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análise de conjuntura
Foto: Jim Watson/AFP

por Daniel Cunha Rego

 

Eventos, por si só, raramente mudam de forma profunda a história ou um curso de acontecimentos, mas são frequentemente símbolos fortes e marcos importantes em algum processo. O depoimento de Mark Zuckerberg, fundador do Facebook e proprietário de muitas redes, como Instagram e WhatsApp, compradas pelo Facebook, ao congresso estadunidense (foto) foi o prego que faltava no caixão da era de atitude otimista quanto às redes sociais.

 

O sociólogo espanhol Manuel Castells, ainda em 1996, escreveu o livro “A sociedade em rede”, no qual deixava transparecer uma visão manifestamente esperançosa e que persistiu ao menos até mesmo em “Redes de Indignação e Esperança”, que publicou em 2012. Os primeiros teóricos viam na jovem internet um meio de concretizar a utopia da esfera pública universal, resolvendo as questões do acesso e da mediação ao mesmo tempo: em tese, todos poderiam, agora, acessar o meio para comunicar-se diretamente uns com os outros, dispensando a representação e as formas de mediação (sindicatos, movimentos sociais, associações, imprensa) cristalizadas na experiência histórica das democracias ocidentais. Seria, finalmente, a era do discurso livre, dos sujeitos políticos em sua plenitude.

 

Hoje é difícil encontrar alguém que mantenha essa visão. Ao menos desde a eleição de Donald Trump, começou-se a analisar e a enfatizar o poder de redes de desinformação (fake news) e de ódio que se formavam online, com conivência tácita de "gigantes da internet". Pior ainda: a lógica inicial de descentralização da rede perdeu-se em meio a um oligopólio de empresas como Google/Alphabet, Facebook e Netflix, que, junto com as também gigantes Amazon, Microsoft e Apple, são responsáveis por 43% de todo o tráfego da Web. A maioria dos serviços amplamente utilizados no cotidiano das pessoas em todo o mundo (YouTube, WhatsApp, Instagram e o próprio Facebook, além de e-mail e serviços de streaming) é propriedade privada dessas empresas.

 

Em meio à crise provocada em 2018 pela revelação do uso indevido dos dados pessoais de milhões de usuários do Facebook coletados pela empresa Cambrigde Analytica (de propriedade de Steve Bannon, o então estrategista da campanha de Donald Trump) para fins eleitorais nos EUA, entrei no debate e chamei a atenção para uma categoria importante de análise do poder na época da informação, apelidada por mim de “geopolítica visceral“, que

 

“dá-se ao nível psíquico, do indivíduo, transformando seus gostos, seus pensamentos, seus hábitos, suas frustrações e suas emoções em variáveis do cálculo estratégico, milimetricamente personalizado e friamente instrumentalizado. Nesse contexto, o conceito geopolítico clássico de poder, fortemente atrelado aos componentes militar e territorial, dá lugar a um conceito informacional e em certa medida ideacional, que passa pela capacidade de produzir e difundir informações convincentes e estratégicas, verdadeiras ou não, e de acessar e interpretar dados pessoais para direcionar essa informação.” (REGO, 2018)

 

Naquele momento, porém, não me atentei para outro elemento fundamental nessa manipulação: o controle privado do fluxo de informações. A questão não é apenas a proliferação das falsas notícias e das narrativas enganosas, mas também o sufocamento do debate de qualidade e da liberdade de expressão autêntica. Já há nas regras da maioria dessas plataformas (sendo talvez o Twitter a mais notável exceção) proibições morais, como nudez. A linha já começa a ser traçada aqui, quando mamilos masculinos, permitidos, e femininos, proibidos, sequer conseguem ser identificados, ou mesmo quando obras de arte que contêm nudez são censuradas. Mas muito mais problemática é a arbitrariedade com que as regras de conteúdo são aplicadas, não havendo clareza entre o que é permitido e o que não é, e com a prática ubíqua da censura prévia aplicada por uma inteligência artificial.

 

A pandemia da COVID-19 reacendeu a discussão acerca das redes sociais, seu papel e suas limitações como suporte da esfera pública digital. Isso se deve à atitude ora complacente ora arbitrária dessas redes no controle da informação sobre a pandemia. No YouTube, por exemplo, criadores de conteúdo têm recorrentemente denunciado a maneira como a plataforma trata a questão, desmonetizando (isto é, não permitindo que o criador receba  dinheiro com publicidade veiculada no conteúdo) vídeos que façam qualquer menção  ao novo coronavírus, mesmo que de maneira cientificamente embasada. Também há reclamações quanto à remoção arbitrária de conteúdos informativos por supostamente infringir as regras de uso da plataforma, enquanto diversos outros que disseminam informações equivocadas seguem intocados.

 

Se, por um lado, a dificuldade de curadoria do conteúdo de qualidade beira o impossível, dado a quantidade colossal de informação publicada a cada minuto, por outro, as empresas por detrás das redes sociais também não parecem se importar tanto assim com a qualidade das informações reproduzidas. É mais fácil para essas empresas criar algoritmos extremamente limitados e passíveis de falhas que, na maioria das vezes, sufocam o pequeno produtor de conteúdo, e impor políticas arbitrárias que, na prática, proíbem que temas potencialmente polêmicos sejam debatidos com a profundidade necessária, enquanto grandes produtores ou conglomerados de mídia têm acesso privilegiado e regras especiais[1].

 

Retornando ao depoimento de Zuckerberg no Congresso estadunidense, o que se viu foi a desmistificação da aura do "gênio da tecnologia", imbuído de um espírito iluminista e profundamente preocupado com o avanço técnico (e, portanto, social) da espécie humana. Assistimos a um bilionário acuado, respondendo o mínimo possível e tentando se eximir de quaisquer responsabilidades por sua criação. “Congresswoman, I don’t know the answer to that”[2] foi a frase que marcou o depoimento, resposta a vários dos questionamentos incisivos da deputada Alexandria Ocasio-Cortez.

 

No cálculo das redes sociais, o elemento humano está fora da equação. A inteligência artificial busca maximizar cliques e minimizar problemas com a justiça. O compromisso dessas plataformas com a qualidade do debate público é próximo de zero. Na forma atual das coisas, a utopia da esfera pública digital universal é cada vez mais distante. Ela encontrou seus limites no pouco caso de empresas bilionárias que, como é normal das empresas, buscam maximizar lucros. E, assim, a liberdade do discurso e o projeto de construção de uma esfera pública de qualidade são esquecidos esmagados por montanhas de dólares.

 

[1] Após inicialmente impedir completamente a veiculação de anúncios em vídeos sobre a pandemia, o YouTube recuou parcialmente e passou a permiti-los para parceiros de notícias (geralmente grandes empresas do ramo jornalístico) e “um número limitado de canais” (KIMBALL, 2020). Mesmo assim, transmissões ao-vivo de pequenos produtores continuaram a ser tiradas do ar arbitrariamente (NOTA, 2020). Apenas em 2 de abril a plataforma anunciou que “todos os criadores e agências de notícias poderão gerar receita com vídeos que mencionem ou falem sobre a COVID-19” (ATUALIZAÇÕES, s.d), apesar de reclamações de desmonetizações arbitrárias ainda serem constantes entre os criadores.

 

[2] Deputada, não sei a resposta disso.

 

 

Referências

 

NOTA sobre a remoção arbitrária da live “Blog da Feira apresenta: Covid e desigualdade”. Blog da Feira, 28 abr. 2020. Disponível em: https://blogdafeira.com.br/home/2020/04/28/nota-sobre-a-remocao-arbitraria-da-live-blog-da-feira-apresenta-covid-e-desigualdade/. Acesso em 14 mai. 2020.

 

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e terra, 2005.

______. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2017.

 

KIMBALL, Whitney. YouTube vai permitir que alguns criadores monetizem vídeos sobre coronavírus. Gizmodo Brasil, 12 mar. 2020. Disponível em: https://gizmodo.uol.com.br/youtube-criadores-monetizem-videos-sobre-coronavirus/. Acesso em 14 mai. 2020. 

 

REGO, Daniel Cunha. Geopolítica visceral: a ampliação do conceito de poder e a manipulação de opinião a nível individual. XXV Boletim de Conjuntura Internacional PET-REL, Brasília, n. 25, pp. 13-15, abr. 2018. Disponível em: https://petrelint.wordpress.com/2018/05/06/xxv-boletim-de-conjuntura/.