por Letícia Barbosa Plaza
No dia 21 de outubro a comunidade LGBTI estadunidense, e mais especificamente o segmento formado pela população trans, teve mais uma vez os seus direitos sistematicamente ameaçados pelo presidente da república. A administração Trump comunicou que está considerando fortemente definir o conceito de gênero perante ao Estado como uma condição biológica, imutável e determinada pela genitália no momento do nascimento. O New York Times referiu-se ao fato como “a medida mais drástica de um esforço governamental para reverter o reconhecimento e a proteção de pessoas trans sob a lei federal de direitos civis” (BENNER et al., 2018).
O Departamento de Saúde e Serviço Social (HHS) dos EUA está conduzindo o esforço, com o objetivo de estabelecer uma definição legal do conceito de “sexo” do Title IX, lei federal de direitos civis que proíbe a discriminação de gênero em programas educacionais que recebem assistência financeira do governo. O HHS argumentou que havia necessidade de que as principais agências governamentais adotassem uma definição explícita e uniforme de gênero, baseada “em uma base biológica clara, fundamentada na ciência, objetiva e administrável”. Segundo o departamento, essa definição distinguiria o sexo entre masculino ou feminino, apenas. Ademais, de acordo com o memorando concedido ao Times, qualquer disputa sobre o sexo de alguém teria de ser evidenciado por meio do seu submetimento a “testes genéticos confiáveis”. Na prática, isso significa que o reconhecimento legal de cerca de 1,4 milhão de indivíduos transgêneros estadunidenses pode ser liquidado (BENNER et al., 2018).
A adoção desse tipo de linguagem pseudocientífica pela lei resulta na legitimação da discriminação de pessoas trans pelo Estado e, consequentemente, promove a hostilidade e a violência contra essa população por meio de sua exclusão sistemática de políticas públicas para moradia, emprego, educação e saúde. O governo de Trump mostra-se, pois, como uma administração extremamente cruel e perigosa para a população LGBTI (além de outras minorias sociais). Cabe lembrar, aliás, que esse não foi o primeiro ataque de Trump contra a população trans (embora tenha sido extensivamente descrito pela imprensa local e internacional, bem como por organizações LGBTI como o pior até agora). Várias agências federais e outras instituições governamentais suspenderam políticas públicas da era Obama que garantiam direitos a minorias e reconheciam a identidade de gênero em escolas, prisões e abrigos para sem-teto.
Logo no início da administração Trump, já em fevereiro de 2017, os Departamentos de Justiça e da Educação retiraram a orientação do marco de 2016 que explicava como as escolas deveriam proteger os estudantes transexuais sob a lei federal do Title IX e, em março, o primeiro retirou a obrigação do HHS de tomar qualquer atitude perante a discriminação de pessoas trans em serviços de saúde. Mais tarde, em julho, o presidente anunciou via Twitter que o Governo dos EUA não aceitariam ou permitiriam que indivíduos trans servissem em qualquer instância do serviço militar estadunidense. Em fevereiro de 2018, o Departamento de Educação comunicou que iria recusar sumariamente quaisquer denúncias de exclusão de instituições educacionais baseadas apenas em identidade de gênero. Em maio, o Departamento de Justiça adotou a política ilegal de alocação quase total de pessoas trans em prisões de acordo com o sexo designado ao nascer, e não com sua identidade de gênero declarada. Em junho, o Procurador-Geral Jeff Sessions legislou estabelecendo que o governo não mais reconheceria violência de gangues e violência doméstica como motivo para asilo político, adotando uma interpretação que na prática rejeita a maior parte dos refugiados LGBTI (STINSON, 2018). Essas são apenas algumas dentre muitas outras políticas anti-LGBTI. Fica evidente, dessa forma, que essa população tem sido extensivamente perseguida pelo governo estadunidense, particularmente o segmento trans.
Além das consequências negativas óbvias para as populações LGBTI locais nos EUA, é possível compreender o fenômeno retratado por um escopo mais abrangente, quando se analisa o contexto internacional. Sendo Trump o chefe de Estado da nação que representa o centro do sistema, qualquer política doméstica introduzida por ele nos costuma ser acompanhada de repercussões internacionais. Na Islândia, por exemplo, quatro grupos de direitos LGBTI publicaram um comunicado conjunto em repúdio ao memorando apresentado pelo HHS, condenando o esforço do governo estadunidense de ignorar décadas de consenso científico e tentar apagar a existência de indivíduos trans e intersexuais (ICELANDIC, 2018). Na nota, os representantes dos grupos questionam a política externa dos EUA:
Esta proposta trans e intersexfóbica é particularmente desconcertante à luz da política externa dos Estados Unidos, que inclui o apoio vocal aos direitos LGBTI e a disposição de censurar outras pessoas por violações de direitos humanos. Em novembro de 2017, os Estados Unidos condenaram a violência homofóbica na Chechênia e, em maio passado, no Dia Internacional Contra Homofobia, Transfobia e Bifobia (IDAHOTB), o Secretário de Estado Mike Pompeo afirmou que “os Estados Unidos estão ao redor do mundo afirmando a dignidade e igualdade de todas as pessoas, independentemente de orientação sexual, identidade ou expressão de gênero ou características sexuais.” Essa dissonância demonstra, na melhor das hipóteses, uma falta terrível de políticas definidas sobre os direitos das pessoas LGBTI. Na pior das hipóteses, é evidência de arrogância e hipocrisia.
– María Helga Guðmundsdóttir, Kitty Anderson, Alda Villiljós e Gunnlaugur Bragi, 23 de outubro de 2018 (tradução minha).
Se, por um lado, os representantes dos Estados Unidos tentam promover uma política externa progressista e inclusiva, rechaçando, aliás, a violência LGBTIfóbica na Chechênia, por outra, a comunidade internacional presencia uma aproximação dos chefes de Estado dos EUA e Rússia. Trump tem flertado descaradamente com Vladimir Putin em matérias de política externa, e com ele compartilha muitas características, incluindo a intolerância perante minorias sociais e, mais especificamente, a LGBTIfobia.
Embora haja divergências ideológicas incontestáveis entre EUA e Rússia, ambos os países participam de um movimento global muito mais amplo de rechaço aos direitos LGBTI. Vale lembrar que, na Rússia, até 1999, a homossexualidade era considerada como uma doença mental; mesmo tendo descriminalizado as interações sexuais entre pessoas do mesmo sexo em 1993, a nação ainda não reconhece a união homoafetiva e presencia um aumento das violências LGBTIfóbicas. Em 2013, o Estado russo passou uma lei controversa banindo a suposta corrupção de menores representada pela “propaganda gay”. A intolerância russa em relação à diversidade sexual e de gênero tomou proporções hecatômbicas na Chechênia de Ramzan Kadyrov: ao longo de 2017, um número inestimável de pessoas LGBTI foram presas por agentes do Estado, detidas sem julgamento, torturadas e, em alguns casos, assassinadas. O cantor Zelim Bakaev desapareceu na Chechênia em agosto de 2017 e não foi visto desde então (TATCHELL, 2018). Cabe ressaltar que Kadyrov é um protegido de Putin, que, em última instância, tem autoridade final sobre a Chechênia. Já em 2018, a Rússia foi recorrentemente retratada pela imprensa internacional pela negligência do Estado em relação aos ataques LGBTIfóbicos em plena Copa do Mundo.
Não é apenas no centro do sistema que percebemos a ascensão do conservadorismo intolerante e excludente. A Indonésia, por exemplo, que no passado costumava ser parcialmente tolerante e vinha demonstrando avanços nos direitos LGBTI (ainda que com considerável relutância), recentemente mudou sua postura perante a essa população, num fenômeno resultante de uma mistura tóxica de nacionalismo, populismo de direita e religião extremista (LEGON, 2018). Aplicativos de relacionamento gay foram proibidos; espaços privados foram invadidos (inclusive as residências das pessoas) e dois homens acusados de relações do mesmo sexo foram açoitados em público. Em 2016, o ministro da Defesa da Indonésia, Ryamizard Ryacudu, anunciou que o movimento LGBTI era uma ameaça maior que a guerra nuclear (LEGON, 2018).
Na América Latina, que experiencia a ressaca da Maré Rosa, materializada pelo avanço de governos autoritários e de direita, temos como exemplo recente da onda conservadora a eleição no Brasil de um presidente aberta e orgulhosamente homofóbico. Jair Bolsonaro é recorrentemente comparado a Trump pela imprensa internacional, retratado como uma versão ainda pior do presidente estadunidense. Foi o que escreveu o repórter Will Carless do Washington Post, ao afirmar, dentre adjetivos como “misógino” e “odioso”, que a “versão brasileira de Trump faz o Trump ficar parecido com o Mr. Rogers”, ou seja, um inofensivo comediante infantil. Ele retrata, também, o brutal espancamento da travesti Julyanna Barbosa por um grupo de homens, que gritaram: “Bolsonaro vai ganhar para acabar com os viados, essa gente lixo tem que morrer!” Desde que foi iniciada a jornada eleitoral, a Agência Pública de jornalismo contou ao menos 50 casos de ataques perpetrados por apoiadores de Bolsonaro, incluindo assassinatos (CARLESS, 2018). Ressalta-se que o Brasil já é hoje o país que mais mata pessoas LGBTI e especialmente pessoas trans em todo o mundo (AUN, 2017), isso antes de Bolsonaro tomar posse (o que acontecerá em 1º de janeiro de 2019).
Como bem pondera Carless, os EUA descobriram recentemente que as explosões de ódio de seu chefe de Estado induziram a um aumento abrupto nas estatísticas de crimes de ódio e brigas sangrentas iniciadas por jovens revoltados que tentavam impressionar seu presidente. No Brasil, que registrou um recorde de 64.000 homicídios em 2017, as palavras de Bolsonaro servirão como combustível capaz de aumentar a proporções desastrosas um incêndio que já vinha aumentando há tempos. Essa lição serve a todo o mundo, que passa por um momento de reação conservadora generalizada, tomando forma sob governos autoritários. Não apenas EUA, Rússia, Indonésia e Brasil protagonizam esse fenômeno: o Egito tenta criminalizar a homossexualidade e persegue pessoas LGBTI em aplicativos de relacionamento; na Turquia, Erdogan baniu todos os “eventos gays”; na Nigéria, entrou em vigor o Ato de Proibição da União entre Pessoas do Mesmo Sexo… A lista se estende.
A reação global generalizada se traduz facilmente em LGBTIfobia. No plano doméstico, chefes de Estado inflamam os discursos de ódio e legitimam a violência LGBTIfóbica. Internacionalmente, o ódio contra a população LGBTI é implantado como instrumento para minar os ideais de direitos humanos universais (LEGON, 2018). Trump encabeça essa tendência internacional, como líder de uma das maiores potências mundiais. Como projeção, pode-se esperar a continuidade da onda conservadora ao redor do mundo no futuro próximo, bem como mais retrocessos dos direitos LGBTI. Podemos esperar, ademais, um esforço incansável da ONU de proteger a população LGBTI por meio da iniciativa Livres & Iguais. Sempre houve e sempre haverá resistência por parte das minorias, e a sua organização em militância local já toma forma. Toda onda reacionária é seguida por uma onda progressista, e esta já se organiza em diversos países. É provável que o ativismo já consolidado em países como EUA, Brasil e Rússia – em que a comunidade LGBT é extremamente influente – produza reverberações internacionais.
Referências:
BENNER et. al. ‘Transgender’ Could Be Defined Out of Existence Under Trump Administration. The New York Times. Oct. 21, 2018. Disponível em: <>. Acesso em 28 de out. 2018.
KIDD, Jeremy D. Trump’s Effort to Erase Transgender Rights. The New York Times. Opinion – Letters. Oct. 22, 2018. Disponível em: <>. Acesso em 28 de out. 2018.
MERS, Josh. Reject fear-mongering of transgender people. Lexington Herald Leader. October 23, 2018. Disponível em: <https://www.kentucky.com/opinion/op-ed/article220522790.html>. Acesso em 28 de out. 2018.
STINSON, Bybex. The Discrimination Administration: Trump’s record of action against transgender people. National Center for Transgender Equality. 26 de julho de 2017. Disponível em: <https://transequality.org/the-discrimination-administration>. Acesso em 28 de out. 2018.
ICELANDIC Queer Rights Groups Release Joint Statement On New US Anti-Trans & Intersex Memo. The Reykjavík Grapevine. Published October 24, 2018. Disponível em: <https://grapevine.is/news/2018/10/24/icelandic-queer-rights-groups-release-joint-statement-on-new-us-anti-trans-regulation/>. Acesso em 28 de out. 2018.
AZIZ, Saba. Russia, football World Cup and rising homophobia. Al Jazeera. 18 Jun 2018. Disponível em: <https://www.aljazeera.com/indepth/features/russia-football-world-cup-rising-homophobia-180612165056187.html>. Acesso em 28 de out. 2018.
TATCHELL, Peter. Why I took a stand against Russian homophobia. New Statesman America. 20 JUNE 2018. Disponível em: <https://www.newstatesman.com/world/2018/06/why-i-took-stand-against-russian-homophobia>. Acesso em 28 de out. 2018.
LEGON, Andy. Indonesia is about to give LGBT+ people the worst Valentine’s Day gift ever by making homosexuality illegal. Independent. Wednesday 14 February 2018 11:30. Disponível em: <https://www.independent.co.uk/voices/gay-rights-indonesia-chechnya-worst-valentines-day-gift-a8210146.html>. Acesso em 28 de out. 2018.
CARLESS, Will. Brazil’s version of Trump makes Trump look like Mr. Rogers. The Washington Post. October 26. Disponível em: <https://www.washingtonpost.com/outlook/2018/10/26/brazils-version-trump-makes-trump-look-like-mr-rogers/?noredirect=on&utm_term=.55c27a8a20a2>. Acesso em 28 de out. 2018.
KELLEHER, Patrick. ‘Proud homophobe’ Jair Bolsonaro on course to win Brazillian presidency, according to final polls. Pink News. Disponível em: <https://www.pinknews.co.uk/2018/10/28/jair-bolsonaro-brazillian-presidency/>. Acesso em 28 de out. 2018.