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Por Henrique Motta
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Por Henrique Motta

 

No dia em que o matariam, Jamal Khashoggi preparou-se pela manhã para ir ao consulado saudita em Istambul, Turquia. O jornalista saudita havia visitado o local pela primeira vez no dia 28 de setembro para obter um certificado de divórcio que o permitiria casar com sua noiva turca. Contudo, foi instruído a retornar no dia 2 de outubro por funcionários da repartição. Com muros amarelos altos decorados com arame farpado, o consulado saudita ostenta uma aparência misteriosa. Suas paredes e portões de metal pesado pouco revelam sobre o que ocorre em seu interior. Apesar de não ser muito grande, o sobrado de pintura amarelada possui excêntrica imponência decorrente da impenetrabilidade de suas entranhas, o que o distingue do resto do cosmopolita distrito de Beşiktaş, onde está situado. Naquela terça-feira, dia 2, Khashoggi atravessou os portões do prédio para nunca mais deixá-los com vida. Seu desaparecimento, seguido da confirmação de sua morte, acabaria por desencadear uma crise internacional envolvendo altos escalões do governo saudita, cujos desdobramentos finais, o principal foco desta análise, ainda estão indefinidos.

 

Jamal Khashoggi era um jornalista proeminente. O saudita havia trabalhado na cobertura de eventos históricos, como a invasão soviética no Afeganistão e a consequente popularização da figura de Osama Bin Laden (BBC, 2018). Nascido em Medina, no ano de 1958, Khashoggi vinha de uma família poderosa de origem turca. Seu avô foi médico pessoal do rei Abdulaziz Al Saud, o fundador do reino da Arábia Saudita. Seu tio, Adnan Khashoggi, foi um famoso comerciante de armas que participou do esquema denunciado no escândalo Irã-Contras[1]. Dodi Fayed, empresário egípcio mais conhecido por seu relacionamento com a princesa Diana, era primo de Khashoggi. Sua família possuía bastante influência na política interna da Arábia Saudita, sustentando laços amigáveis com a realeza do país.

 

Embora as relações familiares com a família real fossem boas, as visões de Khashoggi o puseram em problemas dentro da nação árabe. Educado na Universidade de Indiana, trabalhou como correspondente nos EUA para jornais sauditas. Posteriormente, retornou a seu país natal, onde trabalhou em cargos importantes de diversos jornais. Durante sua carreira, o jornalista manifestou opiniões liberais vistas com desgosto pelos membros do alto escalão do governo saudita. Em 2003, Khashoggi foi demitido do jornal Al Watan por permitir que um de seus colunistas criticasse o acadêmico muçulmano Ibn Taymiyyah, o fundador do Wahabismo[2]. Após a demissão, o jornalista auto exilou-se em Londres. Posteriormente, voltou a trabalhar para jornais sauditas, e polêmicas como essa ocorreram múltiplas vezes envolvendo Khashoggi. Em 2016, o saudita foi proibido de aparecer em programas de televisão ou publicar textos após criticar em rede nacional o recém eleito presidente dos EUA, Donald Trump. Após o ocorrido, Jamal Khashoggi mudou-se para os Estados Unidos, onde começou a trabalhar como colunista do pródigo jornal The Washington Post. O jornalista passou a ser figura frequente em programas televisivos americanos e ingleses, sempre manifestando opiniões críticas ao regime saudita. Com mais de dois milhões de seguidores no Twitter, Khashoggi tornou-se uma figura extremamente popular, e acabou por fundar a ONG Democracy for the Arab World Now (DAWN), cujo objetivo é promover a democracia e os direitos humanos nos países árabes.

 

Quando as câmeras de segurança mostraram Khashoggi atravessando os portões do consulado, tudo indicava que em alguns minutos ele seria mostrado fazendo o caminho inverso. Contudo, horas mais tarde ainda não havia sinal do jornalista. Sua noiva contatou a polícia turca e uma investigação foi iniciada.

 

Inicialmente os sauditas defendiam que Jamal Khashoggi havia deixado o prédio pela porta por onde entrou, mas as imagens das câmeras de segurança logo desmentiram essa versão. No dia 7 de outubro, o governo turco alegou ter evidências de que Khashoggi havia sido assassinado dentro do consulado. Posteriormente, no dia 10, a Turquia clamou ter vídeos e áudios que comprovavam o assassinato do jornalista dentro do prédio. Em seguida, o governo saudita admitiu a responsabilidade pela morte de Khashoggi, argumentando que o ocorrido seria consequência de um interrogatório que saiu do controle. Entretanto, novas evidências que apontavam que o jornalista foi torturado e morto foram descobertas (CNN, 2018). Detalhes sórdidos da morte do saudita foram revelados, e tudo indica que seu assassinato foi premeditado. No intervalo entre a primeira visita de Khashoggi ao consulado e sua segunda, uma equipe de 15 homens sauditas viajou à Turquia, estando entre eles especialistas forenses. Há evidências fortes que apontam para o envolvimento de Mohammed Bin Salman (MBS), o príncipe de maior importância no reino árabe, na morte de Khashoggi, mas oficiais sauditas continuam a negar que tenha havido qualquer envolvimento de membros da família real no caso. No dia 22 de outubro, a Reuters publicou matéria afirmando que Saud Al-Qahtani e Ahmed Asiri, oficiais sauditas e conselheiros de MBS fizeram uma ligação por Skype para o consulado enquanto o jornalista era torturado. As fontes do jornal, oficiais de inteligência sauditas e turcos, afirmam que os dois homens deram a ordem para que Khashoggi fosse morto, o que deixa bastante claro o alto grau de possibilidade do envolvimento de MBS no ocorrido.

 

O governo Turco tem adotado uma posição mais ríspida sobre o incidente. Recep Tayyip Erdogan, presidente do país, defende a tese de que MBS estava envolvido no crime e tem compartilhado evidências e relatórios com outros países, trabalhando para que a comunidade internacional continue a exercer pressão sobre a Arábia Saudita (BBC, 2018). Os turcos possuem uma acirrada rivalidade política com os sauditas. Em outubro de 2014, os árabes defenderam de forma bem-sucedida a não aceitação da candidatura turca para um assento não-permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU). Ademais, em 2017, Erdogan defendeu de forma ávida o Catar na crise diplomática[3] do país com os sauditas. O governo turco tem adotado uma agenda internacional apelidada como “neo-otomana” (BBC, 2018), sendo caracterizada por um expansionismo dos interesses do país sobre as nações do Oriente Médio. É possível que Erdogan tente utilizar o assassinato de Khashoggi para obter vantagens políticas sobre a Arábia Saudita.

 

As reações de outras nações sobre o caso foram variadas. Alemanha, Canadá, Dinamarca e Noruega congelaram vendas de armas para o governo saudita. Os mandatários de tais países condenaram o assassinato, tomando tal decisão concomitantemente. No comércio de armas, os sauditas não representam uma parcela significativa das exportações do grupo (TRADEMAP), o que não torna a medida custosa para essas nações. Contudo, para os árabes os custos serão grandes, pois a Arábia Saudita atualmente conduz uma intervenção militar na Guerra Civil do Iêmen. Tal congelamento certamente afetará as atividades militares do país, minando suas ações em território iemenita. Outros países, como a Espanha, apesar de o acontecido e exigirem mais explicações, não congelaram as vendas de armas por medo de enfraquecerem sua indústria nacional  (EL PAÍS, 2018). Muitos países, como Malásia e Paquistão, também preferiram não adotar posições mais ríspidas contra o governo saudita, priorizando seus interesses comerciais devido à importância do país no mercado do petróleo.

 

Já os Estados Unidos, de Donald Trump, manifestaram-se repudiando o assassinato, mas claramente demonstraram inclinação a apoiar o governo saudita, aliado do país. O secretário de estado, Mike Pompeo, declarou que os americanos estão dispostos a apoiar os árabes na investigação. Ademais, após uma conversa telefônica com o Rei Salman, líder do governo saudita, Trump disse estar convencido de que a família real não teve envolvimento no crime e que os assassinos agiram de forma rebelde, pois a negação do Rei ao ser questionado pelo mandatário americano foi muito “forte”, segundo sua declaração. Na esfera interna, a questão dividiu os senadores e congressistas do país. Figuras importantes no senado, como Rand Paul e Bernie Sanders, defendem que os EUA mudem suas relações com o reino árabe. Tais políticos advogam pelo bloqueio de vendas de armas ao país e a aplicação de outras sanções econômicas. É provável que a administração Trump mantenha sua posição e continue ao lado dos sauditas, mas no dia 12 de dezembro, o senado americano aprovou uma resolução em que considera MBS como principal mandante do crime, interrompendo a ajuda militar americana à intervenção saudita no Iêmen.

 

A situação é um verdadeiro laboratório para os que se aventuram pelas teorias das relações internacionais. Pressupostos realistas, construtivistas e liberais estão sendo postos à prova, e a tendência é que os próximos desenvolvimentos permitam conclusões interessantes no campo teórico. Até o momento, está bastante claro que MBS teve envolvimento na morte de Jamal Khashoggi, embora ainda não seja possível dar um veredito definitivo. Contudo, as ações e manifestações da comunidade internacional foram brandas até agora. Muitos países, entre eles os EUA, relativizam seus princípios e valores quando seus interesses comerciais e estratégicos estão em jogo. Tal postura dá carta branca para que o governo saudita, uma das ditaduras mais brutais do mundo, continue a realizar atrocidades, como a ação militar injustificada do país no Iêmen e agora, o assassinato de Jamal Khashoggi. A morte do jornalista não foi uma exceção, mas sim a continuidade de um hábito. O assassinato, tortura e humilhação são o tratamento comum para os opositores do governo saudita, o que torna a história de Khashoggi uma “crônica de uma morte anunciada”. Talvez, com novas informações sendo divulgadas, a postura internacional torne-se mais ríspida. Mas por enquanto, o regime saudita continua impenetrável e as barreiras aos que tentam se opor a ele são altas, imponentes e repletas de arame farpado, como os muros que cercam o consulado do país em Beşiktaş.

 

[1] O Caso Irã-Contras foi um escândalo político nos Estados Unidos revelado pela mídia em novembro de 1986, durante o segundo mandato do presidente Ronald Reagan, no qual figuras chave da CIA facilitaram o tráfico de armas para o Irã, que estava sujeito a um embargo internacional de armamento, para assegurar a libertação de reféns e para financiar os Contras nicaraguenses.

[2] Wahabismo é um movimento do islamismo sunita,  geralmente descrito como “ortodoxo”, “ultraconservador”,”extremista”, “austero”, “fundamentalista” e “puritano”.Seu principal objetivo é restaurar o “culto monoteísta puro”. Seus seguidores muitas vezes opõem-se ao termo wahhabismo por considerá-lo pejorativo, preferindo ser chamados de salafistas ou muwahhid.

[3] A Crise diplomática no Catar em 2017 refere-se à ruptura iniciada no dia 5 de junho de 2017 entre esse país e diversas nações muçulmanas — entre as quais encontram-se a Arábia Saudita, Bahrein, Egito, Emirados Árabes Unidos, Líbia, Maldivas e Iêmen —, que anunciaram a suspensão das relações diplomáticas com o Catar, acusando o país de apoiar vários grupos terroristas na região, incluindo a Al Qaeda e o Daesh, e interferir com a política interna de seus países.Segundo apontam alguns meios de comunicação, a origem da crise seria encontrada em um ataque informático que ocorreu em maio do mesmo ano contra a Qatar News Agency.

 

Referências bibliográficas

BBC. Jamal Khashoggi: All you need to know about Saudi journalist’s death. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-europe-45812399&gt;. Acesso em: 17 dez. 2018.

______. Jamal Khashoggi murder: What is Turkey’s game with Saudi Arabia? Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-europe-45963642&gt;. Acesso em: 17 dez. 2018.

CNN. Khashoggi’s last words disclosed in transcript, source says. 2018. Disponível em: <https://edition.cnn.com/2018/12/09/middleeast/jamal-khashoggi-last-words-intl/index.html&gt;. Acesso em: 17 dez. 2018.

Trade Map: Trade statistics for international business development. Disponível em: <https://www.trademap.org/Index.aspx&gt;. Acesso em: 17 dez. 2018.

EL PAÍS. Spain not stopping arms sales to Saudi Arabia over Khashoggi killing. Disponível em: <https://elpais.com/elpais/2018/10/22/inenglish/1540192063_943808.html&gt;. Acesso em: 17 dez. 2018.