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por Daniel Cunha Rego

 

polska sercem europy

 

Enquanto o noticiário internacional concentrava-se nas reviravoltas do Brexit e na briga entre governo e parlamento no Reino Unido, ocorreram, em 13 de outubro, eleições legislativas num importante Estado-membro da União Europeia na região central do Continente: a Polônia. E não eram quaisquer eleições: em 2015, o direitista PiS (Prawo i Sprawiedliwość, ou Lei e Justiça) retirou do poder o centrista PO (Platforma Obywatelska, ou Plataforma Cívica), ganhando 235 dos 460 assentos do Sejm (câmara baixa do parlamento polonês), agora seria a hora de mostrar os efeitos de 4 anos de governo. O partido ganhou, em 2019, os mesmos 235 assentos, mas assume o governo em um ambiente político bastante distinto, interna e externamente, enfrentando diversos desafios para a consolidação de seu poder.

 

Apesar da expressiva presença no Sejm, o PiS ficou a 3 assentos de formar maioria no Senado que, apesar de não ter poder para vetar legislação aprovada na câmara baixa, pode atrasar sua tramitação, bem como bloquear emendas constitucionais. Além disso, a esquerda, que havia ficado inteiramente de fora da última legislatura, conseguiu 49 assentos no Sejm sob a coalizão Lewica (A Esquerda), com destaque para o recém-fundado Wisona (Primavera) que, com 19 parlamentares, representa uma reação feminista e pró-LGBTQ a um governo nacionalista e ultraconservador. 

 

Antecedentes: Crise constitucional, revisionismo e crescimento econômico
Em 2015, ano das eleições legislativas anteriores, a Polônia  passou por uma crise jurídica além das disputas políticas. Pouco antes das eleições, o Parlamento ainda controlado pelo centrista PO elegeu de forma controversa 5 dos 15 juízes da Corte Constitucional, que não foram nomeados pelo Presidente Andrzej Duda [1]. Após a vitória do PiS e da formação de uma nova maioria no parlamento, outros 5 juízes foram eleitos e foi aprovada uma emenda que mudava a estrutura da Corte, exigindo, por exemplo, maioria de ⅔ para as decisões e o prazo mínimo de 6 meses, na prática paralisando-a. A emenda foi posteriormente declarada inconstitucional pela própria Corte, porém o governo recusou-se a publicar a decisão sob a alegação de que os novos procedimentos trazidos pela emenda não foram usados na decisão. A crise, evidentemente, não foi bem recebida em Bruxelas, tendo a Comissão Europeia iniciado procedimentos contra a Polônia por quebra da rule of law em uma disputa que se estende até hoje [2].

 

A reação da UE às medidas do governo polonês fortaleceram o chamado discurso “eurocético mole” do partido [3], apesar de não haver uma real possibilidade de um Polexit: o país, com uma economia exportadora, se beneficia enormemente do mercado comum e recebe ainda vultosos investimentos que em grande medida permitem seu crescimento a taxas que chegaram a 5,1% em 2018, além de financiar um salto na infraestrutura e os programas sociais do governo, como o Rodzina (Família) 500+, uma espécie de “bolsa família” lançado em 2016 que paga 500 złotych (cerca de 500 reais) a cada filho a partir do segundo, até que complete 18 anos [4].

 

A posição enfática contra a política imigratória de Bruxelas frente a crise de refugiados na Europa foi um dos fatores que levou à ascensão do PiS num dos países mais etnicamente homogêneos do continente [5]. Ideias conservadoras também encontram eco na população mais católica da Europa [6] , como a enfática oposição ao casamento de pessoas do mesmo sexo e tentativas de retrocesso em relação aos direitos reprodutivos [7]. A relação do regime com a Igreja escancarou-se com a detenção em maio da ativista Elżbieta Podleśna, que espalhou cartazes com uma imagem da Virgem Maria portando um arco-íris no lugar da auréola, apoiada publicamente pelo ministro do interior Joachim Brudziński.

 

liberte ela

 

Entre outras medidas controversas levadas a cabo pelo governo está uma guerra de narrativas históricas que vai desde a história recente pós-comunista até a relação da Polônia ocupada com o Terceiro Reich [8]. A expressão “campos de concentração poloneses”, por exemplo, foi proibida de ser utilizada em publicações no país num esforço para negar o colaboracionismo local. A liberdade de imprensa também sofre danos: segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras [9], o Estado transformou a imprensa pública em “porta-voz da propaganda estatal” e promove uma campanha de perseguição judicial a jornalistas e veículos opositores, como o diário Gazeta Wyborcza. Além disso, o discurso de ódio fomentado pelo governo é apontado como uma das causas do assassinato do prefeito liberal da cidade portuária de Gdańsk,Paweł Adamowicz, em janeiro.

 

O que a Polônia significa (hoje) para a Europa?

A Polônia aderiu à União Europeia no alargamento de 2004, junto com, dentre outros, Hungria, República Tcheca e Eslováquia. Esses quatro países formam uma aliança chamada Grupo de Visegrád, ou V4, que tenta coordenar atuações em política externa e permitiu que entrassem todos na UE ao mesmo tempo. Uma das instâncias de disputa mais ferrenhas do grupo contra a hegemonia franco-alemã na União se deu durante a crise de refugiados, quando os quatro países decidiram não aceitar o sistema de cotas para solicitantes de asilo. Segundo o EU Observer, isso foi encarado por Bruxelas como uma “rebelião” [10].

 

Num cenário pós-Brexit, o V4 tende a ganhar influência na UE, contrabalanceando a aliança franco-alemã e adotando uma instância mais forte pelos estados centrais. Além disso, os V4 estão nas fronteiras externas da União e do Espaço de Schengen, tendo importância estratégica tanto para alargamentos futuros quanto para a definição das políticas fronteiriças do bloco [11]. O grupo, entretanto, não é tão coeso e dois polos distintos se percebe em: Polônia e Hungria adotam posições mais nacionalistas e radicais, questionando mais veementemente as políticas do bloco, enquanto República Checa e Eslováquia tendem a ser mais moderados, tendo a segunda inclusive adotado o Euro, recusado enfaticamente pela Polônia para um futuro próximo.

 

O grupo também tende a se posicionar no permanente debate entre uma “Europa Federal” ou uma “Europa de Nações” do segundo lado. Mesmo assim, imperativos econômicos vem aproximando a Polônia (maior e mais poderoso dos V4) da Alemanha, com quem sua indústria tem importantes laços. Em 2019, inclusive, a Polônia tornou-se um parceiro comercial mais importante para a Alemanha que o próprio Reino Unido [12], que enfrenta mudanças em sua relação com o mercado comum na iminência de sua saída da UE.

 

O que podemos esperar?

A aproximação com a Alemanha, entretanto, não é suficiente para que a Polônia ocupe um lugar de destaque na União Europeia. O país é ainda resistente à adoção do Euro, temendo um aumento repentino do custo de vida e a perda da vantagem cambial nas exportações, que respondem por cerca de ⅓ do PIB. Além disso, a indisposição com Bruxelas pelas reformas judiciais e pela deterioração do espaço democrático são entraves a possíveis pretensões de liderança e constituem uma barreira de legitimidade para a atuação europeia do país. É preocupante a sintonia do regime polonês com o húngaro comandado por Viktor Obran e com suas propostas declaradas de democracia iliberal e guerra demográfica.

 

A eleição polonesa envia sinais mistos para o futuro do país e do continente. Ao mesmo tempo que o discurso nacionalista vence mais uma vez, o governo se vê acuado pelo espaço adquirido pela oposição tanto nas ruas quanto no parlamento. Além disso, pesquisas para a eleição presidencial de 2020 apontam que a disputa não será fácil para o PiS, com chances reais de ser derrotado, o que dificultaria a continuação do aparelhamento das instituições pelo partido.

 

Varsóvia corre o risco de não ter seu tamanho e importância econômica espelhados em influência em Bruxelas e vem sofrendo pressões para moderação. Como no slogan Polska sercem Europy (A Polônia é o coração da Europa) do PiS para as eleições europeias de maio, uma Europa pós-Brexit precisa voltar seus esforços para o aprofundamento da integração continental, e a Polônia é um ator essencial que tem capacidade de ligar o Ocidente com o Oriente. Resta que assuma seu papel.

 

Notas

[1]

Vale pontuar que a Polônia é uma república semipresidencialista, com um Presidente como chefe de Estado eleito diretamente a cada 5 anos e um Primeiro Ministro como chefe de governo. Andrzej Duda foi eleito em maio de 2015, portanto antes das eleições legislativas, em outubro. As próximas eleições presidenciais serão realizadas em 2020.

[2]

Pouco antes da eleição, a Comissão Europeia iniciou um terceiro procedimento contra a Polônia na Corte Europeia de Justiça contra as reformas judiciais no país, que podem acionar a cláusula democrática dos tratados europeus.

[3]

 Usa-se muito o artefato discursivo de que a União Europeia vê a Polônia como o “outro”, ou menos importante, que uma certa elite cleptocrata de Bruxelas tenta impor ao país medidas abusivas. Entretanto, uma pesquisa publicada em maio de 2019 pela CBOS (fundação pública de pesquisas) indica que 91% dos poloneses apoiam a permanência no bloco. 

[4]

O programa, seguindo a ideologia do PiS, tem um duplo propósito: seu objetivo declarado, além de diminuir a pobreza, é estimular as famílias polonesas a terem mais filhos em resposta tanto à diminuição das taxas de fertilidade no país quanto ao que o governo percebe como uma espécie de “guerra demográfica” para barrar a entrada de migrantes, especialmente os não-eslavos.

[5]

Segundo dados de 2011, quase 98% da população se declara etnicamente polonesa.

[6]

 Cerca de 85% da população se declarou católica em 2011.

[7]

O governo, com apoio dos setores conservadores, vem promovendo uma ofensiva não só contra o aborto, que já é bastante restrito no país, como também contra o acesso a métodos contraceptivos (incluindo pílulas anticoncepcionais, que precisam de receita médica), educação sexual e até fertilização in vitro.

[8]

Para uma análise sobre as dimensões do conflito de narrativas históricas, ver MANZINI (2017).

[9]

Verificar website do Repórteres Sem Fronteiras (2019).

[10]

 Ver ZALAN (2016).

[11]

Esse fato adquire especial relevância porque aos poucos volta-se a falar do projeto de um “exército europeu” após a saída do Reino Unido, forte opositor da proposta. Ainda que a Polônia tenda a rejeitá-lo, a pressão do expansionismo russo na Ucrânia e o enfraquecimento da OTAN, que é questionada pelo governo dos Estados Unidos e enfrenta uma crise na Turquia, pode persuadi-la a considerar a proposta.

[12]

Ver PRZYBYLSKI (2019).

 

Referências

BROZKOWSKI, Roman. Under Attack: Reproductive Rights in Poland. Political Critique, 10 out. 2019. http://politicalcritique.org/cee/poland/2019/under-attack-reproductive-rights-in-poland/

CIENSKI, Jan. EU launches another infringement case against Poland. Politico, 10 out. 2019. https://www.politico.eu/article/eu-launches-another-infringement-case-against-poland/

MAZZINI, Mateusz.  A three-dimensional conflict over Poland’s collective memory. Respublica. 30 nov. 2017. https://publica.pl/teksty/mazzini-a-three-dimensional-conflict-over-polands-collective-memory-62724.htm

PRZYBYLSKI, Wojciech. Poland’s new post-Brexit BFF: Germany. Politico, 8 out. 2019. https://www.politico.eu/article/poland-brexit-bff-germany/

REPÓRTERES SEM FRONTEIRAS. consultado em 30 out. 2019.  https://rsf.org/en/poland

ZALAN, Eszter. The rise and shine of Visegrad. EU Observer, 30 dez. 2016. https://euobserver.com/europe-in-review/136044

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