por Tiago M. Rubo
“sinto-me, às vezes, incomodado, quando escuto que a seleção de 1970 foi o ópio do povo e que foi usada pela ditadura. Todos os governos, de todo o mundo, ditaduras e democracias, como a atual do Brasil, fazem o mesmo” (TOSTÃO, 2014).
Com o encerramento da Copa do Mundo e a vitória da Seleção Francesa, algumas imagens são “eternizadas” em nosso imaginário, dentre tantas: a cambalhota do técnico Tite comemorando o gol brasileiro, a alusão à bandeira da Albânia pelos jogadores suíços e especialmente o presidente francês Emmanuel Macron beijando a taça sob chuva e festa. Quebrando protocolos e padrões de comportamento de autoridades em Copas do Mundo, Macron entrou no vestiário da seleção francesa, foi filmado para um Snapchat junto com Pogba, fotografado pelo lateral Benjamin Mendy e beijou as testas dos ídolos Mbappé e Griezmann (SE, 2018).
Não sem um tom irônico, nos perguntamos: o que faz o “presidente dos ricos”[1] na Rússia? Sua contagiante vibração se contrastava com o pequeno percentual de aprovação dos franceses (45% no final de 2017). Macron contava com uma generalizada insatisfação frente à série de reformas neoliberais empreendidas pelo seu governo. Porém, já neste começo de 2018, a sua aprovação alcançou 50% (mais que seus 2 antecessores, Sarkozy e Hollande, no mesmo período) e ele se encontra em uma onda de popularidade, mesmo frente ao seu perfil reformador[2] (MAGALHÃES, 2018). Segundo o cientista político Pascal Perrineau, Macron ocupou o centro (no espectro direita-esquerda) de uma França desunida e está promovendo uma abertura nacional (ibid, 2018).
A partir de uma visão da Diplomacia Midiática[3] (BURITY, 2013) e da análise cartográfica[4] (PRADO FILHO & TETI, 2013), é possível traçar linhas de influência política nestas produções estéticas do presidente francês. O argumento em análise evidencia a busca por legitimidade do projeto de Estado neoliberal por imagens e discursos que alcançam um nível das subjetividades e afetos. A onda de otimismo nacional, os possíveis efeitos na moral econômica francesa e comportamento do consumidor (REUTERS BRASIL, 2018) seguem parâmetros históricos: “em 1998, a popularidade do então presidente Jacques Chirac disparou para o “efeito Copa do Mundo”, um salto de 18 pontos, de acordo com pesquisas do Ifop.” (ibid, 2018). O presente trabalho busca ir às subjetividades e ao lado estético deste fenômeno, abordando a ação midiática de Emmanuel Macron como um dispositivo de poder[5], pretendendo ser uma contribuição à compreensão da diplomacia midiática pela Virada Estética em RI[6].
Assim é rotulado Macron: um presidente da “sociedade aberta”, neoliberal e jovem (MAGALHÃES, 2018). Transita da esquerda à direita em sua agenda. A impressão é de um “chuchuzinho” da França[7], que encontra no pragmatismo ideológico, associado à imagem pessoal, uma potência para realizar mudanças do seu governo em nível internacional. Possui um projeto de fortalecimento da Europa, e para tal faz simpatias com grandes atores (EUA e Alemanha) a fim de tornar a belle époque factível. A nós, periféricos, a pergunta da vez é: vale a pena? Ao que nos interessa uma França fortalecida em seu mercado econômico e financeiro, rejuvenescida culturalmente? Em plena conflagração de guerra fiscal entre os EUA e a China, em pleno ocaso da agenda da reforma das organizações internacionais e em pleno entrave das negociações entre Mercosul e União Europeia, um gaulês se contrapõe a russos e estadunidenses e suas políticas protecionistas, se inserindo internacionalmente como uma figura de confiança.
É este o exato momento em que Macron entra no palco em sua versão “Allez les bleus”. A estética do herói europeu retorna, desta vez vestindo a camisa da seleção francesa e investindo contra os malvados protecionistas. Um ato dentro de uma peça de teatro, cuja narrativa distante da realidade, reificada por metáforas (como “abertura” da sociedade e “rejuvenescimento” da política, para citar algumas naturalizações da ciência política) carregadas politicamente e repetidas a tal ponto que a tomamos como a realidade representada (BLEIKER, 2001). De fato, Macron é ambivalente, e a realidade não se resume a este maniqueísmo que ele buscou construir em discursos oficiais e exposições midiáticas, especialmente durante suas visitas à Rússia. Ainda assim, o campo dos símbolos e das ideias, que é construído pelo binômio saber-poder, que por sua vez enreda nossa política em sentido amplo e se dá por dispositivos de poder (PRADO FILHO & TETI, 2013), nos sujeita às impressões midiáticas enviesadas à dicotomia.
“Representação sempre é um ato de poder. Esse poder está em seu ápice se uma forma de representação é capaz de disfarçar suas origens subjetivas e valores.”[8] (BLEIKER, 2001). Entender Macron como um reformador e um ampliador do mercado franceses, sem compreender os valores destas pontuações, invisibiliza as injustiças e a hierarquia de prioridades dos setores franceses na agenda de Macron, o “presidente dos ricos”, o seu projeto de poder. E qual o projeto de poder por trás de tal construção estética? Não se coloca em questão a autenticidade do gosto do presidente francês pelo futebol, mas é preciso deixar a ingenuidade para compreender certos efeitos esperados que custaram o risco político de se romper o bloqueio diplomático com a Rússia: o eclipse do “caso Benalla”[9], das políticas de austeridades anti-humanitárias (especialmente contra refugiados) e as greves estudantis contra as reformas no ensino superior. A concessão pelo presidente de cidadania ao jovem do Mali que ganhou os noticiários como o “Homem-Aranha” por escalar prédio para salvar um menino de quatro anos dependurado, enquanto o governo expulsava 1.700 refugiados de Paris e estudava leis de deportação seria outra amostra da utilização da sua imagem e representação presidencial como um dispositivo de poder.
O projeto neoliberal se reveste de pompa e juventude, como foi ilustrado no caso francês. Porém, contra todo projeto de poder emergem resistências ao que nos produz e assujeita (PRADO FILHO & TETI, 2013). O atual cenário francês pouco se diferencia dos momentos anteriores ao Maio de 68, quando ocorreu a eclosão de uma série de protestos e greves gerais com vontade de mudança radical.
Se “À operação macropolítica de desmonte do Estado e da economia, soma-se a operação micropolítica de produção de subjetividades.” (ROLNIK, 2018) do medo sobre as crises constantemente noticiadas, fazendo com que “as subjetividades tendam a agarrar-se a qualquer promessa de estabilidade e segurança” (ibid, 2018), possibilitando a legitimidade das reformas neoliberais, a “sociedade aberta” promovida por Macron precisa ser reconceituada como “a tomada do poder político e econômico pelo capitalismo globalitário” (ROLNIK, 2018) a partir da estética.
Uma última reflexão breve, porém valiosa e bem pontuada precisa ser feita neste momento de eleições em nosso país. Você pensa criticamente o papel político das imagens? Vis-à-vis Macron, os presidenciáveis brasileiros promovem doméstica e internacionalmente seus projetos a partir de seus dispositivos de poder. O que podemos aprender do caso francês?
Não cabe nestas últimas linhas desenvolver análises profundas a respeito. Mas na falta de uma autoria, se recomenda a leitura da análise “Crise da Democracia e extremismos de direita”, de Esther Solano. Uma conjuntura política-estética parece ser esboçada, mas ainda é cedo para sugerir uma multiplicação destas práticas políticas. A “extrema direita mais antidemocrática, simbolizada no pensamento do deputado Jair Bolsonaro” (SOLANO, 2018, p.3) conta com sua maior força política na construção estética de um candidato honesto em contraposição aos corruptos políticos (ibid, 2018), o que se comunica muito com a ascensão de Macron como um candidato alheio à corrupção (MAGALHÃES, 2018). Talvez o que se conforme seja o novo golpe de Estado conceituado pela psicanalista e filósofa Suely Rolnik: “passada a perplexidade inicial, torna-se evidente que o capitalismo financeirizado precisa destas subjetividades rudes no poder. São como capangas que se incumbirão do trabalho sujo: destruir todas as conquistas democráticas e republicanas, dissolver seu imaginário e erradicar da cena seus protagonistas” (ROLNIK, 2018). Porém, no caso de Macron, acrescentaria ao “rude” a caracterização das subjetividades como jovens e torcedoras de futebol, sem pretender uma maior precisão conceitual, mas sim demonstrando como o campo político dos imaginários é muito mais interconectado do que se supõe e emerge em múltiplas facetas, se atualizando esteticamente.
[1] Abatendo impostos de grandes fortunas, empreendendo medidas de austeridade (Jornal de Angola, 2018).
[2] Em várias agendas, desde leis trabalhistas, aposentadoria e setor ferroviário.
[3] “A influência e o uso das redes internacionais de comunicação nas decisões, nos planejamentos e nas propagandas estatais”, conceito cunhado por Eytan Gilboa.
[4] “Uma exposição da relação de forças à medida que não desenha a “grande política” – do Estado, da sociedade, das instituições – mas, traça um esboço de relações capilares de poder, dando visibilidade à dinâmica micropolítica de um campo social” (PRADO FILHO & TETI, 2013)
[5] “É isto, o dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles.” (FOUCAULT, 1984, p.246)
[6] Caracterizada pelo retorno dos estudos estéticos e teorias da representação nas análises políticas. Estética, pela etimologia grega aisthesis, se refere às percepções e impressões, às formações de visão de mundo e de self (BELFRAGE & GAMMON, 2016).
[7] Referência ao presidente brasileiro Getúlio Vargas, apelidado de “chuchuzinho” por ser popular, ao mesmo tempo que tomava os sabores do lado que mais lhe conviesse ao momento.
[8] Tradução livre
[9] Guarda-costas de Macron violenta protestantes e o silêncio se estende. Para saber mais: https://br.reuters.com/article/worldNews/idBRKBN1K92RW-OBRWD
Referências Bibliográficas
BELFRAGE, Claes; GAMMON, Earl. Aesthetic International Political Economy. Millennium: Journal of International Studies, [s.l.], v. 45, n. 2, p.223-232, 21 dez. 2016.
BLEIKER, Roland. The Aesthetic Turn in International Political Theory. Millennium: Journal of International Studies, [s.l.], v. 30, n. 3, p.509-533, dez. 2001.
BURITY, Caroline Rangel Travassos. A influência da mídia nas relações internacionais: um estudo teórico a partir do conceito de diplomacia midiática. Contemporânea (Título não-corrente), v. 11, n. 1, 2013.
FOUCAULT, Michel. “Sobre a história da sexualidade”. In: MACHADO, R. (Org.). Microfísica
do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1984, p.243-276
Jornal de Angola. Macron acusado de ser Presidente dos “ricos”. 2018. Disponível em: <http://jornaldeangola.sapo.ao/mundo/macron_acusado_de_ser_presidente_dos_ricos> Acesso em 23 jul 2018.
MAGALHÃES, Guilherme. Um ano depois, Macron faz reformas e ainda é popular, diz cientista político. Folha de S. Paulo, São Paulo, 13 de maio de 2018. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/05/um-ano-depois-macron-faz-reformas-e-ainda-e-popular-diz-cientista-politico.shtml >. Acesso em 23 jul 2018.
PRADO FILHO, Kleber; TETI, Marcela Montalvão. A cartografia como método para as ciências humanas e sociais. Barbarói, n. 38, p. 45-49, 2013.
REUTERS BRASIL. Após França vencer a Copa, sorte de Macron pode ganhar força. 15 de julho de 2018. Disponível em: <https://br.reuters.com/article/worldNews/idBRKBN1K50ZF-OBRWD> Acesso em 23 jul 2018.
ROLNIK, Suely. O novo tipo de golpe de estado: um seriado em três temporadas. El País, 12 de maio de 2018. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/12/actualidad/1526080535_988288.html> Acesso em 23 jul 2018.
SE (Super Esportes). Após beijar Mbappé, Griezmann e até taça da Copa, Macron diz ‘obrigado’ à seleção. 2018. Disponível em: <https://www.mg.superesportes.com.br/app/noticias/copa-do-mundo/2018/noticias/2018/07/15/copa-do-mundo,490179/apos-beijar-mbappe-griezmann-e-ate-taca-da-copa-macron-diz-obrigado.shtml > Acesso em 23 jul 2018.
SOLANO, Esther. Crise da Democracia e extremismos de direita. Friedrich-Ebert-Stiftung Brasil, Análise nº 42/2018. Disponível em: <http://library.fes.de/pdf-files/bueros/brasilien/14508.pdf> Acesso em 23 jul 2018.
TOSTÃO. Faltaram os estrategistas. Folha de S. Paulo, São Paulo, 26 de março de 2014. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/colunas/tostao/2014/03/1430893-faltaram-os-estrategistas.shtml>. Acesso em 18 jul 2018.