo, São Paulo, 26 de março de 2014. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/colunas/tostao/2014/03/1430893-faltaram-os-estrategistas.shtml>. Acesso em 18 jul 2018.
11 de Julho de 2018
por Marina Morena Alves
“Teachers, don’t give us too much homework” ¹
(Mensagem coletiva enviada pelos garotos presos em caverna na Tailândia)
Por 24 horas durante a última semana, os olhos do mundo estavam voltados para a Tailândia, especialmente para a caverna Tham Luang Nang na província de Chiang Rai. Doze meninos e seu treinador de futebol ficaram presos na caverna devido às progressivas inundações, tornando impossível seu resgate imediato. Diante da complexidade da situação, em termos técnicos e assistenciais, se tornaram imprescindíveis não só as ações da marinha tailandesa, mas também a colaboração da comunidade internacional. Desse modo, são colocadas em pauta tanto a importância da solidariedade internacional² quanto, simultaneamente, o questionamento de seus efeitos em longo prazo, tomando como exemplo o período posterior ao resgate dos mineiros chilenos no Deserto do Atacama, em 2010.
No dia 23 de junho o time de futebol, Javalis Selvagens³, saía em excursão pela caverna Tham Luang Nang, contudo a forte chuva na região impediu sua saída, os obrigando a procurar um lugar seguro dentro da própria caverna. Após uma série de buscas de equipes de resgate tailandesas, estadunidenses e britânicas, o time foi encontrado a 4 km da entrada da caverna, no dia 2 de julho (CNN, 2018). No entanto, o resgate imediato foi dificultado tanto por passagens estreitas e escuras quanto pelas correntes fortes na água turva no interior da caverna, tornando, portanto, necessária a criação de uma rede de assistência e suporte aos garotos para um resgate futuro. Assim, foram fornecidos alimentos, ajuda médica, remédios e outros suprimentos levados por mergulhadores experientes até a localização do time.
Diante dessa situação, são iniciadas as discussões sobre as estratégias do resgate com especialistas voluntários da Austrália, China, Laos, Mianmar, Israel, Reino Unido, Estados Unidos e Japão (SCMP, 2018a). Além disso, foram empregadas tecnologias israelenses de comunicação e bombas de água para drenagem do interior da caverna (JPOST, 2018) e dadas aulas de mergulho ao time de futebol. Após uma série de propostas de resgate, optou-se pela saída dos garotos pela caverna com a companhia de dois mergulhadores4, num percurso de volta que durou seis horas. De acordo com Narongsak Osottanakorn (BBC, 2018), governador da província de Chiang Rai e chefe da operação de resgate, 90 mergulhadores estavam envolvidos no resgate dos garotos, sendo que 50 deles eram estrangeiros e 40 tailandeses.
O sucesso da operação de resgate fortaleceu a união na Tailândia e, principalmente, o governo Tailandês, que antes era marcado pela instabilidade de diversas facções políticas e agitação civil, assim “os garotos se tornaram um símbolo da esperança nacional” (NSM, 2018, tradução própria). Ademais, a colaboração de agentes externos repercutiu na legitimidade das forças armadas tailandesas, sobretudo, da marinha tailandesa, vinculando determinado reconhecimento externo, conforme citado por Laura Villadiego (SCMP, 2018b). Em suma, a solidariedade internacional também detém efeitos no âmbito doméstico, demonstrando sua imprescindibilidade nas relações internacionais contemporâneas.
A participação de agentes de diversas nacionalidades na operação de resgate do time de futebol demonstra um esforço internacional que transcende diferentes visões políticas e culturais em prol de um objetivo comum: resgatar os garotos. Nesse sentido, a colaboração assumida pelos voluntários e colaboradores torna visível o poder alcançado quando se reconhece a força da própria união (NSM, 2018). Um caso singular de recusa de ajuda internacional ocorreu em 2000 com o submarino russo Kursk que afundou no mar de Barents: o resgate imediato dos 118 marinheiros a bordo – que se mantiveram vivos por dois dias – foi bloqueado por Moscou, resultando na morte por afogamento de todos os envolvidos (WHO, 2016).
Por outro lado, o resgate bem sucedido dos 33 mineiros soterrados numa mina de cobre San José no Chile, em 2010, é um exemplo que afirma a importância da solidariedade e colaboração internacional. Além dos esforços de países como Canadá, Argentina e Paquistão no fornecimento de suprimentos e agentes, a contribuição técnica da NASA – agência do Governo Federal dos Estados Unidos – foi essencial para recomendações ligadas desde táticas de sobrevivência em ambientes hostis ao design do veículo de extração dos mineiros (NASA, 2015). Entretanto, ainda que a cooperação de agentes externos seja tão positiva no curto prazo, sua eficiência no longo prazo pode ser questionada com facilidade, principalmente no que concerne a contextualização local da solidariedade internacional e, ao mesmo tempo, suas dimensões eventuais e posteriores.
No caso chileno, dos mineiros soterrados, tal perspectiva pode ser constatada em três esferas: a vida pessoal e profissional dos mineiros e, por último, as condições trabalhistas das minas chilenas após a situação trágica de soterramento. Em primeiro lugar, a vida pessoal dos envolvidos contornam problemas de saúde recorrentes como ataques de pânico e insônia. Já na vida profissional é destacada a dificuldade para arranjar emprego, conforme apontado por Omar Reygadas, ex-mineiro: “estou muito velho para voltar para a mineração, mas os outros mineiros que querem trabalhar não conseguem” (apud TERRA, 2015). Enfim, se destaca a falha chilena em ratificar convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no tocante a segurança e adequação das minas pelo país, apresentando condições insalubres e situações de risco, mesmo após o trágico acontecimento de 2010 (THE GUARDIAN, 2010).
Sob o mesmo ponto de vista, insere-se uma discussão que permeia o futuro dos garotos da Tailândia e de seu técnico, principalmente no que concerne aos cuidados médicos e ao acompanhamento psicológico direcionado a eles. É perceptível que a solidariedade internacional detém uma tendência de se esgotar após um curto prazo de repercussão das situações, sem se preocupar com as consequências, causas ou demais desdobramentos, como ocorreu no caso dos ex-mineiros chilenos, resultando numa responsabilidade e atuação prioritária do próprio Estado ou de agentes nacionais. Mesmo assim, “as operações de resgate com a colaboração internacional estão se tornando um novo paradigma para as relações internacionais” (THE BLADE, 2018) por desafiarem não só uma perspectiva egoística dos Estados, mas também por questionarem seu papel unitário e assumirem a relevância de outros atores internacionais.
Sendo assim, a solidariedade internacional se torna imprescindível para a composição do cenário global contemporâneo, vinculando efeitos tanto domésticos quanto externos e demonstrando que a união dos Estados e outros agentes em prol de um objetivo comum pode resultar em benefícios incalculáveis como, especialmente em um ano de Copa do Mundo, o futuro do time de futebol mais importante do momento: os Javalis Selvagens.
[1] “Professores, não nos deem tanta tarefa de casa”.
[2] “A solidariedade internacional é um conceito complicado, sendo especialmente difícil a sua definição, o que o torna quase abstrato. Mas onde quer que ela exista, é inconfundível, permeando pensamento e ação, e seus efeitos são evidentes.” (ONU, 2012).
[3] Wild Boars ou Moo Pa (em tailandês)
[4] Para saber mais acesse: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-44765295>>
Referências bibliográficas
BBC. Meninos presos em caverna na Tailândia: Quatro resgatados estão em ‘perfeitas condições’. 2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-44757119>. Acesso em 9 jul 2018.
CNN. Thai cave rescue suspended for the Day after four more boys freed. 2018. Disponível em: <https://edition.cnn.com/2018/07/09/asia/thai-cave-rescue-intl/index.html>. Acesso em 10 jul 2018.
JPOST (The Jesuralem Post). Israeli technology to the rescue for cave trapped thai boys. 2018. Disponível em: <https://www.jpost.com//Israel-News/Israeli-technology-to-the-rescue-for-cave-trapped-Thai-boys-561806>. Acesso em 10 jul 2018.
NASA. How NASA Helped ‘The 33’ Chilean Miners. 2015. Disponível em <https://www.nasa.gov/feature/how-nasa-helped-the-33-chilean-miners>. Acesso em 10 jul 2018.
NSM (New State Man). Plight 12 lost boys cave has brought turbulent Thailand back together. 2018. Disponível em: <https://www.newstatesman.com/world/asia/2018/07/plight-12-lost-boys-cave-has-brought-turbulent-thailand-back-together>. Acesso em 10 jul 2018.
ONU. Relatório da ONU sobre Direitos Humanos e Solidariedade Internacional. IFP. 2012. Disponível em: <http://ifp-fip.org/pt/relatorio-da-onu-sobre-direitos-humanos-e-solidariedade-internacional/>. Acesso em 10 jul 2018.
SCMP (South China Morning Post). Global cooperation shines light thai heart darkness. 2018a. Disponível em: <https://www.scmp.com/comment/insight-opinion/article/2153826/global-cooperation-shines-light-thai-heart-darkness>. Acesso em 9 jul 2018.
______. Will thai junta use cave rescue soccer team to save itself? 2018b. Disponível em: <https://www.scmp.com/week-asia/politics/article/2153874/will-thai-junta-use-cave-rescue-soccer-team-save-itself>. Acesso em 10 jul 2018.
TERRA. Após 5 anos, 33 mineiros chilenos encontram dificuldades. Brasil. 2015. Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/cinco-anos-depois-33-mineiros-chilenos-enfrentam-dificuldades,f8967af4f7f28e5a6f12852a12824d803m4fwudf.html>. Acesso em 10 jul 2018.
THE BLADE. Thai boys bring world closer. 2018. Disponível em: <http://www.toledoblade.com/Editorials/2018/07/08/Thai-boys-bring-world-closer.html>. Acesso em 10 jul 2018.
THE GUARDIAN. Chile miners: rescue joy must not derail focus on why mine collapse happened. 2010. Disponível em: <https://www.theguardian.com/global-development/poverty-matters/2010/oct/13/chile-miners-rescue-mine-collapse>. Acesso em 10 jul 2018.
WHO. The Tragedy Of The Russian Submarine “Kursk” – A Naval Disaster For Russia In The Year 2000. 2016. Disponível em: <https://www.warhistoryonline.com/military-vehicle-news/kursk-submarine-disaster-watch.html>. Acesso em 9 jul 2018.
23 de Maio de 2018
Encontro com Osmany Oliveira: Transferência, difusão e circulação de políticas públicas [25.05.2018]
O PET-REL convida:
Encontro com o Autor – Osmany Porto de Oliveira (UNIFESP)
Osmany Porto é professor do curso de Relações Internacionais da Unifesp-Osasco. Concluiu seu pós-doutorado em Gestão de Políticas Públicas na Universidade de São Paulo, onde desenvolveu uma pesquisa acerca da difusão internacional de políticas brasileiras no setor de segurança alimentar. Possui dois doutorados em Ciência Política, pela Universidade de São Paulo e pela Université de la Sorbonne Nouvelle. É graduado em Relações Internacionais pela Università degli Studi di Bologna e mestre em Estudos Latino-Americanos, pela Université de la Sorbonne Nouvelle/IHEAL.
Nesta sexta-feira, 25/05/2018, às 10h, o professor estará presente na sala Multiuso, no Instituto de Relações Internacionais para uma discussão sobre “Transferência, difusão e circulação de políticas públicas”.
Para ter acesso ao artigo recomendado para o encontro clique aqui.
O PET-REL convida a todas/os para participarem!
Haverá certificado para as presentes.
27 de Dezembro de 2017
por Aisha Sayuri Agata da Rocha
As animações, um formato de produção audiovisual voltado para crianças, são um bom recurso para transmitir mensagens elições importantes, através de uma linguagem simples e de fácil entendimento. Esta análise tem por objetivo discorrer sobre a importância que as animações podem ter em uma formação educacional humana que preza pela aceitação da diversidade, ressaltando o papel importante tanto dos idealizadores quanto do conteúdo dos desenhos, sem esquecer também das dificuldades e as problemáticas que podem surgir no desenvolver das produções. Atualmente, as produções animadas têm desenvolvido, com sua linguagem artística própria, temáticas consideradas tabu pela sociedade, e vêm incluindo cada vez mais diversidade e representatividade em suas personagens e na formação das crianças e jovens pelo mundo.
Um primeiro exemplo disso seria o programa infantil Steven Universo. É uma produção que mostra a vida e as aventuras de um menino e as gems[1]. Através dessas personagens e do enredo, Steven Universo trata, por alusões, de relacionamentos entre personagens femininas, relacionamentos interraciais, preconceito, entre outros temas; como exemplo pode-se citar o relacionamento entre Rubi e Safira, duas gems – retratadas como femininas – que durante todo o desenho demonstram ter um envolvimento romântico duradouro, saudável e emocionante.
Tendo em vista que é uma produção destinada a crianças, ela influencia diretamente indivíduos em processo de formação, modificando o jeito com que aprendem a lidar com situações envolvendo alteridades[2] e até elas mesmas. Acompanhar o desenho a partir da visão de Steven, uma criança passando por esse processo de formação da própria identidade cercado pelo ambiente de diversidade proposto no enredo, e que lida com essas alteridades de forma natural é elemento central nesse processo. Cumpre assim, um importante papel social pela naturalidade e simplicidade que confere a temas vistos como tão polêmicos e complexos, promovendo sua acessibilidade.
Levando em conta ainda que é transmitido em muitos países – dentre eles Estados Unidos, Brasil, Espanha, Itália, França, Canadá, Dinamarca, entre outros, não é um fenômeno restrito ao nível nacional de onde a animação é feita. A produção cultural deixou de ser produzida e consumida só nacionalmente. Imersa no mundo globalizado, a exportação de conteúdo é um fenômeno cada vez mais comum. A projeção internacional que certos empreendimentos culturais conseguiram demonstra a característica transnacional da cultura; A maior conexão entre espaços distantes promovidas por esses conteúdos expande seu alcance. Dentre disso, as animações são importantes por atingir o público infantil; utilizando as dublagens feitas em diversas línguas e a transmissão dos conteúdos em vários lugares pelo mundo. Os desenhos animados adquiriram uma função social que transcende o nacional e potencializa sua capacidade transformadora e alcance.
Um dos primeiros desenhos que podem ser identificados como parte dessa tendência é Hora de Aventura. Ele trata de temas como assédio relacionamento amoroso entre mulheres; envolto por um cenário apocalíptico que gera possibilidades de reflexões sobre outras questões políticas, como o abandono parental por exemplo, para além da diversidade representada por alguns personagens como Marceline e Princessa Jujuba, que aparentam ter se envolvido romanticamente. Entretanto Hora de Aventura tem muitas cenas de violência, que ocasionam a censura de certas partes em diversos países, que geram confusão na cabeça das crianças, podendo ter repercussões negativas no futuro por também influenciarem o processo de formação.
Essa animação contou com a participação de Rebecca Sugar, criadora de Steven Universo, na escrita de alguns episódios. Nessas dinâmicas, roteiristas e produtores são atores chave para a concretização do potencial educacional e de mudança do que produzem. Indivíduos como Rebecca Sugar são grandes vozes desse fenômeno. Ela, como partícipe direta da indústria da animação, procura se comunicar e fortalecer as crianças consideradas “esquisitas”, mostrando que não há nada de errado em ser diferente (D’ANGELO, 2017).
Quando Rebecca conseguiu produzir seu desenho próprio, tornou-se a primeira mulher criadora de séries animadas do Cartoon Network (D’ANGELO. 2017). Em Steven Universo, as temáticas já mencionadas são tratadas através de metáforas muito mais explícitas que em outras animações e isso deve-se em parte pela identidade de Rebecca Sugar, pautada na centralidade de questões de gênero e sexualidade. Como a própria criadora diz, a presença de mulheres fortes e de relacionamentos LGBTs em seu desenho é relacionado com a sua experiência enquanto mulher bissexual (AVERY, 2016), ela quer dar para as crianças outras narrativas sobre o amor a fim de mostrar que todos os amores são possíveis, válidos e devem ser respeitados. Outro elemento que corrobora tal afirmativa é a constante reafirmação das mensagens educativas que a criadora faz em entrevistas quando questionada sobre a natureza das cenas e histórias dentro do enredo. É extremamente importante para Rebecca Sugar que suas mensagens sejam compreendidas e desenvolvidas, tanto que o conteúdo que produz é projetado para além da televisão. Através de livros infantis relacionados com o conteúdo de seu desenho, ela consegue desdobrar com mais profundidade as temáticas e as mensagens de sua produção, potencializando a dimensão transformadora.
A continuidade desse movimento político, com um potencial propósito pedagógico, pode ser vista na releitura de desenhos antigos como As Meninas Superpoderosas, que também é uma produção de alcance internacional. Em sua versão de 2016, o desenho animado mantém as críticas ao machismo, à estrutura patriarcal e aos papéis de gênero por mostrar três meninas super-heroínas poderosas que salvam o dia, ao invés de personagens indefesas que precisam ser salvas; com um pai responsável por cuidar, cozinhar e limpar, tarefas que comumente são associadas necessariamente a uma figura feminina. Além disso, essa nova versão já tratou, metaforicamente, sobre transexualidade retratando um cavalo que se sente unicórnio, e quer ser um unicórnio[3]. Sem mencionar que explora com mais profundidade o empoderamento das meninas frente a vilões masculinos que desafiam suas capacidades, proporcionando a todas as meninas, que têm acesso ao desenho, uma visão mais positiva sobre si e do que são capazes de fazer.
Ademais, a inserção de uma menina superpoderosa negra – Bliss – demonstra uma preocupação com a representatividade, isso porque inclui dentro das personagens centrais do desenho alguém negra, diversificando as representações que o desenho traz, retratando agora não só mulheres brancas, mas também mulheres negras. Democratizando um pouco a produção, e influenciando diretamente no empoderamento de meninas negras pela via da identificação, Meninas Superpoderosas passa a mostrar e se comunicar diretamente com um público maior, podendo assim afetar a formação de mais crianças.
Outra pluralização que é importante ser mencionada é em relação aos centros de produção de tal conteúdo. A periferia do sistema internacional tem ganhado espaço nesse mercado. Pode-se exemplificar isso através da primeira produção inteiramente latinoamericana do Cartoon Network: Irmão do Jorel. Esse desenho foi criado no Brasil, e aos poucos tem conseguido expandir seu alcance para a América Latina, com perspectivas de ser veiculado dos Estados Unidos (D’ANGELO, 2016). A temática da animação também traz elementos de diversidade, principalmente na forma de três personagens femininas: uma que performa a feminilidade branca e ocidental, através da personificação da delicadeza, fragilidade, elegância; e outras duas que não correspondem a essa construção, por praticarem esportes, terem uma postura mais dura e desafiadora.
Todo esse conjunto de produções audiovisuais exploradas permite facilitar o debate sobre desconstrução de padrões de gênero, homossexualidade, LGBT e, raça com crianças. O retrato visual e a linguagem simplificada e natural pelas os temas são abordados nas das animações, permite que a discussão seja mais acessível tanto aos mais jovens quanto a demais públicos não familiarizados com as temáticas. Para fins educacionais, esse é um recurso importantíssimo que pode ser usado, promovido e patrocinado por movimentos sociais, ONGs e Estados. Isso inclui, na formação de jovens, discursos sobre aceitação, preconceito e respeito.
Mas não se pode esquecer dos possíveis efeitos negativos desse processo. A produção transnacional da cultura também traz consigo um efeito de massificação. As manifestações tradicionais e locais aos poucos são substituídas por uma linguagem que busca comunicar-se com mais pessoas ao mesmo tempo em vários lugares. Desviando os investimentos daquilo que é localmente identitário, para o que pode ser internacionalmente exportado. Além do mais, a representação que tanto discute-se sobre não se mostra necessariamente positivas em todas as personagens inseridas, por vezes reforça estereótipos involuntariamente, como por exemplo a personagem Bliss que é retratada como alguém que não consegue controlar seus poderes e precisa ser contida, dando respaldo a visão que mulheres negras são descontroladas e podem explodir a qualquer momento – o mito da negra raivosa. Porém, mesmo com todas essas possíveis negatividades, todo o empreendimento ainda é importante para facilitar a educação de jovens e crianças sobre a diversidade do mundo.
A combinação do interesse mercadológico e o interesse social nessas produções gera um resultado importante nesse sentido. O desejo dos grandes canais produtores em agregar mais público e vender mais ao retratar temas mais progressistas e integrar o movimento de inclusão e representatividade associado à necessidade de financiamento de roteiristas e produtores que querem retratar a diversidade e promover a mudança; resulta numa maior abertura para a concretização de projetos como os de Rebecca Sugar e os já citados. Seguindo essa tendência, cada vez mais poderá haver na televisão animações disponíveis que tratem de temáticas consideradas tabus, mas que visam a quebra e desconstrução de preconceitos e padrões. Por mais que também haja a possibilidade de haver uma inundação do mercado com desenhos com estruturas muito parecidas, e as mensagens se percam na onda de superprodução visando o lucro.
A partir de uma visão mais institucional, a intensificação da internacionalização desse fenômeno, com uma diversidade ainda maior de lugares de narrativas, de temas e do alcance dessa nova possibilidade de socialização cria um locus mais sólido para ação, intervenção e promoção internacional de propostas sociais. Através de financiamentos privados e estatais, em programas de incentivo à cultura, ou partindo de ONG’s e até de Organizações Internacionais – como a UNESCO com o Fundo Internacional para a Promoção da Cultura (IFPC) – pode-se explorar essa alternativa cultural na produção audiovisual para concretizar avanços em pautas referentes à raça, gênero e sexualidade. Dentro desse cenário abre-se a perspectiva não só para os conteúdos massificados para a venda, mas também para as produções relacionadas a cultura local identitária que precisa ser resgatada e valorizada.
[1] No programa, as gems são seres alienígenas humanoides. Elas vêm de um planeta chamado Homeworld. O que as define e diferenciar é ter um centro na forma de uma pedra preciosa. Essa pedra diz qual o nome daquela gem.
[2] Alteridades aqui está sendo usado no sentido de algo diferente do que aquilo que o eu é. Steven é um meio humano, meio gem, que se depara constantemente com o que era relacionamento interracial de seus pais, e os encontros entre humanos e gems. Além também do próprio relacionamento amoroso entre as gems, todas personagens femininas, nisso pode-se citar tanto Rubi e Safira, quanto a Pérola e Rose.
[3] Nesse episódio, também são explorados de certa forma os riscos de se fazer uma cirurgia de transição, uma vez que quando o cavalo passa pelo procedimento de implantação de um chifre, resultados prejudiciais acabam surgindo. No final, a cirurgia é revertida, contudo, ele descobre que ele realmente sempre foi um unicórnio. Para se chegar a essas interpretações, é preciso ter familiaridade com o debate, o que pode diminuir o efeito do potencial pedagógico da proposta.
Referências Bibliográficas:
AVERY, Dan. Rebecca Sugar came out as bi, explained why queerness is so important to “Steven Universe”. NewNowNext, jul 2016. Disponível em: http://www.newnownext.com/rebecca-sugar-came-out-as-bi-explained-why-queerness-is-so-important-to-steven-universe/07/2016/ acesso em nov 2017
D’ANGELO, Helô. Batemos um papo com Rebecca Sugar, criadora de ‘Steven Universo’. Superinteressante, mai 2017. Disponível em: https://super.abril.com.br/cultura/entrevista-com-rebecca-sugar-criadora-de-steven-universe/ acesso em out 2017
D’ANGELO, Helô. Batemos um papo com Juliano Enrico, criador do ‘Irmão do Jorel’. Superinteressante, nov 2016. Disponível em: https://super.abril.com.br/cultura/batemos-um-papo-com-juliano-enrico-criador-do-irmao-do-jorel/ acesso em out 2017
O GLOBO. Conheça a primeira personagem negra de ‘As meninas superpoderosas’. set 2017. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/revista-da-tv/conheca-primeira-personagem-negra-de-as-meninas-superpoderosas-21836469 acesso em out 2017
SMITH, Nia Howe. ‘Steven Universe’ creator on growing up, gender politics, her brother. Entertainment Weekly, jun 2015. Disponível em: http://ew.com/article/2015/06/15/steven-universe-creator-growing-gender-politics-her-brother/ acesso em out 2017
INTERNATIONAL FUND FOR THE PROMOTION OF CULTURE. Disponível em: https://en.unesco.org/ifpc/content/about-fund acesso em out 2017
16 de Dezembro de 2017
por Barbara Tiemi Okamura
No último mês de agosto o Tribunal Constitucional do Chile aprovou uma lei que permite o aborto em três casos: risco de vida à mãe, estupro e inviabilidade do feto. A presidenta Michelle Bachelet, também ex-diretora executiva da ONU Mulheres, comemorou o acontecimento como um importante passo na luta pelos direitos das chilenas. Entretanto, 2017 é um ano de eleição presidencial no país e assim, faz-se necessário perguntar quais são as conexões entre o cenário político chileno – e latino americano – e essa conquista feminina. A presente análise argumenta que a aprovação dessa legislação pode ser um importante elemento de capital político para os candidatos.
Segundo a empresa de pesquisas Cadem, 70% dos chilenos apoiavam a descriminalização do aborto nos três casos previstos pela lei apresentada por Bachelet (LA TERCERA, 2017). A aprovação da lei também foi derivada dos esforços de movimentos feministas como o Corporación por los Derechos Sexuales y Reproductivos de las Mujeres (Miles) (MOLINA, 2017) que fizeram manifestações a favor da legislatura, pressionando tanto o Congresso quanto o Tribunal Constitucional e articulação com outras organizações sociais para angariar apoio à causa. Isto, aliado ao discurso da deputada da oposição, Lily Pérez, que disse que era uma mulher e iria votar em defesa daquilo que as mulheres chilenas sentiam (MOLINA, 2017) deixa clara a importância da pauta para a sociedade chilena, especialmente para as mulheres.
A partir disso, deve-se observar de que forma os discursos de defesa ou rechaço à lei poderão prejudicar ou favorecer os candidatos presidenciais. O Chile passa, assim como Brasil, Argentina e outros países latino americanos, por uma fase de grande desconfiança por parte da população com a esquerda, especificamente a esquerda social democrata e, como consequência, a imagem da atual presidenta está bastante fragilizada (MONTES, 2017). Além disso, o Chile vive uma diminuição nas suas previsões de crescimento econômico devido à contração de setores importantes – mineração, serviços empresariais, construção, etc – que juntos compõem 40% da economia (GRANADO, 2017). É neste contexto que Sebastián Piñera, candidato do bloco de direita Chile Vamos, ganha força, o que pode ser comprovado por sua vitória nas primárias com maioria significativa (MONTES, 2017).
Piñera já declarou ser contra a descriminalização do aborto, mesmo nos casos previstos por essa lei, por ser a favor da vida em todos os momentos (BBC, 2017). Sua coalizão também expressou rejeição e ainda usou o acontecimento para mostrar, de forma negativa, quais são os reais valores do governo de Bachelet e o atacou dizendo que a decisão era contra os Direitos Humanos por ser contra o direito à vida (JARA, 2017). Dessa forma, o bloco de direita fez uso da questão do aborto para fragilizar ainda mais a imagem da presidenta com o intuito de fortalecer a campanha de seu candidato, que é basicamente pautada na proposta de conduzir o país de forma muito diferente do governo vigente (CUÉ, MONTES, 2017). Por fim, esse discurso conservador do Chile Vamos e de Piñera é um ponto de aproximação com a Igreja Católica, instituição ainda muito forte e relevante no Chile, e seus apoiadores, podendo assim, ganhar seus votos.
Entretanto, esse posicionamento de Piñera é o que pode fortalecer a esquerda chilena. Alejandro Guillier, candidato pela coalizão de esquerda que se alinha com Bachelet, declarou em suas redes sociais que não serão tempos melhores para as mulheres se Piñera for eleito (LA TERCERA, 2017). Fica claro que o argumento de que o candidato de direita trará retrocessos para os direitos das mulheres tem o potencial de ser bastante convincente para eleitores, especialmente eleitoras. Esse raciocínio ainda é fortalecido pelos desenvolvimentos da lei em questão, uma vez que há um processo para alterar partes dessa, o que é considerado como um retrocesso e que é movimentado pela oposição, Chile Vamos (AYALA, VALENZUELA e CARO, 2017).
Ademais, Guillier pode se beneficiar da proximidade de seu bloco com a presidenta. Michelle Bachelet foi, de fato, pivô da aprovação da lei que permite o aborto em três ocasiões: ela a propôs em janeiro de 2015 e desde então tem direcionado esforços para que a promulgação ocorresse, defendendo publicamente que as mulheres deveriam ter escolhas e sendo bem sucedida por ter conseguido os votos de seu bloco, mesmo enfrentando resistências internas, que partiam do Partido Democrata Cristão. Um argumento possível a favor de Guillier seria que ele daria continuidade às conquistas sociais e à visibilidade de pautas consideradas progressistas, por pertencer ao bloco de Bachelet, coalizão que a apoiou no Congresso para que a lei fosse aprovada e que recentemente se separou do Partido Democrata Cristão (MONTES, 2017).
Essa mesma importância pessoal de Michelle Bachelet na luta pelo direito ao aborto tem o potencial de beneficiar outra presidenciável, Beatriz Sanchéz, do bloco Frente Ampla. Este propõe uma nova esquerda, que realmente supere problemáticas que a esquerda social democrata do Chile não conseguiu resolver (MONTES, 2017). Essa é uma das bases da imagem de Sanchéz, que poderia ganhar maior proeminência por ser mulher. A lei de descriminalização do aborto em certos casos é uma vitória para muitas chilenas e o fato de ter sido liderada por uma mulher é muito simbólico. Isso contribui fortemente para o argumento de que mulheres no poder têm maior tendência a agir em defesa dos interesses de mulheres e por isso, se busca-se outros avanços nos direitos femininos, eleger uma presidenta é a melhor chance. Considerando que Beatriz Sanchéz é a principal, se não única, mulher concorrendo à presidência, é fácil enxergar como a aprovação dessa lei a favorece, principalmente quando se lembra da sua proposta de renovação da esquerda.
Dessa forma, pode-se traçar previsões para o contexto chileno. Um cenário muito possível é que o Chile não destoe do processo de crise das esquerdas e fortalecimento das direitas que ocorre na América Latina – e no mundo – e dê mais importância a questões econômicas, como a diminuição do crescimento, do que outras. Isso enfraqueceria os argumentos contrários a Piñera, que apontam o seu conservadorismo e a vontade de seu bloco de retroceder a lei do aborto. Caso seja eleito, será realmente preocupante o efeito que um presidente com posicionamento conservador e com apoio partidário, nesse sentido, pode ter sobre a legislação e, consequentemente, sobre os direitos das mulheres.
Assim, tem-se que as pautas feministas têm ganhado relevância nas políticas de inúmeros países, como o Chile. A sua importância se mostra não só nos avanços alcançados, e nesse caso, uma conquista que vai contra crenças cristãs em um país onde a Igreja Católica ainda é muito influente, mas na possibilidade do uso dessas pautas como capital político, motivando declarações de candidatos, coalizões e podendo prejudicar ou beneficiar as chances de Piñera, Guillier e Sanchéz de chegar à presidência.
Referências:
AYALA, L., VALENZUELA, P. e CARO, I. ‘Cámara Pide al Tribunal Constitucional Rectificar Fallo por Objeción de Conciencia’, La Tercera, 2017, diponível em < http://www.latercera.com/noticia/camara-pide-al-tribunal-constitucional-rectificar-fallo-objecion-conciencia/>
CADEM: 70% respalda aprobación del TC al proyecto de aborto, La Tercera, 2017, disponível em <http://www.latercera.com/noticia/cadem-70-respalda-aprobacion-del-tc-al-proyecto-aborto/>
CHILE Aprueba la Despenalización del Aborto en Tres Causales en Histórica Decisión, BBC, 2017, disponível em <http://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-41006338>
JARA, Alejandra ‘Chile Vamos “Lamenta” Aprobación de Aborto en TC’, La Tercera, 2017, disponível em <http://www.latercera.com/noticia/chile-lamenta-aprobacion-aborto-tc/>
CUÉ, Carlos E.; MONTES, Rocío ‘Sebatián Piñera: ‘O Chile Perdeu o Rumo com Bachelet’’, El País, 2017, disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/22/internacional/1492814810_813701.html>
GUILLIER Arremete Contra Piñera por Aborto: “Con Él No Serán Tiempos Mejores para las Mujeres”, La Tercera, 2017, disponível em <http://www.latercera.com/noticia/guillier-arremete-pinera-aborto-no-seran-tiempos-mejores-las-mujeres/>
GRANADOS, Óscar, MONTES, Rocío ‘América Latina Se Recupera, Mas Sem Criar Empregos’, El País, 2017, disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/08/04/internacional/1501845521_982140.html>
MICHELLE Bachelet a la BBC Sobre el Aborto en Chile: “Soy una Convencida de que las Mujeres Deben Tener la Posibilidad de Decidir”, BBC, 2016, disponível em <http://www.bbcmundo.com/mundo/noticias-america-latina-37502972>
MOLINA, Paula ‘Las Mujeres Clave en la Despenalización del Aborto en Tres Causales en Chile’, BBC, 2017, disponível em <http://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-40998456>
MONTES, Rocío ‘Centro e Esquerda Rompem pela Primeira vez em Três Décadas no Chile’, El País, 2017, disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/05/01/internacional/1493596304_477769.html>
MONTES, Rocío ‘Chile se Soma à Crise Global da Social-Democracia’, El País, 2017, disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/05/20/internacional/1495246013_366842.html>
MONTES, Rocío ‘Piñera Obtém Uma Vitória Expressiva nas Primárias da Direita Chilena’, El País, 2017, disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/07/03/internacional/1499055793_670929.html>