MENU



PET-REL

Costurando Injustiças: Fast Fashion e Neocolonialismo na África

por Natalia Grass

 

 

Introdução 

A moda representa um componente essencial da cultura global, influenciando estilos de vida, identidades e hábitos de consumo. Nos últimos anos, o surgimento do fast fashion revolucionou a indústria, tornando a moda acessível e dinamizando as tendências de consumo. Empresas como Shein, Zara e H & M transformaram a maneira como as pessoas compram roupas, promovendo um ciclo de consumo frequente e descartável. No entanto, essa democratização da moda esconde um custo elevado, refletido em questões de exploração laboral e impactos ambientais severos.

O fast fashion não só aumenta a pegada de carbono da indústria têxtil, mas também perpetua práticas econômicas exploratórias em países do Sul global. A produção rápida e em grande escala utiliza materiais sintéticos que demoram séculos para se decompor, contribuindo significativamente para a poluição global. Além disso, a dependência de mão de obra barata em condições precárias nos países do Sul Global, especialmente na África, levanta questões sobre neocolonialismo e exploração econômica. Essa análise pretende explorar os impactos ambientais e sociais do fast fashion, com ênfase nas práticas colonialistas em países africanos, bem como discutir estratégias para promover sustentabilidade e justiça econômica nesse contexto.

 

O advento do fast fashion

O termo "fast fashion" surgiu como movimento e conceito em 1989, em um artigo do The New York Times, que descrevia a inauguração de uma loja da Zara nos Estados Unidos. Em sua gênese, o termo significava uma abordagem que abrangia desde a criação e desenvolvimento das peças até a etapa de marketing, com ênfase em tendências de moda rápidas e baratas para os consumidores (Williams, 2022). Outro fato relevante é que, na maioria das vezes, as roupas produzidas são cópias de itens de marcas de luxo, usadas por celebridades e “influenciadores digitais”.

O cronograma de produção dessas empresas, como Shein, Zara e outras marcas populares, pode ser extremamente rápido, chegando a três dias do design até a produção (CNN, 2023). Esse processo acelerado, além de causar problemas ambientais, perpetua a precariedade na vida de muitos trabalhadores. O modelo de produção rápida foi influenciado, sobretudo, pelo Progressive Bundle System (PBS), que remonta ao período da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e consiste em uma produção extremamente especializada e eficiente, com técnicas superiores às aplicadas às cadeias de suprimento tradicionais (Williams, 2022).

De acordo com o relatório Broken Record, produzido pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente em 2023, 10% das emissões globais anuais de carbono foram causadas pela indústria da moda, além do dispêndio de cerca de 1,5 trilhão de litros de água anualmente (UNEP, 2023). Além disso, o documento ressalta que, desde 2000, a produção de vestuário dobrou, com a ampliação do uso de tecidos sintéticos como o poliéster, produzido a partir de petróleo e que pode levar até 200 anos para se decompor. Ou seja, além das pessoas estarem consumindo mais devido à acessibilidade e aos preços mais baixos, as roupas duram mais no meio ambiente, pois são feitas de materiais de difícil decomposição, sobretudo de sintéticos.

No que concerne aos perfis de consumidor, é frugal a observação dos perfis dos indivíduos que consomem as roupas desse modo de produção. De acordo com Williams (2022), o consumo mitiga o fenômeno do classismo, crença na qual a posição econômica ou social de um indivíduo determina o seu valor e posição ocupada na sociedade. As empresas de fast fashion auxiliaram no alívio dos efeitos desse fenômeno, ao possibilitar o acesso e aquisição de roupas que antes eram feitas somente para pessoas ricas, principalmente em países de menor renda. 

 

Neocolonialismo disfarçado de doação 

O fenômeno do offshore é outro aspecto que foi naturalizado com o avanço das produções do fast fashion. Uma vez que, embora grande parte das coleções seja projetada nos Estados Unidos ou Europa, a sua produção se dá em braços das empresas em países do Sul global, especialmente na Ásia e África. Um fator de flagrante relevância é o descarte da água utilizada na produção das peças, pois os resíduos seguem para os córregos de água doce poluindo os animais e pessoas que pescam e vivem próximas aos mesmos (Davis, 2020).

Para a manutenção desse sistema de produção é essencial, ainda, o uso não só de materiais, como também de mão de obra barata. O sistema emprega cerca de 75 milhões de trabalhadores ao redor do mundo, sendo que somente cerca de 2% desses recebem um salário digno (CNN, 2023). O modelo perpetua, portanto, mais um nível de agravo social: o de capital humano, devido à precarização do trabalhador, em conjunto com uma menor  qualidade vida. Uma funcionária de vestuário afirmou que ganhava apenas US$23,70 por mês, enquanto um trabalhador médio no Bangladesh recebe US$38 por mês (Williams, 2022). 

As empresas objetivam ampliar seu lucro e geralmente estabelecem suas fábricas, ou filiais de produção, em países como Índia, Paquistão e Bangladesh. Além de se aproveitar da falta de legislação em alguns desses países, também dão péssimas condições aos trabalhos, perpetuando a exploração infantil nessas fábricas (CNN, 2023). Embora os países de baixa renda tenham passado por uma rápida industrialização, os benefícios não foram distribuídos equitativamente entre as classes trabalhadoras. Em vez de promover o desenvolvimento socioeconômico holístico, a industrialização nestas regiões conduziu a condições de trabalho precárias, salários baixos, acesso inadequado aos serviços públicos e condições de vida globalmente precárias. Isso exacerbou as desigualdades de rendimentos e arraigou a pobreza entre os trabalhadores. 

Em países como a Índia e a Etiópia, os trabalhadores das fábricas vivem frequentemente em bairros degradados com condições deploráveis, e esta disparidade socioeconômica é ignorada pelas marcas globais que beneficiam estes mercados de trabalho. A pandemia da COVID-19 expôs ainda mais a vulnerabilidade destes trabalhadores, uma vez que muitos ficaram desempregados e sem apoio, realçando a falta de segurança social e econômica nestes sectores. O fracasso em elevar a classe trabalhadora levanta sérias preocupações sobre a sustentabilidade do sistema de produção da moda e os verdadeiros beneficiários da globalização (Khurana et al, 2022), que parece favorecer as marcas ocidentais ricas em detrimento da força de trabalho empobrecida nos países produtores.

A exploração no setor global do vestuário e dos têxteis é generalizada, com trabalhadores frequentemente sujeitos a condições de trabalho forçado, salários extremamente baixos e violência baseada no gênero. Na Índia, quase todos os trabalhadores do setor do vestuário enfrentam condições de trabalho forçado, e observa-se uma exploração semelhante na Etiópia, onde os salários são insuficientes para cobrir as necessidades básicas. Esta exploração estende-se ao trabalho infantil, expondo as crianças a condições perigosas. Apesar de alguns esforços para implementar normas laborais, muitas pequenas e médias fábricas continuam sem controle e sem conformidade, perpetuando ainda mais a exploração. A utilização de mão-de-obra barata é um dos principais impulsionadores da indústria do fast fashion, mas contradiz o conceito de emprego remunerado, uma vez que a falta de segurança no emprego e de proteções sociais realça a natureza precária destes empregos. Essa exploração sistêmica sublinha os desafios atuais para alcançar um desenvolvimento socioeconômico justo e sustentável em países de menor renda. 

 

 

Impactos multidimensionais da moda no continente africano 

A indústria do fast fashion está causando graves problemas de poluição nos rios africanos, onde grandes marcas terceirizam parte de sua produção para reduzir custos. De acordo com a ONG escocesa Water Witness (2022), o despejo de lixo não tratado e o uso insustentável da água pela indústria têxtil estão prejudicando o acesso à água e poluindo os rios em países como Etiópia, Lesoto, Madagáscar, Maurícias e Tanzânia. O relatório destaca que o rápido crescimento do setor têxtil em África coincide com desafios na gestão da água, resultando em resíduos tóxicos que afetam tanto a saúde humana quanto o meio ambiente.

O estudo da Water Witness revela que descargas não tratadas contaminam a água necessária para uso doméstico e produção de alimentos, como evidenciado no rio Msimbazi em Dar es Salaam, Tanzânia, que apresenta níveis de pH perigosamente altos e metais tóxicos (Green Savers, 2021). Além disso, a competição entre as fábricas e as comunidades locais pelo acesso à água escassa, agravada pela pandemia de Covid-19, destaca a priorização das necessidades industriais sobre os direitos humanos básicos. A falta de água potável e saneamento adequado nas fábricas, onde a maioria dos trabalhadores são mulheres, é vista como um indicador de escravidão moderna (Green Savers, 2021). O relatório aponta que grandes marcas como Adidas, Calvin Klein, Zara, Mango e H&M terceirizam a produção em África devido ao baixo custo da mão de obra e ao crescimento do setor.

O mercado de Kantamanto, em Accra, Gana, é um dos maiores mercados de roupas usadas do mundo, onde cerca de cinco mil barracas empregam aproximadamente 30 mil pessoas. As roupas usadas, muitas vezes descartadas na Europa e nos Estados Unidos, são vendidas e processadas neste mercado, criando um ambiente caótico com montanhas de tecidos e corredores estreitos (Vidal, 2024). Esse cenário se repete em outros países africanos, como Tanzânia e Quênia, onde a indústria do fast fashion despeja grandes volumes de roupas de baixa qualidade, muitas vezes feitas de plástico, que acabam em lixões.

Uma investigação da Greenpeace revelou que essas roupas baratas transformam o comércio de segunda mão em uma catástrofe ambiental. O relatório "Poisoned Gifts" detalha como os resíduos têxteis, disfarçados como roupas de segunda mão, são exportados do norte para o sul global, evitando a responsabilidade e os custos de descarte adequado (Greenpeace, 2022). Em resposta, ativistas do Greenpeace e do Fashion Revolution levaram lixo têxtil de Gana para a Berlim Fashion Week, protestando contra o "colonialismo do desperdício" da indústria da moda e destacando a necessidade de mudanças, como alugar, compartilhar, reparar e fazer upcycling de roupas usadas.

A situação é agravada pela falta de regulamentação na indústria da moda, resultando em toneladas de roupas sintéticas que intensificam a poluição plástica em países como Gana. As roupas, frequentemente chamadas de "Oburoni Wawu" (as roupas dos homens brancos mortos), chegam aos portos africanos em grande quantidade, com cerca de 100 contêineres semanais destinados ao mercado de Kantamanto. A maioria dessas peças não é vendável e se transforma em lixo, exacerbando os problemas ambientais e econômicos locais.

 

Conclusão

O fenômeno do fast fashion trouxe consigo uma série de impactos multidimensionais que afetam tanto o meio ambiente quanto às condições de vida das comunidades nos países produtores, especialmente na África. A rápida expansão da indústria têxtil na região coincide com desafios na gestão da água, resultando em poluição dos rios e competição entre fábricas e comunidades locais por recursos escassos. Além disso, a presença de mercados de roupas usadas, alimentados pela exportação de resíduos têxteis do Norte global para o Sul, cria problemas ambientais adicionais e destaca a necessidade urgente de uma mudança de paradigma na indústria da moda. A falta de regulamentação adequada e a exploração da mão de obra barata perpetuam uma dinâmica desigual que reforça o neocolonialismo disfarçado de doação, evidenciando a urgência de ações coletivas para promover práticas mais sustentáveis e justas.

É evidente que os efeitos do fast fashion são diversos e impactam principalmente os países do Sul global. Por isso, se faz urgente o debate acerca de soluções e alternativas de combate à atual situação de destruição ambiental. Um ponto de extrema relevância é a inclusão de adoção das energias renováveis no transporte da carga e produtos finais, além da ampliação dos métodos de reciclagem, além da redução ou exclusão do poliéster e outros tecidos sintéticos como matéria prima. Em suma, o debate em torno do fast fashion vai além da simples questão de consumo e tendências de moda, estendendo-se aos complexos sistemas econômicos, sociais e ambientais que sustentam essa indústria. Para enfrentar os desafios apresentados, é necessário um esforço conjunto envolvendo governos, empresas, organizações não governamentais e consumidores para promover práticas de produção e consumo mais responsáveis.

 

 

Referências 

 

BBC. O país que virou 'lixão' de roupas de má qualidade dos países ricos. 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/media-58911546. Acesso em: 8 jun. 2024. 

 

CNN. O que é “fast fashion” e quais são os seus problemas? 2023. Disponível em: O que é “fast fashion“ e quais são os seus problemas? | CNN Brasil. Acesso em: 8 jun. 2024. 

 

Davis, Nicola. 2020. “Fast Fashion Speeding Toward Environmental Disaster, Report Warns.” The Guardian, 7, abril, 2020. https://www.theguardian.com/fashion/2020/apr/07/fast-fashion-speeding-toward-environmental-disaster-report-warns.

 

GREENPEACE. Poisoned Gifts. Disponível em: 9f50d3de-greenpeace-germany-poisoned-fast-fashion-briefing-factsheet-april-2022.pdf. Acesso em: 8 jun. 2024.

 

GREEN SAVERS. “Fast Fashion”, a indústria que invade os rios africanos com lixo e químicos. 2021. Disponível em:https://greensavers.sapo.pt/fast-fashion-a-industria-que-invade-os-rios-africanos-com-poluicao. Acesso em:  8 jun. 2024. 

 

James Mensah. (2023). The Global South as a Wasteland for Global North’s Fast Fashion: Ghana in Focus. American Journal of Biological and 

Environmental Statistics, 9(3), 33-40. https://doi.org/10.11648/j.ajbes.20230903.12

Khurana, K. and Muthu, S.S. (2022), "Are low- and middle-income countries profiting from fast fashion?", Journal of Fashion Marketing and Management, Vol. 26 No. 2, pp. 289-306. https://doi.org/10.1108/JFMM-12-2020-0260

 

MARAFON, R., Miyashiro Junior, R. ., & Elise Alves Vasconcelos, P. . (2023). FAST FASHION Y DESECHO: EL PROBLEMA AMBIENTAL ACTUAL EN GHANA. Homa Publica - Revista Internacional De Derechos Humanos Y Empresas, 7(1), e:108. Recuperado a partir de https://periodicos.ufjf.br/index.php/HOMA/article/view/40096

 

Niinimäki, K., Peters, G., Dahlbo, H. et al. O preço ambiental do fast fashion. Nat Rev Terra Environ 1, 189–200 (2020). https://doi.org/10.1038/s43017-020-0039-9

 

United Nations Environment Programme (2023). Emissions Gap Report 2023: Broken Record – Temperatures hit new highs, yet world fails to cut emissions (again). Nairobi. https://doi.org/10.59117/20.500.11822/43922.

 

Vidal, Iara. Lixão têxtil: fast fashion é pivô da catástrofe ambiental na África. Forum. 2024. Disponível em: https://revistaforum.com.br/meio-ambiente/2024/2/19/lixo-txtil-fast-fashion-piv-da-catastrofe-ambiental-na-africa-154213.html. Acesso em: 8 jun. 2024. 

 

Williams, E. (2022). Appalling or Advantageous? Exploring the Impacts of Fast Fashion

 From Environmental, Social, and Economic Perspectives. Journal for Global Business and

 Community, 13(1).