por Mauro Cazzaniga
Casos de saques a supermercados, anúncios de greve geral, protestos: assim tem estado a situação da Argentina há algumas semanas. Com juros a 60% (atualmente a taxa mais alta do mundo), a inflação mensal mais alta dos últimos dois anos (3,6% no mês de agosto – a fim de comparação, o IPCA brasileiro foi de 2,95% para 2017 inteiro), o dólar a 40 pesos, e um PIB estagnado há oito anos, nosso país vizinho enfrenta uma grave crise econômica, política e social – que, curiosamente, parece não chegar às manchetes e jornais brasileiros. O atual presidente Mauricio Macri anunciou, no dia 3 de setembro, uma série de medidas de austeridade na esperança de adiantar créditos do FMI, que foram recebidas negativamente pela sociedade. Esta análise propõe responder algumas perguntas sobre o cenário em questão: quem é Macri, como a Argentina chegou a essa situação, e quais são as saídas, erros e acertos.
Assim como outros países na América Latina, incluindo o Brasil, a Argentina enfrentou uma crise hiperinflacionária na década de 80, causada, em grande parte, pela crise dos energéticos e a alta dos juros dos Estados Unidos no fim da década de 70. Consoante com a época, foram empreendidas uma série de reformas liberais para tentar solucionar o problema, sem grandes resultados. A saída encontrada foi semelhante à do Plano Real, porém foi um passo além: o governo de Carlos Saúl Menem atrelou o peso ao dólar. Embora tenha estabilizado a economia , a medida significou a perda da capacidade de controlar sua própria política cambial.
Na virada do milênio, isso causou uma crise incontornável nas reservas internacionais da Argentina. A falta de liquidez mundial devido à crise do México e à crise russa, assim como o encarecimento das exportações argentinas com a desvalorização do real em 1999, reduziram de forma significativa a oferta de dólares no país, que não conseguia mais pagar sua dívida externa e sofria com fuga de capitais. Mesmo com um pacote de emergência do FMI em 2000, a Argentina ainda não conseguiu lidar com seus juros dos empréstimos externos, decretando moratória em 2001. Os episódios ajudam a ilustrar algumas das fraquezas estruturais da economia argentina e também a importância do dólar, que, mesmo não tendo mais paridade com o peso, continua uma variável determinante em índices de preços e juros.
Após um período de grave crise econômica, política e social no governo de Fernando de la Rúa, em 2002 foi eleito Néstor Kirchner, vencendo Menem no segundo turno. Kirchner levou adiante um programa econômico neodesenvolvimentista, com aumento de gastos públicos e manutenção de um câmbio desvalorizado em relação ao dólar. A desvalorização artificial do câmbio favoreceu exportadores, principalmente em um período de expansão das commodities, e serviu como política protecionista para a indústria devido ao encarecimento de importações. Ainda, eram cobradas taxas de retenção sobre os exportadores, o que ajudava a financiar os custos do Estado. O modelo provou ter sucesso, com aumento do emprego, renda e do superávit da balança comercial.
Entretanto, as políticas do neodesenvolvimentismo começaram a mostrar seu esgotamento durante o governo de Cristina Kirchner, de 2007 a 2015. Por um lado, embora tenha garantido superávit e aumento da renda, a inflação é uma consequência inevitável de medidas de desvalorização cambial e aumento dos gastos públicos. Com a redução no valor das commodities a partir de 2010, a situação favorável à exportação começou a se reverter, e mesmo com seu crescimento, a indústria argentina não era competitiva o suficiente face à brasileira. A Argentina entrou em um período de estagnação e de aumento do déficit público e externo. Somado a problemas de transparência e corrupção no governo de Cristina, a insatisfação era crescente.
A “Era Kirchner” chegou a seu fim com a eleição de Mauricio Macri à presidência argentina. Filho de um grande empresário, Macri foi presidente do clube Boca Juniors e prefeito de Buenos Aires de 2007 a 2011. Seu partido, Proposta Republicana, defendia as ideias da administração pública por gestores, contra os políticos tradicionais – trajetória e ideais não muito diferentes da de João Dória à prefeitura de São Paulo. Algumas de suas primeiras medidas econômicas foram o fim das taxas de retenção sobre exportações, aumentos nos juros, regularização do câmbio e corte em impostos e subsídios. Em 2017, sua agenda incluía reformas tributária, trabalhista e previdenciária.
Com o aumento recente dos juros americanos e do dólar, entretanto, a economia passou a sofrer os efeitos de uma nova crise: para tentar valorizar o câmbio, o governo gastou uma parte de suas reservas para aumentar a oferta de dólares. A taxa, no entanto, teve apenas leve queda de 40 para 38 pesos. Apesar da retomada de confiança de investidores com Macri e a elevação dos juros a 60%, investimentos estrangeiros saem do país. A inflação e o déficit comercial aumentaram. Para tentar contornar o problema, o presidente anunciou o retorno das taxas de retenção e um corte de gastos públicos (reduzindo o número de ministérios de 22 para 10, por exemplo), na tentativa de adiantar créditos de um acordo com o FMI.
A falha dos programas de Macri não pode ser explicada por uma simplificação de que o neoliberalismo sempre dará errado – a longo prazo, qualquer programa econômico dará errado. A questão é exatamente saber avaliar os problemas e gargalos da economia para tomar as providências necessárias a fim de solucionar o problema. E nesse sentido, o erro de Macri é semelhante ao ocorrido na época de Menem: o atual presidente simplesmente seguiu uma “receita de bolo” da ortodoxia econômica, com políticas de cortes de gastos. No entanto, o problema estrutural de seu país era o da dívida externa e reservas internacionais, não o de dívida pública. Embora esta estivesse elevada e por isso aumentasse a demanda por financiamento internacional, apenas reduzir a dívida pública não acaba com os juros externos. Mesmo com o aumento dos juros, o risco do calote na dívida externa aguça as suspeitas dos investidores, causando fugas de capitais.
Nenhuma “receita de bolo” econômica guarda os segredos do crescimento. É necessária sempre ação pragmática com avaliação técnica – mesmo Macri teve de admitir a necessidade da volta das retenções. Joseph Stiglitz, Nobel de Economia, recomendou a renegociação da dívida – exatamente porque, no momento, a dívida é seu principal problema, e sacrificar sua estrutura econômica interna não será suficiente para saná-la.
Por fim, tendo considerado toda a questão da crise argentina, por que o fato parece ausentar-se dos noticiários brasileiros? Em tempos de eleição, talvez seja mais vantajoso para aqueles com “receitas” em programas e propagandas não aprender com os erros ao nosso lado.
Referências bibliográficas
SALAMA, P. Crescimento e inflação na Argentina nos governos Kirchner. Estudos Avançados, n. 26, v. 75, p. 157-172, 2012.
VIANINI, F. M. N. A trajetória econômica da Argentina: 1989 – 2007. Juiz de Fora: UFJF, 2012.
Notícias e artigos consultados para a elaboração da análise
Perguntas e respostas: entenda a crise argentina; https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2001/011221_perguntasargentinabg.shtml
Os fundamentos da crise argentina; https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2001/010404_mercosul4.shtml
Medidas de austeridade terão um alto custo para o povo; https://g1.globo.com/economia/noticia/2018/09/09/medidas-de-austeridade-terao-um-alto-custo-para-o-povo-diz-nobel-de-economia-sobre-plano-de-macri-para-argentina.ghtml
Conheça Mauricio Macri, que assume presidência da Argentina; https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2015/11/1709756-conheca-mauricio-macri-que-assumira-presidencia-da-argentina.shtml
Las 10 principales medidas económicas de Mauricio Macri; https://www.infobae.com/2016/01/03/1780348-las-10-principales-medidas-economicas-mauricio-macri-y-10-asignaturas-pendientes/
As reformas econômicas de Macri; https://www.clarin.com/clarin-em-portugues/destaque/as-reformas-economicas-macri_0_SJX_cu_kz.html
A crise econômica da Argentina em 6 gráficos; https://www.bbc.com/portuguese/internacional-45470709
Argentina vive a maior crise econômica desde 2001; https://www.redebrasilatual.com.br/mundo/2018/09/argentina-vive-a-maior-crise-desde-2001-diz-economista
Argentina tem manifestações contra novas medidas de ajuste econômico; https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/mundo/2018/09/13/interna_mundo,705638/argentina-tem-manifestacoes-contra-novas-medidas-de-ajuste-economico.shtml
Crise na Argentina: “Queríamos a mudança que Macri propunha, não a que ele fez”; https://brasil.elpais.com/brasil/2018/09/09/internacional/1536501249_312152.html
Dólar dispara na Argentina: por que as medidas de Macri não estão funcionando?; https://www.bbc.com/portuguese/internacional-45363350
Dinheiro encolhendo e contas no vermelho: veja 11 perguntas e respostas sobre a crise na Argentina; https://g1.globo.com/economia/noticia/2018/09/04/dinheiro-encolhendo-e-contas-no-vermelho-veja-11-perguntas-e-respostas-sobre-a-crise-na-argentina.ghtml
Argentina registra mês de maior inflação dos últimos dois anos; https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/09/argentina-registra-mes-de-maior-inflacao-dos-ultimos-dois-anos.shtml