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Análise Quinzenal
PET-REL

A Tragédia de Milei: Colapso Social na Argentina


João Paulo Urbano

 

 

Nas ruas da Argentina, desenha-se um cenário de intensa mobilização social e protestos contra as medidas adotadas por Javier Milei. Desde o início de seu governo, em dezembro de 2023, o país mergulhou em um experimento econômico radical conhecido como “terapia de choque”, que prometia solucionar décadas de instabilidade macroeconômica e crises recorrentes. Quase um ano após sua implementação, os resultados mostram-se alarmantes. Em vez da recuperação econômica esperada, observa-se uma acelerada deterioração das condições de vida da população argentina. Milhões de pessoas passaram a conviver diariamente com a pobreza, houve retrocesso significativo na qualidade dos empregos e uma drástica redução do poder de compra, sobretudo entre as parcelas mais vulneráveis da população (Poverty [...], 2024).

 

Uma das medidas mais impactantes implementadas por Milei foi o corte no auxílio destinado aos aposentados, gerando descontentamento não somente entre idosos e pensionistas, mas também em amplos setores da sociedade argentina. Torcidas organizadas, jovens estudantes, sindicatos e partidos políticos de esquerda se uniram aos aposentados, que tiveram seus direitos reduzidos (Protesto [...], 2025). Durante os protestos que paralisaram o país, trabalhadores em busca de melhores condições enfrentaram brutal repressão por parte da polícia argentina, sob comando da ministra da Segurança, Patricia Bullrich. Como resultado dessa violência, centenas de pessoas ficaram feridas ao serem atingidas por bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha, incluindo idosos e crianças (Una manifestación [...], 2025).

 

Sintomas de Neoliberalismo: Fome e Pobreza

 

Recentemente, Milei exaltou os dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estadística y Censos (Indec), que apontam uma queda histórica na extrema pobreza, de 52,9% — atingidos no final do governo de Alberto Fernández — para 38,1% no último semestre de 2024 (Encuesta permanente [...], 2024). A rigor, esses números sugerem um avanço inegável da gestão atual: embora o percentual ainda seja elevado, não se registrava um patamar semelhante desde o segundo semestre de 2017.

 

Entretanto, as estatísticas oficiais nem sempre refletem a realidade vivida pela população. Especialistas criticam a metodologia do Indec, considerada defasada e incapaz de capturar as transformações socioeconômicas recentes. A linha de pobreza é calculada com base na proporção média da renda familiar destinada a diferentes gastos — como alimentação, serviços públicos e energia elétrica —, parâmetro mantido praticamente inalterado desde 2005. Ajustes pontuais, como a inclusão do custo de internet no lugar dos gastos com o telefone fixo, não acompanham as mudanças radicais promovidas por Milei, especialmente após o fim dos subsídios a serviços essenciais (La mentira [...], 2025).

 

Antes da atual gestão, o governo subsidiava transporte, água e energia. Com o corte desses benefícios, as famílias passaram a destinar uma parcela maior da renda com tarifas básicas, reduzindo gastos em áreas como alimentação. Em 2017, os argentinos já destinavam 20,2% da renda a água, eletricidade, gás e outros combustíveis, mas o Indec ainda estimava esse gasto em apenas 13,2%. Com as políticas de Milei, essa defasagem tende a aumentar, pois o salto nos preços do transporte e da energia não está completamente refletido nas estatísticas oficiais.

 

A ausência de atualização dos parâmetros faz com que os levantamentos subestimem os gastos reais da população, criando a falsa impressão de que o custo de vida permanece estável. Estudos independentes indicam que, se fossem aplicados indicadores atualizados, a inflação acumulada desde a posse de Milei ultrapassaria 8,5%. Apesar de a metodologia revisada já estar disponível, o governo opta por manter parâmetros antigos, que servem de justificativa para seu plano de ajuste fiscal rigoroso (Argentina reports [...], 2025). Na prática, a difícil situação econômica agrava a fome e a pobreza. Especialistas ressaltam:


Hoy, los ingresos mensuales necesarios para que una familia de cuatro miembros no sea considerada pobre son casi 940.000 pesos argentinos (unos 953 dólares), con los cuales deben cubrir una canasta de alimentos y servicios que incluye vestuario, transporte, educación, salud y vivienda digna. Muchos no alcanzan ese umbral, ni siquiera contando con ayudas estatales.” (Pedrazzoli, 2024)

 

Além disso, o governo suspendeu os repasses para os comedores comunitários, que são alicerces fundamentais de apoio às populações vulneráveis. Em janeiro de 2023, o orçamento destinado a esses programas foi reduzido drasticamente: de 24% para zero, o que ampliou significativamente o número de pessoas em situação de fome nas cidades argentinas (In Argentina [...], 2024). Cenas de indivíduos vasculhando lixo em busca de alimentos tornaram-se cada vez mais comuns no cotidiano do país. Essa realidade decorre da combinação entre o aumento abrupto das tarifas de serviços essenciais e a alta inflação dos alimentos, o que torna os salários cada vez mais insuficientes para cobrir as necessidades básicas. Segundo Natalia Zarza, liderança da Unión de Trabajadores de la Economía Popular:


Estamos recibiendo gente en nuestros comedores que nunca antes vimos venir. Recibimos más gente que en la pandemia, porque a nadie le alcanza la plata para comer. No es una situación de personas sin trabajo o que hacen changas, sino de familias con empleo formal que se quedan sin dinero antes de fin de mes. (Dellatorre, 2024)

 

Dados do Indec apontam que 18 milhões de argentinos — em uma população de 45 milhões — não têm renda suficiente para adquirir a cesta básica completa, que inclui alimentação mínima e serviços essenciais como saúde (Encuesta permanente [...], 2024). Enquanto a pobreza avança, políticas de proteção social são abandonadas. Milei prometeu “mais motosserra” em seu plano de cortes radicais e garante que não irá “pisar no freio” (Milei anuncia [...], 2025). As manifestações massivas nas ruas são o sinal de que Milei não terá vida fácil. A saturação social com as políticas ultraliberais, que aprofundaram a crise e agravaram a fome e a pobreza, aponta para novos enfrentamentos nos próximos meses.

 

Estallido Social  e Repressão 

 

Nos últimos meses, a Argentina tem sido palco de intensas mobilizações populares contra as políticas do presidente Javier Milei. Milhares de cidadãos — incluindo aposentados, estudantes, trabalhadores e torcedores de futebol — têm se reunido nas ruas para protestar contra cortes em benefícios sociais, precarização do trabalho e ataques aos direitos previdenciários. O auge dessas manifestações ocorreu em março, quando uma marcha pacífica em frente ao Congresso Nacional foi brutalmente reprimida pelas forças de segurança. O saldo foi alarmante: ao menos 45 feridos e mais de 120 detidos, entre eles crianças e adolescentes (Una manifestación [...], 2025).

 

Um dos casos mais emblemáticos dessa repressão foi o do fotojornalista Pablo Grillo, atingido na cabeça por um cartucho de gás lacrimogêneo enquanto documentava o protesto. Grillo sofreu fraturas no crânio e permanece hospitalizado em estado crítico. Apesar de evidências em vídeo mostrarem que ele estava apenas exercendo seu trabalho, a ministra da Segurança, Patricia Bullrich, tentou descredenciá-lo, alegando que se tratava de um “militante kirchnerista” (Pablo Grillo [...], 2025).

 

A repressão é parte do chamado “método Bullrich”, estratégia de endurecimento policial que recebeu um investimento de US$78 milhões para equipar as forças de segurança com armamentos como granadas de gás lacrimogêneo, balas de borracha e sprays de pimenta. Esses recursos têm sido utilizados indiscriminadamente contra manifestantes, sem distinção de idade ou gênero. Enquanto isso, aposentados enfrentam congelamento de benefícios e falta de acesso a medicamentos essenciais, evidenciando as contradições de um governo que prioriza a repressão em detrimento do bem-estar social (Una manifestación [...], 2025). 

 

Apesar da repressão, a sociedade argentina continua a resistir. Sindicatos organizam novas greves gerais, e as tradicionais manifestações de aposentados às quartas-feiras ganham cada vez mais adesão. Enquanto o governo de Milei, apoiado por elites financeiras locais e internacionais, mostra pouca disposição para recuar, a mobilização popular cresce, transformando as ruas em palco de uma luta desigual entre a força bruta do Estado e a indignação coletiva. As imagens de idosos agredidos e jovens feridos não apenas chocam, mas também expõem a falência de um modelo neoliberal que prega uma liberdade abstrata, incapaz de garantir direitos básicos e promover igualdade social.

 

O futuro da Argentina permanece incerto, mas a persistência das mobilizações indica que os conflitos sociais tendem a se intensificar. A resistência popular, mesmo diante da repressão, demonstra a força de uma sociedade que não aceita passivamente a perda de direitos conquistados. Enquanto isso, o governo de Milei enfrenta o desafio de lidar com uma população cada vez mais mobilizada e disposta a lutar por justiça social e dignidade.

 

Referências Bibliográficas

 

ARGENTINA reports a drop in poverty under President Milei, but many say life is harder. AP NEWS, 2025. Disponível em: https://apnews.com/article/061bbba174706475a255c6b871953009. Acesso em: 4 mai. 2025.

 

DELLATORRE, Raúl. Pobres hasta alcanzar los 900 mil pesos. PÁGINA/12, 15 ago. 2024. Disponível em: https://www.pagina12.com.ar/760276-pobres-hasta-alcanzar-los-900-mil-pesos. Acesso em: 4 mai. 2025.

 

IN ARGENTINA, Javier Milei is cutting off food aid to local social service organizations. LE MONDE, 2024. Disponível em: https://www.lemonde.fr/en/economy/article/2024/03/15/in-argentina-javier-milei-is-cutting-off-food-aid-to-local-social-organizations_6620782_19.html. Acesso em: 4 mai. 2025.

 

INDEC. Encuesta Permanente de Hogares: Incidencia de la pobreza y la indigencia en 31 aglomerados urbanos. INDEC, 2024. Disponível em: https://www.indec.gob.ar/indec/web/Nivel4-Tema-4-46-152. Acesso em: 4 mai. 2025.

 

LA MENTIRA de Milei sobre los datos de la pobreza. LA VOZ, 2025. Disponível em: https://www.lavoz.com.ar/opinion/la-mentira-de-milei-sobre-los-datos-de-la-pobreza/. Acesso em: 4 mai. 2025.

 

MILEI anuncia una "Motosierra Profunda" en 2025 para achicar el Estado en Argentina. HUFFINGTON POST, 2025. Disponível em: https://www.huffingtonpost.es/global/milei-anunciauna-motosierra-profunda-2025-achicarel-argentina.html. Acesso em: 4 mai. 2025.

 

PABLO Grillo, el fotógrafo que expone la brutalidad policial en Argentina. EL PAÍS, 19 mar. 2025. Disponível em: https://elpais.com/america/2025-03-19/pablo-grillo-el-fotografo-que-expone-la-brutalidad-policial-en-argentina.html. Acesso em: 4 mai. 2025.

 

PEDRAZZOLI, Mara. El Gobierno dejó de enviar fondos y alimentos a los comedores comunitarios. PÁGINA/12, 5 fev. 2024. Disponível em: https://www.pagina12.com.ar/710093-el-gobierno-dejo-de-enviar-fondos-y-alimentos-a-los-comedore. Acesso em: 4 mai. 2025.

 

POVERTY in Argentina soars to over 50% as Milei's austerity measures bite. THE GUARDIAN, 27 set. 2024. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2024/sep/27/poverty-rate-argentina-milei. Acesso em: 4 mai. 2025.

 

PROTESTO de aposentados contra Milei amplia desgaste nas ruas. O GLOBO, 20 mar. 2025. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2025/03/20/protesto-de-aposentados-contra-milei-amplia-desgaste-nas-ruas-mas-governo-da-argentina-tem-sinal-verde-para-acordo-com-fmi.ghtml. Acesso em: 4 mai. 2025.

 

UNA MANIFESTACIÓN de jubilados argentinos desata el mayor ejercicio de represión del Gobierno de Milei. HUFFINGTON POST, 13 mar. 2025. Disponível em: https://www.huffingtonpost.es/global/una-manifestacion-jubilados-argentinos-desata-mayor-ejercicio-represion-gobierno-mileibr.html. Acesso em: 4 mai. 2025.