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Análise Quinzenal
PET-REL

 

por Felipe Alexandre Moura

Dois anos do golpe militar 

Em fevereiro de 2021, o general Min Aung Hlaing usurpou o governo de Mianmar e decretou a prisão de sua adversária na corrida presidencial: Aung San Suu Kyi, da Liga Nacional para a Democracia (NLD). Em resposta, membros do parlamento formaram um Governo de Unidade Nacional (NUG) e anunciaram a criação da Força de Defesa Popular (PDF) para combater os militares e restabelecer a democracia no país. O governo militar, então, iniciou seu projeto de repressão violenta aos que se opuseram ao novo governo. Os conflitos armados entre civis e militares se intensificaram, era o início da guerra civil.

            De acordo com o grupo de pesquisa e coleta de dados ACLED, cerca de 12 mil pessoas foram mortas por violência política em Mianmar desde o golpe. Os conflitos armados e as execuções têm evoluído visto que o número de mortes registradas mensalmente quadruplicou em relação às primeiras manifestações (ACLED, 2022). Além disso, os meios de comunicação passaram a ser controlados pelos militares que, deliberadamente, impuseram bloqueios de internet para coibir conteúdos subversivos contra o governo militar e condenaram mais de 60 profissionais de imprensa à prisão, com efeito, Mianmar se tornou o maior carcereiro de jornalistas do mundo (RSF, 2023). 

    No aniversário de dois anos do golpe, duas manifestações políticas distintas ganharam atenção midiática e repercutiram nos mais variados canais de comunicação internacionais. O primeiro evidencia as ressonâncias da guerra civil no Sudeste Asiático, uma vez que centenas de pessoas protestaram em frente às embaixadas mianmarenses no Japão, na Tailândia e nas Filipinas. O segundo demonstra uma mudança de abordagem dos manifestantes em Mianmar que, após dois anos enfrentando repressão violenta, decidiram abandonar as ruas e fechar seus comércios. O “silent strike", como ficou conhecido, pretendeu “honrar os heróis e heroínas caídos e reivindicar o espaço público como nosso”, disse Thinzar Shunlei Yi, uma ativista pró-democracia, à BBC (2023).

Diante disso, as consequências humanitárias da escalada de violência em Mianmar têm atingido todos os estratos da população, majoritariamente budista, e pode ter acendido uma chama de solidariedade com a minoria islâmica historicamente perseguida no país: os rohingyas.

Afinal, quem são os rohingyas?

Determinar a origem de um povo é imprescindível para o reconhecimento de sua história e, sobretudo, de sua própria identidade. Nesse sentido, a origem dos rohingyas tem sido amplamente debatida no que se refere às possibilidades de concessão e usufruto da cidadania mianmarense, esta que lhes foi injustamente vedada. 

Os rohingyas são originários da baía de Bengala (atualmente dividida entre Índia e Bangladesh) que, durante o século XVII, foram capturados por corsários portugueses e vendidos como escravos ao Reino de Arakan (correspondente ao atual Estado de Rakhine, ao noroeste de Mianmar). Uma segunda onda migratória ocorreu, porém, quando os rohingyas foram persuadidos a assumir o papel de mão de obra barata durante a ocupação britânica em Mianmar no século XIX.

Entende-se, portanto, que os rohingyas possuem um vínculo histórico com a região de Rakhine, ainda que este tenha sido rompido, em grande parte, por conflitos étnicos e religiosos empreendidos por governos militares em Mianmar. A ameaça fantasma de uma “islamização” da antiga Birmânia tem sido utilizada para incentivar o nacionalismo e o ódio aos islâmicos rohingyas que, ainda hoje, sofrem um apartheid brutal no país e encontram na migração forçada uma alternativa para findar a perseguição e a exploração.

Em agosto de 2017, as forças armadas de Mianmar conduziram uma operação de “limpeza étnica” contra os rohingyas e justificaram os massacres, estupros e incêndios criminosos como uma reação aos ataques de guerrilhas às estações policiais de Rakhine. Os eventos culminaram em um dos maiores processos de migração forçada da contemporaneidade: mais de 700 mil rohingyas fugiram da perseguição em Rakhine, para o país vizinho, Bangladesh. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), o número de refugiados rohingyas em Bangladesh chegou a 864.281, mais de dois terços desse contingente vive em um único assentamento: Kutupalong, o maior assentamento de refugiados do mundo (ACNUR, 2020).

No exterior, entretanto, os rohingyas carregam o estigma da apatridia e, sendo assim, enfrentam discriminação e negligência por parte das políticas de proteção dos direitos humanos, ainda que essas estejam positivadas por instrumentos jurídicos internacionais. Permanecem, lamentavelmente, em uma condição prolongada de vulnerabilidade em favor de governos coniventes com a descartabilidade da vida humana (DE GENOVA, 2012).

Mudanças com o golpe

De volta à Mianmar pós-golpe, o NUG tem defendido o retorno dos refugiados rohingyas, bem como reformas normativas que promovam a igualdade de direitos civis, sociais e políticos para a minoria. Contudo, tais declarações não resultam em soluções concretas, pois o NUG sequer tem poder para legislar e está, ainda, muito ocupado no combate aos militares usurpadores (BBC, 2022). 

Cabe questionar, também, os interesses que as motivaram. É possível que, no ímpeto de conquistar alianças ocidentais para a restauração da democracia no país, a situação dos refugiados rohingyas tenha se tornado uma isca para organizações de proteção dos direitos humanos com influência em processos decisórios nos Estados Unidos e na Europa.

Já os jovens ativistas, que lutam na PDF, se posicionam contra o governo militar ao mesmo tempo que criticam as medidas tomadas pela NLD e a inação de Aung San Suu Kyi durante a operação de “limpeza étnica” que forçou milhares de rohingyas a fugirem do país em 2017. Com efeito, por negar o envolvimento institucional do país na perseguição dos rohingyas, a população de Mianmar e a comunidade internacional consideram que Aung San Suu Kyi, vencedora do prêmio Nobel da Paz, foi cúmplice da operação.

Extensão do estado de emergência

No início do mês, a mídia estatal, instrumentalizada pelo governo usurpador, reportou que as autoridades de defesa e segurança de Mianmar estabeleceram a extensão do estado de emergência, imposto pelos militares quando tomaram o controle do país em fevereiro de 2021, por mais seis meses. O movimento significa que a junta militar falhou em estabilizar e normalizar a situação pós-golpe, porque o poder militar é instável e impraticável em uma realidade social na qual as forças da oposição perseveram e reivindicam o retorno à democracia. 

A medida tomada pelos militares supõe, sobretudo, um adiamento da data das eleições, que estavam previstas para acontecer em agosto deste ano, e uma prorrogação da conjuntura sombria em que se encontra Mianmar. Não obstante, a possibilidade da junta militar organizar eleições justas e imparciais é extremamente baixa. A ONU afirma que essas seriam “eleições simuladas”, visto que um processo eleitoral desenhado pelos militares certamente excluiria Aung San Suu Kyi, que venceu a última eleição, e grande parte de seu partido, o NLD.

    As Nações Unidas têm reforçado o pedido de adesão aos embargos à junta militar de Mianmar para todos os países membros da organização. As sanções impostas pelos Estados Unidos, Reino Unido e Canadá dizem respeito à venda de armamentos militares para o governo usurpador para impedir o agravamento do quadro de repressão violenta ao povo mianmarense. China, Rússia e Paquistão, no entanto, seguem lucrando com o fornecimento de armamentos aos militares e ignorando o apelo da comunidade internacional e do Conselho de  Direitos Humanos da ONU. Embora a China tenha condenado o golpe militar, devido à quebra dos acordos comerciais que vinham sendo negociados com o governo eleito, Pequim frequentemente veta resoluções que condenam a brutalidade dos atos perpetrados contra a população de Mianmar (BBC, 2022).

Considerações finais

Em meio a uma guerra civil que aflige todo o seu corpo social, Mianmar se encontra fragmentada politicamente e sua frágil economia tem se deteriorado exponencialmente. Desse modo, a base de dados do Banco Mundial evidencia altas taxas de inflação e desemprego que revelam a dimensão da crise econômica em Mianmar. Isso significa que o país está longe de oportunizar um regresso pacífico ao povo rohingya, logicamente, as probabilidades são ainda menores caso os militares persistam no poder.    

Diante desse cenário, Michelle Bachelet, quem comanda o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), afirmou ao canal de comunicação BBC que a repatriação dos refugiados rohingyas deve ocorrer de forma voluntária e somente quando as condições no país de destino forem seguras e sustentáveis (BBC, 2022). Fica claro, então, que os rohingyas, hoje refugiados nos assentamentos humanitários em Bangladesh, não devem reencontrar suas famílias no Estado de Rakhine, pelo menos não a curto prazo. Apesar do instável cessar-fogo entre os beligerantes, os rohingyas que lá habitam enfrentam crises de abastecimento e aqueles que lutam para sobreviver no exterior podem estar condenados ao êxodo perpétuo.

A junta militar tem suprimido os direitos individuais dos rohingyas em favor do que ela determina como interesse nacional ou bem comum. De acordo com Robert Paxton (2004), o fascismo se apoia em um pensamento nacionalista e xenófobo que utiliza a repressão política e o controle totalitário da vida pública e privada dos cidadãos como meios para conquistar poder. Analogamente, em um contexto sociopolítico no qual o fascismo opera, aqueles que forem considerados “minoritários” podem se tornar “indesejáveis” pela mesma razão. Logo, essas pessoas também estarão sujeitas a perderem sua nacionalidade e se tornarem apátridas, como os rohingyas em Mianmar. 

BIBLIOGRAFIA

BBC BRASIL. Rohingyas: o povo muçulmano que o mundo esqueceu. 2015. Disponível em:https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/05/150511_rohingyas_esquecidos_lgb. Acesso em: 18/10/2022

BBC BRASIL. Quem são os rohingyas, povo muçulmano que a ONU diz ser alvo de limpeza étnica. 2017. Disponível em:https://www.bbc.com/portuguese/internacional-41257869. Acesso em: 18/10/2022

BBC BRASIL. Mianmar: 1 ano após golpe, país enfrenta guerra civil. 2022. Disponível em:https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60198240. Acesso em: 18/10/2022

BBC. Myanmar coup anniversary: 'Silent strike' marks two years of military rule. 2023. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-asia-64481138. Acesso em: 03/02/2023

BYNUM, Elliott. Continued Resistance Against the Military Coup. 2022. Disponível em:https://acleddata.com/10-conflicts-to-worry-about-in-2022/myanmar/mid-year-update/. Acesso em: 17/10/2022.

DE GENOVA, Nicholas. (2020). O poder da deportação. Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana: REMHU, Brasília.

DOYLE, Michael. (1983). Kant, Liberal Legacies, and Foreign Affairs. Philosophy & Public Affairs: Princeton University Press, Princeton. 

GRASSI, Robin. Dois anos de ditadura militar em Mianmar: o terror contra jornalistas recrudesceu em todas as frentes. 2023. Disponível em: https://rsf.org/pt-br/dois-anos-de-ditadura-militar-em-mianmar-o-terror-contra-jornalistas-recrudesceu-em-todas-frentes. Acesso em 03/02/2023

ONU Brasil. Mianmar: relator especial designado pela ONU aprova sanções impostas à junta militar que tomou o poder. 2021. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/129031-mianmar-relator-especial-designado-pela-onu-aprova-sancoes-impostas-junta-militar-que-tomou. Acesso em 03/02/2023

PAXTON, Robert O. (2004). The Anatomy of Fascism. New York: Alfred A. Knopf, 2004.

UNHCR. Rohingya. 2020. Disponível em:https://www.acnur.org/portugues/rohingya/. Acesso em: 17/10/2022