Mudanças Climáticas e Violência no Sahel: uma correlação superestimada?
Yasmin Freitas Taia
Os fóruns internacionais sobre mudanças climáticas deram origem a diversos tratados e acordos que ampliaram o financiamento climático direcionado à África, com destaque para a Faixa do Sahel (The World Bank Group, 2024). A justificativa central adotada por muitos países do Norte Global é que a escassez de recursos naturais, agravada pelas mudanças climáticas, têm impulsionado a intensificação de conflitos armados na região. Essa narrativa sustenta a mobilização de apoio internacional sob a premissa de que o desenvolvimento sustentável contribuiria para a estabilização política e social no Sahel — uma extensa zona de transição ecológica ao sul do deserto do Saara, que abrange países como Burkina Faso, Mali, Níger, Camarões, Guiné, Gâmbia, Senegal, Nigéria, Chade e Mauritânia (GTI, 2025).
Fonte: Britannica (2025).
No entanto, essa correlação direta entre crise climática e violência armada tem sido cada vez mais contestada por pesquisadores e instituições especializadas. Estudos como o artigo “The Central Sahel: Scene of New Climate Wars?” e os relatórios do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia apontam que, embora mudanças ambientais desempenham um papel relevante, os fatores estruturais — como disputas por poder, instabilidade política, presença de grupos jihadistas e heranças coloniais — são determinantes mais imediatos para a violência. Essa perspectiva crítica convida à revisão das estratégias internacionais de cooperação, indicando que o foco exclusivo no clima pode mascarar as verdadeiras dinâmicas que alimentam os conflitos no Sahel.
Terrorismo no Sahel: conflitos armados, disputas de terra e grupos jihadistas
O Índice Global de Terrorismo (GTI, na sigla em inglês) é um relatório organizado pela organização de pesquisa online do Instituto para Economia e Paz (IEP), abordando as tendências e padrões globais de terrorismo. A 12ª edição, lançada em 2025, possui um capítulo destinado ao Sahel e apresenta os principais aspectos do terrorismo nessa região. A partir disso, demonstra que, desde 2019, há registros alarmantes de aumento de mortes por terrorismo. A região é responsável por um recorde de 51% das mortes globais por terrorismo em 2024, que corresponde a 3.885 mortes em um ano.
Fonte: GTI (2025).
A instabilidade política dos governantes no Sahel também facilita a insurgência desses grupos, facilitando a tomada de poder. Desde 2020, seis golpes de estado foram dados no Sahel, sendo: dois no Mali, dois em Burkina Faso, um no Níger e um na Guiné (BBC, 2025). Assim, a denominação “cinturão do golpe” na África, faz jus ao seu histórico de golpes e atuais governos militares (BBC, 2025).
Nesse contexto, os dois principais grupos terroristas que atuam na região são o Jama’at Nasr al-Islam wal Muslimin (JNIM), ligado à Al-Qaeda, e o Estado Islâmico no Grande Saara (EIGS ou ISIS), filial do Estado Islâmico, ambos jihadistas (Martín Núñez, 2025). Essa conjuntura de fragilidade institucional, somada à presença ativa de grupos extremistas, aprofunda o colapso da autoridade estatal e favorece a consolidação de áreas sob controle jihadista, tornando o Sahel um epicentro crítico de insegurança e instabilidade na África.
O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) lançou em 2023 o relatório “Firearms Trafficking in the Sahel”, em que analisa a origem e o fluxo do mercado negro das armas (ONU News, 2023). Com esse documento, é possível compreender que parte do financiamento dos grupos terroristas provém do tráfico de armas e do crime organizado. Por outro lado, a narrativa dos grupos jihadistas, de que eles são provedores de segurança e justiça contra os abusos estatais, leva a influência na população local, aproveitando-se da vulnerabilidade que encontram por causa das crises (Raineri, 2020). Logo, essa aceitação popular facilitou a arrecadação de recursos do povo por meio de impostos, que são cobrados da população em troca de segurança e proteção, dificultando a ação internacional (Raineri, 2020). Os grupos terroristas utilizam essa janela de vulnerabilidade e instabilidade para promoverem discursos sobre justiça. Assim, seus movimentos passam a ter uma maior aderência às causas de luta, fortalecendo os conflitos e causando uma maior instabilidade na região justamente por se apoiar em divisões e disputas já existentes.
Os governos da região frequentemente associam o avanço do jihadismo às mudanças climáticas, o que pode representar uma estratégia para alcançar resultados mais eficazes na captação de recursos internacionais (ICC, 2020). Ao estabelecer essa correlação, ainda que nem sempre direta na prática, esses Estados buscam reforçar a urgência da crise e, assim, ampliar as chances de obter apoio financeiro externo para enfrentar os conflitos e promover estabilidade. Com isso, muitos países e instituições intervieram no território para auxiliar no contraterrorismo e em políticas de desenvolvimento, como a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) (Raineri, 2020). No entanto, essa intervenção mostrou em muitos casos o efeito contrário: ao invés de reduzir os conflitos, deu munição para os grupos terroristas.
A Ineficácia da Cooperação Internacional no Sahel
O “Sahel Climate Investment Summit”, ou Cúpula de Investimento Climático do Sahel, foi uma reunião que ocorreu em 2019, em Niamey, Nigéria. Foi nesse encontro que chefes de estado de 17 países da região aprovaram um plano ambicioso de US $ 400 bilhões (mais de €350 bilhões) para o período de 2019 a 2030, com o objetivo de combater os efeitos das mudanças climáticas no Sahel (Raineri, 2025) (The New Arab, 2019).
As políticas estatais são de extrema importância para dar uma maior estabilidade e credibilidade política, com o fornecimento de tropas para combater o terrorismo e garantir o acesso aos residentes de recursos. Assim, os países da região podem ser mais adequados para solucionar os conflitos do que a comunidade internacional atuando diretamente, justamente por ter uma maior proximidade com os conflitos existentes.
O briefing do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia “Sahel Climate Conflicts? When (fighting) climate change fuels terrorism”, escrita por Luca Raineri, faz diversos questionamentos sobre a relação entre mudanças climáticas e os conflitos armados. Nesse sentido, apresenta três estudos de caso mostrando como a participação internacional piorou o cenário de tensões. Um dos casos está relacionado às políticas alimentares, em que os países desenvolvem a produção de alimentos com a expectativa de reduzir os conflitos. No entanto, houve uma intensificação que é justificada pelo interesse na posse de terras, não na alimentação para sobrevivência (Raineri, 2025). Observar essa dinâmica para além da ótica dos direitos humanos, observando os conflitos políticos e econômicos, leva a necessidade de uma reestruturação do auxílio internacional e local.
A conjuntura mostra a ineficiência de solucionar os conflitos a partir do desenvolvimento climático e alimentar, visto que apenas a produção de alimentos não soluciona os conflitos de interesses econômicos. Assim, os atores nacionais e internacionais deveriam fazer pesquisas aprofundadas para avaliar essa relação e os riscos existentes ao implementar políticas, como ocorreu na política alimentar.
Apesar dessa cooperação estabelecida, a recente tomada de poder nos países do Sahel leva a um afastamento do Ocidente, motivado principalmente por um combate ao neocolonialismo. Após os golpes que derrubaram governos civis Mali, Níger e Burkina Faso, os novos regimes militares romperam com a CEDEAO, acusada de atuar sob influência francesa, e formaram a Confederação dos Estados do Sahel (AES), uma aliança regional que prioriza a soberania, integração militar e segurança coletiva independente de parceiros ocidentais (Anfruns, 2024). A escolha por essa reorientação reflete uma estratégia de afirmação de autonomia regional e contestação das estruturas neocoloniais simbolizadas pelo franco CFA e pelos acordos de segurança com ex-potências coloniais.
A desconsideração de todo o aspecto político, histórico e econômico da região tende a levar a conflitos cada vez mais intensos. A participação de outros países é importante para a amenização e solução dos conflitos, principalmente devido a sua força militar e capacidade econômica. Porém, a fim de evitar os principais impactos negativos discutidos nesta análise, os países precisam dessa ampla compreensão histórica junto a um alinhamento com a população local, essencial para compreender os interesses de cada grupo e conseguir a legitimidade de todos para que o próprio Estado ou outros países consigam aplicar medidas. Logo essa cooperação é essencial para encontrar soluções que sejam de fato eficientes para os desafios enfrentados na Faixa do Sahel.
Conclusão
Em suma, o agravamento das condições climáticas globais intensifica a competição pelo acesso e controle de recursos naturais estratégicos. Essa luta, frequentemente inserida em um contexto de fragilidade estatal, tensões identitárias e disputas por legitimidade política, contribui para a escalada dos conflitos na Faixa do Sahel. No entanto, como discutido ao longo desta análise, a suposição de que a violência decorre exclusivamente da degradação ambiental desconsidera os múltiplos fatores políticos, históricos e econômicos que moldam a realidade da região. A associação direta entre clima e terrorismo, embora funcional para justificar e captar financiamento externo, pode resultar em intervenções mal planejadas, que agravam as desigualdades locais e fornecem narrativas de legitimação para grupos armados.
A efetividade das políticas de ajuda e cooperação internacional no Sahel exige, portanto, uma abordagem mais crítica e contextualizada. É imprescindível que os formuladores de políticas considerem as especificidades locais, envolvam as comunidades afetadas e respeitem as dinâmicas internas de poder. A compreensão dos jogos de interesse entre agricultura, pastoreio e ocupação territorial, por exemplo, pode revelar como disputas econômicas e políticas são disfarçadas sob o manto da crise climática. Nesse sentido, perguntas-chave como "quem deve gerir os recursos?" e "como diminuir a atuação do terrorismo?" devem nortear qualquer tentativa de intervenção. Por fim, a crescente rejeição à presença estrangeira — impulsionada pelo discurso anti neocolonial e pela reorganização regional por meio da Confederação dos Estados do Sahel — demonstra que soluções duradouras dependerão menos de imposições externas e mais de cooperação horizontal, enraizada na legitimidade local e no respeito à soberania dos povos do Sahel.
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