por Aisha Sayuri Agata da Rocha
As animações, um formato de produção audiovisual voltado para crianças, são um bom recurso para transmitir mensagens elições importantes, através de uma linguagem simples e de fácil entendimento. Esta análise tem por objetivo discorrer sobre a importância que as animações podem ter em uma formação educacional humana que preza pela aceitação da diversidade, ressaltando o papel importante tanto dos idealizadores quanto do conteúdo dos desenhos, sem esquecer também das dificuldades e as problemáticas que podem surgir no desenvolver das produções. Atualmente, as produções animadas têm desenvolvido, com sua linguagem artística própria, temáticas consideradas tabu pela sociedade, e vêm incluindo cada vez mais diversidade e representatividade em suas personagens e na formação das crianças e jovens pelo mundo.
Um primeiro exemplo disso seria o programa infantil Steven Universo. É uma produção que mostra a vida e as aventuras de um menino e as gems[1]. Através dessas personagens e do enredo, Steven Universo trata, por alusões, de relacionamentos entre personagens femininas, relacionamentos interraciais, preconceito, entre outros temas; como exemplo pode-se citar o relacionamento entre Rubi e Safira, duas gems – retratadas como femininas – que durante todo o desenho demonstram ter um envolvimento romântico duradouro, saudável e emocionante.
Tendo em vista que é uma produção destinada a crianças, ela influencia diretamente indivíduos em processo de formação, modificando o jeito com que aprendem a lidar com situações envolvendo alteridades[2] e até elas mesmas. Acompanhar o desenho a partir da visão de Steven, uma criança passando por esse processo de formação da própria identidade cercado pelo ambiente de diversidade proposto no enredo, e que lida com essas alteridades de forma natural é elemento central nesse processo. Cumpre assim, um importante papel social pela naturalidade e simplicidade que confere a temas vistos como tão polêmicos e complexos, promovendo sua acessibilidade.
Levando em conta ainda que é transmitido em muitos países – dentre eles Estados Unidos, Brasil, Espanha, Itália, França, Canadá, Dinamarca, entre outros, não é um fenômeno restrito ao nível nacional de onde a animação é feita. A produção cultural deixou de ser produzida e consumida só nacionalmente. Imersa no mundo globalizado, a exportação de conteúdo é um fenômeno cada vez mais comum. A projeção internacional que certos empreendimentos culturais conseguiram demonstra a característica transnacional da cultura; A maior conexão entre espaços distantes promovidas por esses conteúdos expande seu alcance. Dentre disso, as animações são importantes por atingir o público infantil; utilizando as dublagens feitas em diversas línguas e a transmissão dos conteúdos em vários lugares pelo mundo. Os desenhos animados adquiriram uma função social que transcende o nacional e potencializa sua capacidade transformadora e alcance.
Um dos primeiros desenhos que podem ser identificados como parte dessa tendência é Hora de Aventura. Ele trata de temas como assédio relacionamento amoroso entre mulheres; envolto por um cenário apocalíptico que gera possibilidades de reflexões sobre outras questões políticas, como o abandono parental por exemplo, para além da diversidade representada por alguns personagens como Marceline e Princessa Jujuba, que aparentam ter se envolvido romanticamente. Entretanto Hora de Aventura tem muitas cenas de violência, que ocasionam a censura de certas partes em diversos países, que geram confusão na cabeça das crianças, podendo ter repercussões negativas no futuro por também influenciarem o processo de formação.
Essa animação contou com a participação de Rebecca Sugar, criadora de Steven Universo, na escrita de alguns episódios. Nessas dinâmicas, roteiristas e produtores são atores chave para a concretização do potencial educacional e de mudança do que produzem. Indivíduos como Rebecca Sugar são grandes vozes desse fenômeno. Ela, como partícipe direta da indústria da animação, procura se comunicar e fortalecer as crianças consideradas “esquisitas”, mostrando que não há nada de errado em ser diferente (D’ANGELO, 2017).
Quando Rebecca conseguiu produzir seu desenho próprio, tornou-se a primeira mulher criadora de séries animadas do Cartoon Network (D’ANGELO. 2017). Em Steven Universo, as temáticas já mencionadas são tratadas através de metáforas muito mais explícitas que em outras animações e isso deve-se em parte pela identidade de Rebecca Sugar, pautada na centralidade de questões de gênero e sexualidade. Como a própria criadora diz, a presença de mulheres fortes e de relacionamentos LGBTs em seu desenho é relacionado com a sua experiência enquanto mulher bissexual (AVERY, 2016), ela quer dar para as crianças outras narrativas sobre o amor a fim de mostrar que todos os amores são possíveis, válidos e devem ser respeitados. Outro elemento que corrobora tal afirmativa é a constante reafirmação das mensagens educativas que a criadora faz em entrevistas quando questionada sobre a natureza das cenas e histórias dentro do enredo. É extremamente importante para Rebecca Sugar que suas mensagens sejam compreendidas e desenvolvidas, tanto que o conteúdo que produz é projetado para além da televisão. Através de livros infantis relacionados com o conteúdo de seu desenho, ela consegue desdobrar com mais profundidade as temáticas e as mensagens de sua produção, potencializando a dimensão transformadora.
A continuidade desse movimento político, com um potencial propósito pedagógico, pode ser vista na releitura de desenhos antigos como As Meninas Superpoderosas, que também é uma produção de alcance internacional. Em sua versão de 2016, o desenho animado mantém as críticas ao machismo, à estrutura patriarcal e aos papéis de gênero por mostrar três meninas super-heroínas poderosas que salvam o dia, ao invés de personagens indefesas que precisam ser salvas; com um pai responsável por cuidar, cozinhar e limpar, tarefas que comumente são associadas necessariamente a uma figura feminina. Além disso, essa nova versão já tratou, metaforicamente, sobre transexualidade retratando um cavalo que se sente unicórnio, e quer ser um unicórnio[3]. Sem mencionar que explora com mais profundidade o empoderamento das meninas frente a vilões masculinos que desafiam suas capacidades, proporcionando a todas as meninas, que têm acesso ao desenho, uma visão mais positiva sobre si e do que são capazes de fazer.
Ademais, a inserção de uma menina superpoderosa negra – Bliss – demonstra uma preocupação com a representatividade, isso porque inclui dentro das personagens centrais do desenho alguém negra, diversificando as representações que o desenho traz, retratando agora não só mulheres brancas, mas também mulheres negras. Democratizando um pouco a produção, e influenciando diretamente no empoderamento de meninas negras pela via da identificação, Meninas Superpoderosas passa a mostrar e se comunicar diretamente com um público maior, podendo assim afetar a formação de mais crianças.
Outra pluralização que é importante ser mencionada é em relação aos centros de produção de tal conteúdo. A periferia do sistema internacional tem ganhado espaço nesse mercado. Pode-se exemplificar isso através da primeira produção inteiramente latinoamericana do Cartoon Network: Irmão do Jorel. Esse desenho foi criado no Brasil, e aos poucos tem conseguido expandir seu alcance para a América Latina, com perspectivas de ser veiculado dos Estados Unidos (D’ANGELO, 2016). A temática da animação também traz elementos de diversidade, principalmente na forma de três personagens femininas: uma que performa a feminilidade branca e ocidental, através da personificação da delicadeza, fragilidade, elegância; e outras duas que não correspondem a essa construção, por praticarem esportes, terem uma postura mais dura e desafiadora.
Todo esse conjunto de produções audiovisuais exploradas permite facilitar o debate sobre desconstrução de padrões de gênero, homossexualidade, LGBT e, raça com crianças. O retrato visual e a linguagem simplificada e natural pelas os temas são abordados nas das animações, permite que a discussão seja mais acessível tanto aos mais jovens quanto a demais públicos não familiarizados com as temáticas. Para fins educacionais, esse é um recurso importantíssimo que pode ser usado, promovido e patrocinado por movimentos sociais, ONGs e Estados. Isso inclui, na formação de jovens, discursos sobre aceitação, preconceito e respeito.
Mas não se pode esquecer dos possíveis efeitos negativos desse processo. A produção transnacional da cultura também traz consigo um efeito de massificação. As manifestações tradicionais e locais aos poucos são substituídas por uma linguagem que busca comunicar-se com mais pessoas ao mesmo tempo em vários lugares. Desviando os investimentos daquilo que é localmente identitário, para o que pode ser internacionalmente exportado. Além do mais, a representação que tanto discute-se sobre não se mostra necessariamente positivas em todas as personagens inseridas, por vezes reforça estereótipos involuntariamente, como por exemplo a personagem Bliss que é retratada como alguém que não consegue controlar seus poderes e precisa ser contida, dando respaldo a visão que mulheres negras são descontroladas e podem explodir a qualquer momento – o mito da negra raivosa. Porém, mesmo com todas essas possíveis negatividades, todo o empreendimento ainda é importante para facilitar a educação de jovens e crianças sobre a diversidade do mundo.
A combinação do interesse mercadológico e o interesse social nessas produções gera um resultado importante nesse sentido. O desejo dos grandes canais produtores em agregar mais público e vender mais ao retratar temas mais progressistas e integrar o movimento de inclusão e representatividade associado à necessidade de financiamento de roteiristas e produtores que querem retratar a diversidade e promover a mudança; resulta numa maior abertura para a concretização de projetos como os de Rebecca Sugar e os já citados. Seguindo essa tendência, cada vez mais poderá haver na televisão animações disponíveis que tratem de temáticas consideradas tabus, mas que visam a quebra e desconstrução de preconceitos e padrões. Por mais que também haja a possibilidade de haver uma inundação do mercado com desenhos com estruturas muito parecidas, e as mensagens se percam na onda de superprodução visando o lucro.
A partir de uma visão mais institucional, a intensificação da internacionalização desse fenômeno, com uma diversidade ainda maior de lugares de narrativas, de temas e do alcance dessa nova possibilidade de socialização cria um locus mais sólido para ação, intervenção e promoção internacional de propostas sociais. Através de financiamentos privados e estatais, em programas de incentivo à cultura, ou partindo de ONG’s e até de Organizações Internacionais – como a UNESCO com o Fundo Internacional para a Promoção da Cultura (IFPC) – pode-se explorar essa alternativa cultural na produção audiovisual para concretizar avanços em pautas referentes à raça, gênero e sexualidade. Dentro desse cenário abre-se a perspectiva não só para os conteúdos massificados para a venda, mas também para as produções relacionadas a cultura local identitária que precisa ser resgatada e valorizada.
[1] No programa, as gems são seres alienígenas humanoides. Elas vêm de um planeta chamado Homeworld. O que as define e diferenciar é ter um centro na forma de uma pedra preciosa. Essa pedra diz qual o nome daquela gem.
[2] Alteridades aqui está sendo usado no sentido de algo diferente do que aquilo que o eu é. Steven é um meio humano, meio gem, que se depara constantemente com o que era relacionamento interracial de seus pais, e os encontros entre humanos e gems. Além também do próprio relacionamento amoroso entre as gems, todas personagens femininas, nisso pode-se citar tanto Rubi e Safira, quanto a Pérola e Rose.
[3] Nesse episódio, também são explorados de certa forma os riscos de se fazer uma cirurgia de transição, uma vez que quando o cavalo passa pelo procedimento de implantação de um chifre, resultados prejudiciais acabam surgindo. No final, a cirurgia é revertida, contudo, ele descobre que ele realmente sempre foi um unicórnio. Para se chegar a essas interpretações, é preciso ter familiaridade com o debate, o que pode diminuir o efeito do potencial pedagógico da proposta.
Referências Bibliográficas:
AVERY, Dan. Rebecca Sugar came out as bi, explained why queerness is so important to “Steven Universe”. NewNowNext, jul 2016. Disponível em: http://www.newnownext.com/rebecca-sugar-came-out-as-bi-explained-why-queerness-is-so-important-to-steven-universe/07/2016/ acesso em nov 2017
D’ANGELO, Helô. Batemos um papo com Rebecca Sugar, criadora de ‘Steven Universo’. Superinteressante, mai 2017. Disponível em: https://super.abril.com.br/cultura/entrevista-com-rebecca-sugar-criadora-de-steven-universe/ acesso em out 2017
D’ANGELO, Helô. Batemos um papo com Juliano Enrico, criador do ‘Irmão do Jorel’. Superinteressante, nov 2016. Disponível em: https://super.abril.com.br/cultura/batemos-um-papo-com-juliano-enrico-criador-do-irmao-do-jorel/ acesso em out 2017
O GLOBO. Conheça a primeira personagem negra de ‘As meninas superpoderosas’. set 2017. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/revista-da-tv/conheca-primeira-personagem-negra-de-as-meninas-superpoderosas-21836469 acesso em out 2017
SMITH, Nia Howe. ‘Steven Universe’ creator on growing up, gender politics, her brother. Entertainment Weekly, jun 2015. Disponível em: http://ew.com/article/2015/06/15/steven-universe-creator-growing-gender-politics-her-brother/ acesso em out 2017
INTERNATIONAL FUND FOR THE PROMOTION OF CULTURE. Disponível em: https://en.unesco.org/ifpc/content/about-fund acesso em out 2017