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Análise Quinzenal
USMarines / Reuters

por Celso Coelho

 

Em um cenário de conflito, o que acontece àqueles que ficam e àqueles que fogem? Pensando naqueles que estão vivenciando os desdobramentos do conflito, me atenho aos fatos que estão acontecendo no Afeganistão a partir do nível individual, direcionando a presente análise àqueles cidadãos que sofrem as consequências do que está ocorrendo na região. Sobretudo a partir da análise histórica do deslocamento forçado do país, busco desdobrar os principais efeitos que ocorrerão àqueles que estão fugindo do país. Nesse sentido, em tantos âmbitos possíveis de análise, foco meus pensamentos no deslocamento involuntário das pessoas, em sua migração para outros países e sua acolhida como cidadãos refugiados. 

 

Por isso, questões a partir da perspectiva individual serão levantadas, tais como: qual é o histórico de conflito no país e quantos cidadãos foram afetados por ele? Atualmente, qual a quantidade e quais países costumam receber os refugiados afegãos? Qual o posicionamento dos países europeus após a crise dos refugiados de 2015? Para além dos efeitos recentes, quais serão as mudanças estruturais que a sociedade afegã sofrerá?

 

HISTÓRICO DE CONFLITO NO AFEGANISTÃO

 

Para compreender as relações históricas e políticas do Afeganistão, é necessário contextualizar que o território do país é estrategicamente posicionado entre a Ásia e a Europa: é localizado no eixo entre o Oriente e o Ocidente a partir da antiga Rota da Seda, fazendo fronteira com países de poderio nuclear como Irã, China e Paquistão na modernidade (AFEGANISTÃO..., 2021). Nesse sentido, o território que liga as duas regiões foi historicamente dominado por imperadores ao longo da história, como Dário, da Babilônia; e Alexandre, o Grande, da Macedônia. 

 

Durante os séculos XIX e XX, o Afeganistão passou por três conflitos com o Reino Unido, que buscava proteger o império indiano da Rússia a partir da anexação do país. Posteriormente às Guerras Anglo-Afegãs, que tiveram sua última batalha em 1921, quando o Afeganistão derrotou as forças britânicas e se declarou uma nação independente, deve-se demarcar a relação do país com as forças soviéticas. Iniciada em 1956, quando o primeiro ministro soviético Nikita Khruschev aceitou apoiar o país em suas reformas sociais e econômicas, a relação foi rompida momentaneamente em 1979, quando Hafizullah Amin deflagrou o terceiro golpe de estado no país comunista em menos de 10 anos. Ao assumir a presidência, Amin buscou criar relações amigáveis com os EUA e o Paquistão, não agradando os interesses da União Soviética. A partir do risco de ruptura com a URSS, ocorre a invasão soviética em dezembro de 1979, a qual buscava, simultaneamente, derrubar Hafizullah Amin e combater os mujahidin¸ que ameaçavam o poder dos comunistas no Afeganistão. Iniciava-se, assim, a Guerra do Afeganistão, que se estenderia até 1989, quando as tropas soviéticas deixariam o país.

 

Com a fragmentação das milícias armadas no país a partir da década de 1990, pavimentou-se o caminho para o surgimento do grupo radical Talibã. Ao comandar o país, entre 1995 e 2001, a milícia pregava valores de uma versão extrema do Islã, introduzindo um sistema jurídico baseado em execuções públicas e amputações, também restringindo a educação e a oportunidade de emprego para as mulheres, que eram obrigadas a vestir véus e a não sair de casa sozinhas. Em 2001, após os ataques liderados por Bin Laden às embaixadas americanas na África e às Torres Gêmeas, ocorre a invasão das tropas americanas e da OTAN em solo afegão.

 

AS TROPAS ESTRANGEIRAS

 

Com o domínio do território sendo conquistado por potências internacionais, é formado um governo interino em 2001: após negociações na Alemanha, grupos afegãos assinam acordo que torna Hamid Karzai chefe de governo interino do país. À época, enquanto a OTAN assumia o controle da segurança em Cabul, uma nova constituição e eleições presidenciais eram realizadas. Daquele momento em diante, o novo governo constituído sofreria uma série de ataques e ameaças, porém continuava a manter seu domínio sobre o território a partir da tutela de forças internacionais.

 

No entanto, a partir da última década, com mais de 10 anos de presença na região, as tropas da OTAN e dos EUA passaram a ser pressionadas para se retirarem da região. No âmbito da política externa estadunidense, principalmente a partir do ambiente doméstico desfavorável a conflitos externos, o medo de ataques terroristas de grupos extremistas arrefecia. No novo contexto de conflito internacional, a partir dos anos 2010, principalmente sob a perspectiva dos conflitos na Síria, uma nova preocupação era estabelecida nos países desenvolvidos, sobretudo com o surgimento da crise dos refugiados.

 

Desse modo, a partir do momento no qual o exército afegão assumia o controle de todas as forças militares no país, uma mudança significativa era construída no Afeganistão: com o fim da missão oficial da OTAN em 2013, as tropas remanescentes no país teriam como foco o treinamento e o aconselhamento das tropas afegãs. (A HISTORICAL..., n.d.). No entanto, não cumprindo o compromisso assumido no início de seu mandato em 2009, Obama abandona o plano de retirar as forças americanas do território do Afeganistão, mantendo 5.500 tropas quando deixa a Casa Branca em 2017.

 

Ao assumir o mandato posterior, o ex-presidente Donald Trump afirmava que manteria o envolvimento militar na região a fim de prevenir “um vácuo para terroristas” (LEDERMAN; BURNS, 2017). Em 2019, os EUA e o Talibã assinaram um acordo de paz, sendo o primeiro passo para a retirada das tropas americanas, a ser realizada em maio de 2021. Em troca pelo acordo, o Talibã se comprometeria a cortar os laços com o grupo radical al-Qaeda.

 

CICLOS DE REFÚGIO

 

O Afeganistão possui um histórico de deslocamento forçado nas últimas quatro décadas. Nesse cenário de conflito, milhões de afegãos foram deslocados dentro das fronteiras do país e, em seguida, se espalharam para os países vizinhos. A ONU avalia que existem cerca de 2,5 milhões de refugiados registrados, o que corresponde a aproximadamente 6% da população do país (AFGHANISTAN..., 2021). Destes, cerca de 780 mil estavam no Irã. Todavia, a ONU acredita que outros 2 milhões de afegãos não registrados também estão lá. Ainda, outros 1,4 milhão de afegãos registrados se abrigaram por longos períodos no Paquistão, configurando-se como uma das maiores populações de refugiados em qualquer lugar (A REFUGEE..., 2021). 

 

Para compreender a dinâmica de deslocamento forçado no país, é necessário aliar o contexto histórico apresentado anteriormente a uma explicação detalhada dos ciclos de refúgio que aconteceram no país, que correspondem a três períodos nos últimos 40 anos. Ademais, também deve-se pontuar que aspectos como a presença de um estado fraco, com índices de extrema pobreza e baixo desenvolvimento humano, aliados a um forte sistema de agricultura de subsistência que sofre com processos de seca recorrentes, contribuem ainda mais para um processo de deslocamento (WILLNER-REID, 2017).

 

O primeiro grande ciclo de refúgio aconteceu durante a Guerra do Afeganistão, entre 1979 e 1989. Com a invasão das forças soviéticas em proteção ao governo comunista que comandava Cabul, forças de oposição cresceram rapidamente, sobretudo os mujahidin, que batalhavam a partir de sua visão de guerra santa. Em 1981, estimava-se que 1,5 milhão de afegãos tornaram-se refugiados devido ao conflito, quantidade que aumentou para 5 milhões até 1986, deslocando-se principalmente para o Irã e o Paquistão (RUIZ, n.d.).  

 

O segundo ciclo de refúgio com demarcações nítidas aconteceu entre 1992 e 1995, a partir das batalhas pelo controle do norte do país (ibid., n.d.). Com a intensificação da guerra civil, reflexo do conflito entre senhores da guerra rivais que buscavam preencher o vácuo de poder existente após os 10 anos de Guerra do Afeganistão, uma nova onda de deslocamento forçado se materializava (WILLNER-REIDE, 2017). O ciclo continuou até a metade da década, quando as forças do Talibã conseguiram controlar a maior parte do país, diminuindo os conflitos por poder.

 

Por fim, o terceiro ciclo aconteceu previamente à invasão pelos EUA em 2001, principalmente com o retorno de intensos conflitos por domínio político no norte do país, aliado à pior seca que atingiu o Afeganistão em 30 anos, com cerca de 172 mil cidadãos deslocando-se para o Paquistão em 2000, de acordo com o ACNUR (RUIZ, n.d.). Agravando a situação, sanções contra o Talibã foram majoradas em dezembro de 2000. Em iniciativa capitaneada pelos EUA e pela Rússia, novas ações contra o grupo foram tomadas no âmbito do Conselho de Segurança, indo na contramão das tentativas de assistência humanitária que órgãos da ONU e ONGs buscavam fornecer aos civis em situação vulnerável.

 

Paralelamente aos ciclos de refúgio que marcaram as décadas de conflito anteriores ao 11 dezembro, deve-se citar também as tentativas de repatriação que ocorreram. No primeiro ciclo, por exemplo, a partir da captura da capital pelos mujahidin em 1992, um fluxo de repatriação aconteceu. De caráter imediato e massivo, cerca de 900 mil refugiados retornaram para casa entre abril e dezembro daquele ano, com o processo de repatriação sendo minguado a partir da assistência inadequada e das lutas internas que aconteceram entre as facções de mujahidin (WILLNER-REIDE, 2017). Também, na década que se seguiu após a invasão do país por forças ocidentais e da derrubada do Talibã em 2001, 4,6 milhões de refugiados retornaram ao país. Nesse período, iniciativas de sucesso de repatriação foram realizadas, tal como o provimento pelo ACNUR de material de construção para cerca de 220 mil famílias. Assim, mesmo que a deterioração das forças de segurança e a não materialização do milagre econômico no país tenham diminuído as taxas de regresso após 2010, o Afeganistão perdeu o título de maior população refugiada em janeiro de 2015, designação que acompanhou o país durante 30 anos  (ibid., 2017).

 

O QUE MUDA COM A (RE)TOMADA DO PAÍS PELO TALIBÃ?

 

Ao anunciar a sua retirada, os EUA fizeram uma escolha racional, tendo consciência de que as forças do talibã poderiam avançar a partir da retirada das tropas. Nesse sentido, no início de agosto, o secretário de imprensa da Casa Branca afirmara que as tropas afegãs teriam equipamento, treinamento e número para combater o Talibã (WATCH..., 2017). Entretanto, mesmo que tenha ocorrido um erro de cálculo sobre a retomada do país pelas forças do Talibã, a velocidade que o país foi retomado e dominado impressionou, colaborando para que as tropas ocidentais evacuassem ainda mais rápido.

 

Nesta nova crise humanitária, algumas imagens ficarão para a história. O avião cargueiro C-17 decolando com pessoas na pista de decolagem (A REFUGEE..., 2021), os pais passando suas crianças aos soldados remanescentes (ROGERS, 2021) e os protestos pela bandeira afegã serão parte desses momentos. No entanto, a crise no aeroporto de Cabul foi o marco mais forte visto até o momento. A área, que é a única não mantida pelos militantes do Talibã, tornou-se a única via de saída da cidade. Por ela, cidadãos buscaram fugir do sistema repressor que está prestes a se instalar no país. Tal fato demonstra como as vias para os refugiados afegãos estão limitadas, o que reforça o cenário desesperador no qual o país se encontra. 

 

Ademais, com o avanço das tropas do Talibã sobre o território afegão, os esforços para repatriar algumas dessas pessoas provavelmente serão interrompidos, fato que provavelmente aumentará o número de refugiados. Também é previsto que o Irã receba um novo fluxo de muçulmanos xiitas que fugirão do Talibã anti-xiita. Pensando nisso, o país está montando acampamentos em três províncias ao longo de sua fronteira oriental. 

 

A evacuação de refugiados nas próximas semanas pode ser responsável por retirar milhares de pessoas do país. De acordo com informações disponibilizadas pelo Pentágono, ao menos 22 mil afegãos que se qualificam para o “visto especial de imigrantes” serão retirados do país, em uma taxa de 5 mil pessoas ao dia. Ainda, segundo a chanceler alemã Angela Merkel, 10 mil refugiados serão admitidos no país, enquanto o secretário britânico Priti Patel afirma que 20 mil refugiados serão direcionados ao Reino Unido, com 2.700 pessoas já sendo evacuadas, incluindo 1.600 afegãos que se relacionavam diretamente com as forças militares do país (A REFUGEE..., 2021).

 

Ainda, o desespero em resgatar intérpretes e outros cidadãos que trabalharam para exércitos estrangeiros poderia ter sido evitado. Exemplo disto é que o programa dos EUA que emite visto de migração para tradutores afegãos e iraquianos existia desde 2009. Entretanto, era caracterizado por forte ineficiência, levando anos para emitir vistos para ex-trabalhadores. Diante da urgência que se aproximava, dados de junho apontaram que 16 mil trabalhadores afegãos e suas famílias haviam sido reassentados sob o programa, entretanto 18 mil pedidos ainda estavam esperando para serem processados. Concomitante, na Grã-Bretanha, o governo havia reassentado apenas cerca de 1,3 mil intérpretes e suas famílias em junho. Assim, percebe-se que os países estão em uma disparada para evitar maiores danos com o aumento do domínio do Talibã. 

 

Por fim, no cenário internacional, principalmente acerca da receptividade dos países com os cidadãos afegãos, alguns líderes europeus já se posicionaram sobre a possível chegada de refugiados. O presidente da França, Emmanuel Macron, prometeu reprimir os contrabandistas de pessoas, dizendo que “devemos nos antecipar e nos proteger contra fluxos migratórios irregulares significativos” (ibid., 2021). Armin Laschet, candidato que procura suceder Merkel nas eleições alemãs, disse que o país não deve "enviar o sinal de que pode acolher todos os necessitados." Além dos políticos alemães estarem preocupados com a repetição de 2015, quando mais de 1 milhão de refugiados sírios chegaram no país, também existe o receio de uma nova reação nacionalista. Paralelamente, com o temor da Grã-Bretanha de uma nova onda de refugiados, sobretudo por abrigar uma grande população afegã, o primeiro-ministro Boris Johnson pediu aos países que “não reconheçam prematuramente” os parceiros da OTAN que chegarem ao país.

 

Referências

 

A HISTORICAL timeline of Afghanistan. PBS, [S. l.], ago. 2021. Disponível em: https://www.pbs.org/newshour/politics/asia-jan-june11-timeline-afghanistan. Acesso em: 20 ago. 2021.

 

A REFUGEE crisis looms after the Taliban take power in Afghanistan. The Economist, [S. l.], ago. 2021. Disponível em: https://www.economist.com/asia/a-refugee-crisis-looms-after-the-taliban-take-power-in-afghanistan/21803656. Acesso em: 20 ago. 2021.

 

AFEGANISTÃO: a história de um país em ponto estratégico apelidado de ‘cemitério de impérios’. BBC, [S. l.], ago. 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57516844. Acesso em: 20 ago. 2021.

 

AFGHANISTAN Refugee Crisis Explained. UNHRC, [S. l.], ago. 2021. Disponível em: https://www.unrefugees.org/news/afghanistan-refugee-crisis-explained/. Acesso em: 20 ago. 2021.

 

FASSIHI, Farnaz. A 17-year-old Afghan soccer player died falling from a U.S. evacuation plane. The New York Times, 20 de ago. de 2021. Disponível em: https://www.nytimes.com/2021/08/19/world/asia/zaki-anwari-dead.html. Acesso em: 20 de ago. de 2021.

 

LEDERMAN, J.; BURNS, R.. Afghanistan: WATCH: Trump says U.S. can’t afford ‘hasty’ withdrawal from Afghanistan. PBS, [S. l.], ago. 2017. Disponível em: https://www.pbs.org/newshour/world/watch-trump-says-u-s-cant-afford-hasty-withdrawal-afghanistan. Acesso em: 20 de ago. de 2021.

 

ROGERS, Katie. A baby passed over a wall in Kabul is reunited with his family, the military says. The New York Times, 20 de ago. de 2021. Disponível em: https://www.nytimes.com/2021/08/20/world/asia/afghanistan-kabul-baby.htmlh. Acesso em: 20 de ago. de 2021.

 

RUIZ, Hiram A. Afghanistan: conflict and displacement 1978 to 2001. Forced Migration Review, [n. d.]. Disponível em: https://www.fmreview.org/september-11th-has-anything-changed/ruiz. Acesso em: 20 de ago. de 2021.

 

WATCH: White House says Taliban takeover of Afghanistan ‘not inevitable’.PBS, [S. l.], ago. 2017. Disponível em: https://www.pbs.org/newshour/politics/watch-live-jen-psaki-holds-white-house-news-briefing-31. Acesso em: 20 ago. 2021.

 

WILLNER-REID, Matthew. Afghanistan: Displacement Challenges in a Country on the Move. Migration Policy, nov. 2017. Disponível em: https://www.migrationpolicy.org/article/afghanistan-displacement-challenges-country-move. Acesso em: 20 de ago. de 2021.