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por Daniel Cunha Rego

por Daniel Cunha Rego

 

Durante sua entrevista no Jornal Nacional, o candidato à Presidência da República Jair Bolsonaro afirmou que o livro “Aparelho Sexual e Cia.” estava sendo distribuído nas escolas públicas como parte de um suposto “kit gay”, fato negado pela editora do livro e pelo Ministério da Educação (O GLOBO, 2018). O mesmo candidato cita, em seu plano de governo, o “marxismo cultural” que estaria se unindo a oligarquias para “destruir a família” (p. 8), além de sugerir uma conspiração totalitária por parte do Foro de São Paulo (p. 11). Circulam, nas redes sociais, textos que alertam para uma “venezuelização” do Brasil caso o candidato do PT, Fernando Haddad, ganhe as eleições.

 

Os fatos citados no último parágrafo são exemplos do que é aqui chamado de revisionismo ideológico do presente. Assim como o revisionismo histórico negacionista do holocausto[1] ou, mais próximo de nossa realidade, da ditadura civil-militar (LENTZ, 2018), ganhou força a interpretação ideológica e personalíssima de fatos da história recente ou do presente, concatenada a objetivos políticos explícitos. Mais do que apenas propagar fake news, esse tipo de revisionismo cria uma realidade à par dos fatos e blindada de contestação, prontamente rejeitada e estigmatizada como propaganda de adversários políticos: a academia torna-se “comunista” ou “esquerdista” junto a outras instituições antes reputadas como confiáveis (o jornalismo profissional ou a própria Justiça Eleitoral, por exemplo), que caem em descrédito.

 

Exemplos não faltam, e não cabe aqui mencioná-los exaustivamente. O que interessa é a espantosa fluidez com que essas narrativas são popularizadas através das mídias sociais sem que percam sua credibilidade ao serem atacadas. Tal fenômeno aproxima-se do que se convencionou a chamar de “pós-verdade”[2], porém diferente dela: o foco aqui é na narrativa histórica, e não nas fake news pontuais ou nas versões sobre notícias. O revisionismo ideológico, por exemplo, coloca num mesmo contínuo a criação do Foro de São Paulo (uma união de partidos de esquerda latino-americanos iniciada na década de 1990), o “kit gay” (expressão pejorativa para o material “Escola sem Homofobia”, proposta que nunca chegou a ser executada pelo governo) e a crise econômica e política na Venezuela. Assim, apela-se sobretudo para o medo (de ver seus filhos “doutrinados” na escola, de se ver numa situação de crise, autoritarismo e emigração como no país vizinho) e para a capacidade de difusão e de falsa credibilidade das mídias sociais.

 

Outra frente desse revisionismo é o negacionismo tácito: enfatiza-se, por exemplo, a narrativa do PT como o partido mais corrupto da história e que pouco ou nada fez de bom pelo país, negando o fato objetivo de que, por bem ou por mal, as instituições democráticas de combate à corrupção estão relativamente sadias e atuantes. Nega-se, também, a confiabilidade das urnas eletrônicas, que estariam sujeitas à manipulação para favorecer a esquerda, ignorando o fato de que a missão observadora das eleições da Organização dos Estados Americanos (OEA) não achou qualquer indício de fraude eleitoral no Brasil (FOLHA, 2018).

 

O uso político da história – inclusive de suas distorções – não é um fenômeno novo, tampouco uma “jabuticaba”: está presente, por exemplo, no mito fundador histórico de toda nação, ou nas diversas batalhas revisionistas ideológicas travadas ao longo do tempo. O que chama atenção atualmente, entretanto, é que este revisionismo deslocou-se do passado distante (ou até mesmo remoto, no caso dos mitos fundadores) para o tempo de vida da maioria dos eleitores: são revisadas narrativas que se estendem até o presente, que foram vistas e vividas por grande parte das pessoas vivas. Fica fácil afirmar, então, que o Brasil virará uma Venezuela, descambando para o autoritarismo ditatorial socialista caso o PT ganhe. Mesmo que ignore o fato ululante de que, nos últimos 14 anos, não virou.

 

[1] O negacionismo do holocausto atua principalmente em duas vertentes: ou nega que ele sequer existiu, como o fez o ex-presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad ao se colocar contra o Estado de Israel ou nega sua dimensão e suas maiores atrocidades, como a existência de câmaras de gás: ex-procurador e escritor estadunidense Edgar J. Steele chega a afirmar que as fotos de corpos atribuídos a judeus mortos seriam na verdade de checos e polacos que morreram de febre tifóide (HOLOCAUST, 2009). Chama atenção que grande parte dos negacionistas não possuem formação acadêmica em história, sendo políticos ou escritores “leigos”.

[2] Segundo o dicionário de Oxford, que elegeu pós-verdade como palavra do ano em 2016, o termo é um substantivo “que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais” (FÁBIO, 2016).

 

Referências bibliográficas

O GLOBO. É #FAKE que livro citado por Bolsonaro no JN é o que aparece com carimbo de escola de Maceió. G1, 04 set. 2018.  Disponível em: <https://g1.globo.com/fato-ou-fake/noticia/2018/09/04/e-fake-que-livro-citado-por-bolsonaro-no-jn-e-o-que-aparece-com-carimbo-de-escola-de-maceio.ghtml&gt;. Acesso em 13 out. 2018.

HOLOCAUST Revisionism. Time, 2009. Disponível em: <http://content.time.com/time/specials/packages/article/0,28804,1860871_1860876_1861026,00.html&gt;. Acesso em 13 out. 2018.

CATTINI, Giovanni C. Historical revisionism. Transfer: Journal of Contemporary Culture, v. 6, p. 28-38, 2011.

LENTZ, Rodrigo. O STF e a “maldição autoritária” em andamento. Le Monde Diplomatique, 4 out. 2018. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/o-stf-e-a-maldicao-autoritaria-em-andamento/&gt;. Acesso em 13 out. 2018.

FÁBIO, André Cabette. O que é ‘pós-verdade’, a palavra do ano segundo a Universidade de Oxford. Nexo, 16 nov. 2018. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/11/16/O-que-%C3%A9-%E2%80%98p%C3%B3s-verdade%E2%80%99-a-palavra-do-ano-segundo-a-Universidade-de-Oxford&gt;. Acesso em 13 out. 2018.