O fracasso da Conferência de Paz na Suíça sob a ótica do conceito de peacebuilding
Maria Fernanda Pimentel
Introdução
No dia 15 de junho de 2024, líderes mundiais se reuniram em cúpula sediada na Suíça com o objetivo de discutir e traçar possíveis acordos de paz no que tange o conflito entre Rússia e Ucrânia. Apesar da adesão volumosa de países, contabilizados em mais de 90 convidados presentes, a iniciativa promovida pelo presidente ucraniano Volodymyr Zelensky sofreu com o desfalque de importantes figuras internacionais, como a República Popular da China e o Brasil (CNN Brasil, 2024c). Neste contexto, a justificativa dos ausentes pautou-se no fato de que Vladimir Putin, presidente russo, não foi convidado a comparecer, o que esvaziaria o sentido da realização de uma conferência, visto que acordos de paz apenas são ratificados em situações onde existe consenso entre as partes envolvidas, como ressaltado na fala de Mao Ning, porta-voz chinesa:
“A China sempre insistiu que uma conferência internacional de paz deveria ser apoiada tanto pela Rússia como pela Ucrânia, com a participação igual de todas as partes, e que todas as propostas de paz deveriam ser discutidas de forma justa e igualitária. Caso contrário, será difícil para ela desempenhar um papel substantivo na restauração da paz.” (Chen; Lee, 2024).
Como consequência do encontro, foi formulada uma declaração que ressalta a importância da integridade territorial ucraniana e que contou com a assinatura da maioria dos presentes, com exceção de países como Arábia Saudita, Índia, África do Sul, Tailândia, Indonésia, México e Emirados Árabes Unidos (CNN Brasil, 2024b). Além disso, os Estados Unidos, representado pela vice-presidente Kamala Harris, aproveitou a oportunidade para anunciar a concessão de um pacote de 1,5 bilhões de dólares em energia e ajuda humanitária à Ucrânia, o que trouxe ao encontro um clima de otimismo (FDFA, 2024).
Em contraponto, é válido questionar o real impacto da conferência na resolução do conflito em questão, visto que tentativas relacionadas a embargos comerciais, relatórios do Tribunal Penal Internacional e outros encontros previamente realizados se mostraram ineficientes. Com o objetivo de refletir sobre tal conjuntura, esta análise faz uso de uma revisão bibliográfica aplicada ao conceito de peacebuilding na tentativa de embasar a afirmação midiática de que a Conferência de Paz na Suíça foi, portanto, um fracasso na construção de um acordo que norteia o fim da guerra.
Os conceitos de paz e a aplicabilidade do peacebuilding
A princípio, o conceito de peacebuilding foi elaborado sobre três pressupostos básicos que norteiam as operações de paz, sendo eles o consentimento das partes, a imparcialidade, e o não uso da força, salvo exceções de legítima defesa (United Nations, 2015). Entretanto, no período em que foi proposto, o significado de paz era atrelado exclusivamente à ausência de conflitos bélicos, o que se limitava à chamada paz negativa, onde se considera exclusivamente a violência direta (Galtung, 1969). Em seguida, após a Guerra-Fria, a Organização das Nações Unidas ampliou a perspectiva que engloba a paz, além de intensificar sua atuação no cenário internacional: de acordo com dados disponibilizados pela ONU, entre 1989 e 1994 houve o estabelecimento de 20 novas operações de peacekeeping e o aumento de 11 mil para 75 mil peacekeepers (Organização das Nações Unidas, 2014b). Tal atividade constitui o uso de forças militares internacionais, geralmente autorizado pelo Conselho de Segurança da ONU, com o objetivo de manter ou restabelecer a paz em áreas de conflito (United Nations Peacekeeping, 2015), e seu conceito é complementar ao de peacebuilding visto que promove a estabilização do ambiente para que, em seguida, seja possível tratar das problemáticas internas do conflito, aplicando os princípios norteadores.
Apesar de dividir opiniões, a intensificação das atividades mencionadas colaborou para a construção da ideia de paz positiva relatada na obra de Blanco (2014). O novo significado de paz representa um conceito multidimensional, abarcando não apenas o campo civil-militar, como também o social, político, econômico e territorial, ou seja, nessa perspectiva a conjuntura é analisada de modo a diagnosticar ações intrínsecas capazes de influenciar positivamente na manutenção do status pacífico a longo prazo. Uma justificativa para essa mudança de perspectiva seria o estabelecimento de um território fértil para debates acerca da temática, visto que a iminência de um conflito nuclear no contexto da Guerra-Fria incitava especulações sobre a multidimensionalidade capaz de influenciar na estabilidade de um país (Kemer; et al 2016).
Nesta análise, apesar da Rússia e da Ucrânia protagonizarem um conflito direto, será considerado o conceito de paz do ponto de vista positivo, uma vez que esta pode ser encarada como duradoura e preventiva na ocorrência de novas hostilidades. Assim, analisando o processo de peacebuilding sob essa ótica, é possível presumir que sua implementação, comumente realizada através do peacekeeping, deve considerar os fatores multidimensionais de modo a elevar seus critérios de análise e proposta de soluções, a exemplo de uma possível válvula de escape na guerra mencionada. Após revisão bibliográfica, a inclusão de oito pressupostos se revelou essencial ao sucesso das possíveis propostas, pressupostos estes que serão abordados a seguir.
Avaliado com maior peso para a temática em questão, o consentimento entre as partes é relembrado por meio da necessária inclusão de todos os agentes interessados, visto que um acordo de paz eficaz só é alcançado através da participação de todos aqueles envolvidos no conflito (Nilsson, 2012). Além disso, de modo a criar um ambiente seguro para a implementação do acordo, é válido pontuar a urgência de inclusão de uma cláusula que trate sobre o desarmamento e a desmobilização das forças combatentes (Doyle, M. W.; Sambanis, N. 2006). Ademais, são necessárias medidas para a reintegração de combatentes (Knight, M.; Özerdem, A. 2004), o estabelecimento de instituições democráticas (Paris, R.; Sisk, T. D. 2009) e estratégias de desenvolvimento socioeconômico (Collier, P. 2007). Por fim, os princípios do peacebuilding incluem a justiça de transição, de modo a reparar crimes cometidos e promover a reconciliação, além da proteção dos direitos humanos e o monitoramento das ações tomadas e firmadas em consenso (Walter, F. 2002).
Diante do exposto, é possível afirmar que quaisquer tentativas de acordo entre Rússia e Ucrânia que fujam dos principais pontos descritos possuem uma probabilidade maior de fracasso, como apontado no estudo de Nilsson (2012) acerca da participação dos atores relevantes e sua relação direta com a durabilidade do acordo.
A Conferência de Paz
Como descrito na seção introdutória, a Conferência não contou com a participação de Vladimir Putin, que sequer foi convidado a comparecer. De acordo com Volodymyr Zelensky, em fala direcionada à comitiva de imprensa, o representante russo não está preparado para dialogar em prol de um acordo de paz, visto que apresentou termos que subjugam o território ucraniano e representam exclusivamente os interesses da Rússia. As três principais exigências, apresentadas em reunião com funcionários do Ministério das Relações Exteriores do país, incluíam a retirada total das tropas ucranianas das regiões de Donetsk, Luhansk, Kherson e Zaporizhzhia, sendo os dois primeiros territórios separatistas reconhecidos pelos russos como "Estados independentes" e a região de Zaporizhzhia como palco de importantes instalações nucleares. Além disso, Putin demanda uma promessa de renúncia oficial da Ucrânia no que tange suas pretensões de adesão à OTAN e a adoção de um status neutro diante de ideologias e questões de proliferação nuclear (The Moscow Times, 2024).
Ao considerar a necessidade de proteção da integridade territorial ucraniana diante das exigências russas no que tange a possibilidade de um acordo, a Conferência de Paz sediada na Suíça tinha por objetivo discutir possíveis alternativas para iniciar negociações visando o fim do conflito, além de demandar o retorno de prisioneiros de guerra e das crianças ucranianas que, de acordo com denúncia ao Tribunal Penal Internacional, foram levadas para o território russo e disponibilizadas para adoção (O Globo, 2024). Entretanto, apesar do documento oriundo dos dois dias de reunião apresentar as reivindicações da Ucrânia, este não conta com um plano concreto de estabilização dos territórios, demonstrando sua fragilidade no que tange a resolução de conflitos. Conforme a aplicação do conceito de paz positiva aos princípios do peacebuilding, o acordo não pode ser alcançado da maneira como vem sendo pensado, visto que além de excluir um agente primordial, não inclui propostas estruturais passíveis de execução, pecando em todos os pressupostos conceituais mencionados na seção anterior.
Diante do exposto, questiona-se a existência de algum efeito prático oriundo do encontro realizado. Analisando a repercussão midiática, fica claro que a Conferência firmou-se principalmente como uma demonstração do compromisso político dos aliados de Zelensky com a garantia da soberania do país (O Globo, 2024), mas tal iniciativa não passa de uma representatividade que evidencia esse apoio coletivo e que, apesar de benéfico, não apresenta um histórico positivo quando direcionado à Rússia (New Statesman, 2024). No que tange a ajuda humanitária concedida pelos Estados Unidos, esta se caracteriza como essencial à realidade ucraniana e pode ser vista como um ponto positivo na temática abordada. Entretanto, o pacote foi negociado previamente à realização da Conferência, não cabendo a ela nenhum crédito quanto a sua liberação.
Além disso, considerando a fala de Zelensky durante o evento onde foi ressaltado que a proposta apresentada para acabar com a guerra seria submetida à Rússia após endosso por parte das nações signatárias, é perceptível a presença de uma tentativa de imposição unilateral dos termos que deveriam ser negociados, ferindo novamente princípios básicos de negociações de paz. Por fim, o presidente ucraniano também enfatizou que uma segunda Cúpula de Paz apenas aconteceria mediante o acato das condições propostas, o que descarta a possibilidade de um consenso a curto prazo visto que a Rússia rejeitou previamente tais termos em ocasiões passadas (CNN Brasil, 2024b).
Considerações Finais
Em conclusão, esta análise pontua que a afirmação midiática que atesta o fracasso da Conferência de Paz sediada na Suíça possui embasamento teórico, visto que esta não cumpriu com seu objetivo principal ao descartar a metodologia proposta pelos princípios do conceito de peacebuilding. Assim, o presidente ucraniano não conseguiu elaborar um plano de paz factível, além de negligenciar a participação russa no processo, esvaziando o sentido de uma Conferência. Ademais, é importante pontuar a inexistência de um consenso entre os convidados presentes (CNN Brasil, 2024b), um fato que demonstra a dualidade do conflito não apenas entre os agentes principais como também na comunidade internacional.
No que tange a formulação de um acordo promissor, a complexidade das hostilidades implica a necessidade de um estudo multidimensional, este refletido no conceito de paz positiva dentro do peacebuilding. Não é possível afirmar que tal metodologia seja capaz de solucionar as questões em pauta, mas a sua capacidade de formular propostas com maiores chances de sucesso é um fato, e negligenciar princípios básicos como a participação dos agentes protagonistas não é um caminho sensato.
Referências Bibliográficas
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