Quem tem medo das pessoas trans? O TERFismo britânico e a erosão democrática
Gabriel Modolo Capelozza Boaventura
A célebre escritora J.K. Rowling posa diante da câmera. Charuto na mão direita. Um copo de uísque na esquerda. Um sorriso de vitória. A legenda da foto diz “adoro quando um plano dá certo”. O plano ao qual a autora se refere é a recente decisão da Suprema Corte do Reino Unido que reafirma a definição legal de “mulher” como alguém do sexo biológico feminino, excluindo, portanto, mulheres trans desse reconhecimento jurídico (Davies, 2025). A manifestação de Rowling ganhou destaque nas redes sociais e expõe o cerceamento dos direitos das pessoas trans na sociedade britânica.
Assim, esta análise visa refletir sobre o retrocesso dessas garantias como expressão de um movimento de erosão democrática. A partir do contexto do Reino Unido, investiga-se como o espaço público vem sendo ocupado por discursos de exclusão identitária, legitimados pela retórica da defesa de valores e da proteção de grupos sociais. O que justifica a cruzada contra as pessoas trans em uma sociedade que se diz democrática? E até que ponto essa perseguição representa um avanço no fechamento da política enquanto espaço de pluralidade e disputa legítima por reconhecimento?
A Ilha TERF: o cerco à identidade trans no Reino Unido
Para compreender os impactos da recente decisão da Suprema Corte britânica, é necessário situá-la no contexto de formação e consolidação de discursos trans-excludentes no país. O Reino Unido tornou-se, nos últimos anos, um dos principais epicentros do movimento anti-transgênero global, em grande parte devido à ascensão do feminismo radical trans-excludente (TERF). A influência e a penetração institucional desse movimento são tamanhas que o país passou a ser frequentemente apelidado de “Ilha TERF” por analistas e ativistas (Baska, 2021).
O ano de 2017 é entendido como um ponto de inflexão para o fortalecimento de grupos TERF, marcado pelo anúncio da então primeira-ministra Theresa May acerca da proposta de reformar a Lei de Reconhecimento de Gênero de 2004 (GRA). A alteração visava permitir que pessoas trans alterassem o marcador de sexo de suas certidões de nascimento com base na autodeterminação, sem a necessidade de diagnóstico médico ou de enfrentar antigas burocracias, que eram, muitas vezes, invasivas e onerosas (Pearce; Erikainen; Vincent, 2020). A decisão foi celebrada e apoiada por diversos partidos políticos e organizações LGBTQ+. No entanto, reações adversas surgiram.
Em julho de 2018, o governo britânico realizou uma consulta pública sobre a reforma do GRA na Inglaterra e no País de Gales. No período que antecedeu a consulta, diversas organizações de campanha foram fundadas com o objetivo de se opor à autodeterminação como mecanismo para a alteração do marcador de sexo na certidão de nascimento (Pearce; Erikainen; Vincent, 2020). Grupos como A Woman’s Place UK (WPUK), Fair Play For Women (FPFW) e For Women Scotland (FWS) organizaram reuniões por todo o país, articulando as bases para um novo movimento feminista trans-excludente. Em setembro de 2020, Elizabeth Truss, a então Ministra da Mulher e Igualdade, declarou que o governo não pretendia alterar os critérios para o reconhecimento legal de gênero (Balogun; Fairbairn; Pyper, 2022).
Nesse contexto, segundo Lamble (2024), o TERFismo britânico apresenta características que o consolidam como uma força política autônoma e influente. Enquanto o movimento antigênero internacional combate uma ampla gama de políticas de gênero e sexualidade, no Reino Unido, a articulação foca quase que exclusivamente em questões trans. Uma segunda diferença é que, ao contrário de seus equivalentes internacionais, que operam sob uma lógica restauradora e patriarcal, o TERFismo britânico emerge inicialmente de setores feministas e lésbicos, majoritariamente brancos, e reivindica para si a defesa dos direitos das mulheres. Além disso, a autora enfatiza que a mobilização dessas entidades “surgiu como uma reação direta às propostas de direitos trans” (Lamble, 2024, p.3, tradução nossa) e não como projeto político de longo prazo. A autora destaca, por fim, a transversalidade política do TERFismo, uma vez que, enquanto “na maioria dos contextos globais, as políticas antitrans se alinham ao populismo de direita” (Lamble, 2024, p. 2, tradução nossa), no Reino Unido, as organizações TERF são representadas por subgrupos em todos os principais partidos políticos.
A Suprema Corte e os direitos trans
Em abril de 2025, a Suprema Corte britânica decidiu, por unanimidade, que os termos “sexo” e “mulher”, tal como estabelecidos na Lei da Igualdade de 2010, devem ser interpretados com base no sexo biológico, e não no sexo legal reconhecido por Certificado de Redesignação de Gênero (GRC) (Cochrane, 2025). A decisão encerrou uma longa disputa envolvendo o governo escocês e o grupo For Women Scotland (FWS).
O conflito iniciou-se após o Parlamento escocês aprovar uma lei destinada a promover o equilíbrio de gênero nos conselhos do setor público. O coletivo contestou a inclusão de mulheres trans nas cotas de gênero previstas pela legislação, sustentando que as proteções legais baseadas no sexo deveriam se restringir exclusivamente a pessoas designadas como do sexo feminino ao nascimento. Em resposta, o governo escocês defendeu que mulheres trans com GRC devem ter assegurados os mesmos direitos e proteções garantidos às mulheres cisgênero (Cochrane, 2025). A Suprema Corte discordou e, com isso, fixou novos contornos para o debate sobre gênero e direitos.
Embora os ministros tenham assegurado que a decisão não representa uma derrota para a comunidade trans, o veredito esvazia o valor de um documento que, por mais de 20 anos, garantiu o reconhecimento legal do sexo “para todos os fins”. A decisão exclui esse reconhecimento em contextos segregados, como esportes, enfermarias e alojamentos universitários. Sophie Lewis (2025), teórica feminista, classificou a medida como “uma derrota para todas as mulheres”, inclusive para as que, hoje, celebram essa exclusão. A autora destaca que a justificativa apresentada se apoia na noção de que o “sexo” é algo autoevidente e biologicamente determinado. No entanto, a palavra “biologia” sequer aparece na Lei da Igualdade, e o juiz Hodge recusou-se a defini-la na sentença, evidenciando que esse tipo de argumento opera menos como dado empírico e mais como instrumento de exclusão.
A decisão menciona que “mulheres que vivem no gênero masculino” — ou seja, homens trans e mulheres cis cuja aparência é considerada masculina — “também poderiam ser excluídas” (Reino Unido, 2025). Esse trecho dialoga com uma recente postagem de Maya Forstater (2025), ativista TERF britânica, em seu perfil na plataforma X (antigo Twitter), na qual declarou: “Pode parecer injusto, mas essas são escolhas de vida que as pessoas fazem. Se você se esforça ao máximo para parecer um homem, não se surpreenda se lhe negarem a entrada para mulheres.” A fala revela a lógica que sustenta as argumentações trans-excludentes: embora tentem se apresentar como racionais, essas medidas se sustentam em critérios subjetivos e estéticos — algo que, por princípio, não deveria fundamentar uma decisão judicial.
Ademais, é importante destacar que, apesar de tratar diretamente sobre os direitos de pessoas trans, a Suprema Corte não ouviu qualquer grupo trans durante o julgamento, reafirmando o silenciamento político e jurídico dessas vozes (Belcher, 2025). Entretanto, isso não significou a ausência de reações por parte de ativistas e coletivos trans e feministas. “We do not and will never recognize the authority of any government, court, or institution to determine our legitimacy. They do not know us — and they cannot name us” afirmou a nota conjunta dos grupos Ad'iyah Collective e TransFuturist Collective (2025).
Primeiro levaram os direitos trans…
É preciso lembrar que, em diversos momentos da história, processos de fechamento político e de avanço autoritário tiveram início com ataques direcionados a minorias, acompanhados da construção de inimigos internos e da disseminação de pânicos morais (Machado, 2004). Nesse sentido, a cruzada contra os direitos das pessoas trans no Reino Unido não deve ser vista somente como uma ameaça à comunidade LGBTQ+, mas como um alerta para toda a sociedade: o cerceamento de liberdades começa, muitas vezes, pelos corpos que se considera mais vulneráveis ou menos dignos de defesa.
Os dados revelam com clareza que as pessoas trans no Reino Unido estão muito mais inseridas na sociedade como vítimas de violência do que como qualquer tipo de ameaça. Eles desmontam a fantasia propagada por discursos transfóbicos, como o expresso no editorial do Estadão (Uma vitória…, 2025), que associa mulheres trans a riscos em espaços como prisões e banheiros femininos, reforçando estereótipos infundados e desconsiderando o cenário real de vulnerabilidade dessa população.
Uma pesquisa do Stonewall de 2018 (Bachman; Gooch, 2018) apontou que duas em cada cinco pessoas trans sofreram crimes de ódio naquele ano e uma em cada oito foi fisicamente atacada no trabalho por colegas ou clientes. Outros dados afirmam que quatro em cada cinco pessoas trans foram vítimas de crime de ódio nos 12 meses anteriores (Bradley, 2020). E a situação só piorou: entre 2018 e 2023, os crimes de ódio transfóbicos aumentaram 186% na Inglaterra e no País de Gales — mais do que contra qualquer outro grupo. O próprio Ministério do Interior reconheceu que esse aumento pode estar diretamente relacionado à forma como “as questões transgênero foram fortemente discutidas por políticos, pela mídia e nas redes sociais” (The truth ..., 2025).
Os dados apresentados confirmam que, no Reino Unido, a população trans encontra-se em condição de extrema marginalização social e política, o que permite caracterizá-la como uma minoria em múltiplas dimensões. Além dessa posição estruturalmente vulnerável, a comunidade trans britânica também constitui uma minoria numérica significativa. O censo de 2021 (Gender..., 2023) representou um marco ao incluir, pela primeira vez, perguntas voluntárias sobre orientação sexual e identidade de gênero. Os resultados comprovaram que 0,5% da população (262 mil pessoas na Inglaterra e no País de Gales) declararam ter uma identidade de gênero diferente daquela que lhes foi atribuída ao nascer. Entre essas pessoas, 0,1% se identificaram como mulheres trans (48 mil) e 0,1% como homens trans (também 48 mil), enquanto 0,06% se declararam não binárias (30 mil), e outras 18 mil pessoas escreveram identidades de gênero diversas no campo aberto. A vulnerabilidade é percebida, também, com o desmonte dos serviços de saúde essenciais. Sabe-se que 86,9% das pessoas trans afirmaram que a demora no acesso a hormônios afetou negativamente a saúde mental, e 83,8% relataram o mesmo em relação à espera por cirurgias (Grassian, 2022).
Diante do que foi exposto, a conjuntura revela com clareza uma lógica de “bode expiatório”: desloca-se a crise da ordem de gênero, do patriarcado e das inseguranças sociais mais amplas para uma população numericamente pequena e socialmente marginalizada, atribuindo às pessoas trans a falsa origem de um colapso simbólico e cultural.
Considerações finais
A análise da decisão da Corte britânica permitiu compreender que a ofensiva contra os direitos das pessoas trans não é uma tragédia isolada. Na realidade, essa situação revela-se como um exemplo de como a diversidade de existências é, em muitos casos, colocada sob suspeita nas democracias liberais ocidentais. Mais do que isso, expõe como discursos de exclusão identitária podem se alastrar mesmo em contextos que, historicamente, foram marcados por avanços em matéria de igualdade de gênero e direitos civis.
É preciso afirmar que o ataque contra as pessoas trans em curso no Reino Unido constitui uma violação dos princípios fundamentais que sustentam qualquer democracia plural. Quando uma sociedade naturaliza a exclusão de um grupo, ela abre precedentes perigosos para outras exclusões, comprometendo sua própria legitimidade como espaço de deliberação coletiva e respeito mútuo.
O combate à transfobia exige mobilizações concretas. A democracia não deve temer o plural, mas se refazer nele. Porque, afinal, quem tem medo das pessoas trans talvez tema, na verdade, o que elas revelam: que outras formas de existir e de organizar o mundo não só são possíveis, como já estão entre nós.
Referências Bibliográficas
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