Eleições no México: o passado no futuro da política externa latino-americana?
Por Marina Morena Caires
Em 2 de junho de 2024, o México teve suas eleições gerais que elegeram, entre outros cargos, o do futuro líder do Executivo, sendo que ele agora será ocupado pela primeira presidenta do país. Na corrida eleitoral, duas candidatas lideraram as pesquisas: Claudia Sheinbaum, do partido Morena, o mesmo do atual presidente Andrés Manuel López Obrador (AMLO); e Xóchitl Gálvez, da oposição, representando o Partido Acción Nacional (PAN). Houve, novamente, a vitória do partido Morena.
Sheinbaum liderava com uma boa margem as pesquisas de voto, com a maioria das pesquisas apontando ao menos 20% de diferença em relação à Gálvez (Rodríguez, 2024). Assim, não é de se surpreender que o México passará outros seis anos sob o governo do partido de esquerda e que muitas das políticas e ideais perpetuados por AMLO permaneçam com a liderança de sua sucessora. Dessa forma, a presente análise busca investigar os princípios e feitos da política externa de López Obrador e compará-los com os objetivos do Plano de Governo lançado por sua sucessora nessa campanha. Em especial, analisaremos as ações e medidas de política exterior voltadas aos países da América Latina.
Princípios e objetivos da Política Exterior do Governo AMLO
Antes de se aprofundar nas políticas exteriores do governo de López Obrador, é necessário relembrar o cenário em que se encontrou durante a maior parte de seu governo. A presidência de AMLO perpassou não só a pandemia, o que debilitou e recalibrou diversas aspirações econômicas, políticas e sociais, mas também encontrou dificuldade de cooperação com países de cunho ideológico divergente do seu no cenário latino americano. Colômbia, Brasil, Uruguai, Bolívia e Chile foram alguns dos grandes atores que passaram por governos de direita entre 2022 e 2024. Além deles, os Estados Unidos, maior parceiro político e econômico do México e ocupante de grande parte das suas forças em relação à política externa, passaram pelo governo conservador de Donald Trump.
Dito isso, desde o seu período de campanha eleitoral em 2018, o atual presidente mexicano já deixava claro que sua prioridade não era a política externa. O então candidato declarou que “a melhor política exterior era a política interna” (AMLO, 2022). A partir desse ponto, se tornou nítido em seu plano de governo que o objetivo era fazer uma política externa coerente com a interna, sempre buscando os interesses nacionais mexicanos (Flores, 2022).
O foco dos assuntos de política externa apresentados no seu plano de desenvolvimento, especialmente em relação à América Latina, seriam os direitos humanos, a migração, o meio ambiente e as oportunidades de cooperação econômica para o livre comércio de forma bilateral e multilateral. Apesar do presidente ter falado durante seu sexênio sobre a superação da época neoliberal, suas políticas em relação à economia não tiveram mudança significativa em comparação aos últimos governos (Centeno, 2021).
Outro ponto de continuidade em relação aos governos anteriores foi o seguimento da tradição de defesa da não-intervenção e de autodeterminação dos povos (Pérez; Olvera, 2022). Além deles, a solução pacífica de controvérsias. Esses princípios guiaram diversas decisões da presidência de AMLO, inclusive algumas polêmicas como a defesa de ditaduras na América Latina. Ademais, o presidente buscou junto a Secretaria de Relações Exteriores (SRE) adotar uma política feminista de redução e de eliminação das desigualdades de gênero (Ibid.).
Feitos e direções da PE em relação à América Latina
De acordo com o Plano Nacional de Desenvolvimento 2019-2024 (Plan Nacional de Desarrollo), estava claro que o presidente buscava uma relação amistosa com todos os países latinos devido às suas semelhanças culturais e históricas, especialmente os da América Central (DOF, 2019). Para tanto, o governo de AMLO apresentou duas características principais em sua política externa voltadas à América Latina: a) a aproximação com países de esquerda;, e b) a realização de programas em conjunto com os países da América Central e Caribe (Juárez; Oliveira, 2022). A busca pela concretização dessas ações se realizou tanto em campos bilaterais quanto multilaterais, em diversas organizações latino americanas.
No que tange à aproximação com países ideologicamente semelhantes, o presidente não só se aproximou dos governos democraticamente elegidos. Em busca da defesa dos princípios anteriormente mencionados, principalmente de autodeterminação e de não-intervenção, e buscando convívio pacifico com outros países, o México tomou posturas inéditas de defesa e de abstenção de ditadores e regimes esquerdistas na região.
Um dos primeiros escândalos de Obrador foi a escolha de se abster de duas votações que tornavam ilegítimo o regime de Nicolás Maduro na Venezuela depois das eleições de 2018. Tanto no Grupo de Lima, um agrupamento de chanceleres formado em 2017 para buscar soluções para a questão da Venezuela, quanto na OEA, o México de Obrador tomou decisões controversas e divergentes dos governos anteriores, que não pareciam ter o apoio de um amplo setor da sociedade mexicana (Flores, 2022).
O acolhimento de Evo Morales após as controversas eleições que levaram uma revolta popular para tirá-lo do poder na Bolívia também foi duramente criticado por defender um homem considerado ditador por grande parte do país, não só pela oposição. AMLO lhe ofereceu asilo e isso ocasionou uma tensão com o governo boliviano ao ponto de sua embaixadora ser considerada personanon-grata e ser expulsa do país (Pérez; Olvera, 2022). A situação foi remediada e posteriormente Obrador chegou a reconhecer o novo presidente boliviano eleito em 2020. Contudo, estabeleceu-se uma nova posição mexicana, especialmente em comparação com os governos antecessores, que colocou em cheque seu discurso de defesa da democracia.
Em relação ao seu segundo e principal objetivo, de criação e de implementação de programas com países centro americanos e caribenhos, o governo mexicano foi melhor sucedido. Os países da região central e o México enfrentam um problema de migração, no qual os nacionais desses locais cruzam as fronteiras mexicanas com o intuito de tentar atravessar para os Estados Unidos. Esse movimento, somado a pressões de Washington para que o México tomasse medidas de prevenção dele e aos próprios interesses nacionais mexicanos (Lallande; Minutti, 2022), influenciou o país a buscar cooperação.
Todavia, AMLO acreditava que, para combater a migração, é preciso combater suas causas profundas e fortalecer e desenvolver o local de origem desses migrantes (Juárez; Oliveira, 2022). Assim surge, em conjunto com a CEPAL, Nicarágua, Honduras e El Salvador, o Plan de Desarrollo Integral (PDI), ou Plano de Desenvolvimento Integral, o qual trazia programas para capacitação de jovens e apoio ao pequeno produtor rural, que teve sua implementação dificultada pela pandemia.
Nos espaços multilaterais, o México foi protagonista no retorno da Comunidad de Estados Latinoamericanos y Caribeños (CELAC), promovendo um espaço de cooperação sobre temas de economia, desenvolvimento, inovação e sustentabilidade, e de trabalho conjunto para o combate à COVID (Pérez, 2022). Ademais, se manteve a contínua participação na Aliança Pacifico, voltada para o desenvolvimento comercial das nações latinas do Oceano Pacífico (Pérez; Olvera, 2022). Assim, demonstrando bastante protagonismo mexicano no que tange especialmente a região central da América Latina.
Claudia Sheinbaum: inovação ou manutenção?
A primeira presidenta mexicana lançou orientações vagas sobre os seus objetivos de política exterior em seu documento de proposta de governo intitulado 100 pasos para la Transformación, com eixos a serem tratados nos seus 6 anos de governo.
Em relação aos princípios de não-intervenção, de autodeterminação e de solução pacífica de controvérsias, os planos da candidata seguem a política de AMLO e os ideais tradicionais mexicanos. Os grandes desafios se mantêm, por sua vez, no campo da segurança, migração e saúde.
Sheinbaum utiliza mais de uma página das suas propostas de política externa para falar dos êxitos de Obrador, como a recuperação da CELAC, as matérias de migração humana, de combate às armas e de saúde. A única região do mundo citada para cooperação é a América Latina, enquanto a maioria dos países que aparecem no documento por nome são também latinos, com exceção dos Estados Unidos.
O foco no desenvolvimento mexicano e, por consequência, necessidade e proximidade, também o latino-americano, se torna ainda mais evidente quando são analisados os desafios e áreas para aprofundar a transformação, assim como os planos e ações do governo para tal. A presidenta e seu partido focaram em problemas/objetivos bastante semelhantes aos de AMLO — além de pertinentes —, como a gestão da mobilidade humana, a presença em foros multilaterais e o fortalecimento do papel de liderança na América Latina (100 pasos para la Transformación, 2024). Os quais envolvem diretamente, mesmo que não nominalmente, a América Latina.
Contudo, todos são escritos de forma rasa e vaga, sem aprofundamento nos mecanismos, agentes e ações técnicas que serão tomadas para sanar os problemas citados ou mesmo explicar o que seriam exatamente os pontos de melhoria nas áreas de aprofundamento. O documento conta com desafios como “Liderazgo en América Latina y más allá: Fortalecer el papel de liderazgo de México, extendiendo su influencia globalmente” (100 pasos para la Transformación, 2024, p. 337). No entanto, as propostas e ações do governo se limitam a respostas pouco detalhadas que somente afirmam que buscarão fortalecer o poder do México e participar mais de foros internacionais, como Assembleia da ONU e CELAC (100…, 2024).
Nos planos de ação do governo, também é possível encontrar uma linguagem bem característica dos princípios de Obrador, como o uso de frases que definem o objetivo das ações, como o interesse interno do México e o respeito a sua tradição e constituição.
“[...] representar los intereses de México en el mundo” (100 pasos para la Transformación, 2024, p. 337).
“[...] a través de la promoción de diálogos y cooperaciones que reflejen nuestros principios constitucionales y prioridades estratégicas” (Ibid., p. 337).
“De acuerdo con los intereses de México y las prioridades del próximo gobierno [...]” (Ibid., p. 338).
Depois disso, a outra metade do planejamento de Política Externa de Sheinbaum foca no apoio a mexicanos no exterior.
O que isso significa para a América Latina?
O México é atualmente a segunda maior economia latino americana. De acordo com dados do PIB de 2024, o Brasil se encontra com 2,3 trilhões de dólares, enquanto o México segue com 2 trilhões (Statista, 2024). O terceiro colocado, a Argentina, passa bastante longe dos dois com 600 bilhões de dólares de PIB em 2024.
Além disso, o México, como o país mais próximo dos Estados Unidos e dos países da América Central e Caribe, teria uma posição diplomática estratégica para dar luz no cenário internacional a assuntos pertinentes a essas regiões, como a migração.
Contudo, a política externa mexicana não busca local de protagonismo nem um papel de liderança regional como o Brasil agora no terceiro governo de Lula. Assim, é muito provável que seguiremos vendo a potência sul-americana influenciado não só a política externa da região, mas também suas pautas e prioridades para o resto do mundo, com grande presença em organismos internacionais como a ONU. A esquerda brasileira desde os anos 90 lidera a esquerda latino-americana em diversos assuntos de política internacional (Bisharat, 2019), uma tendência potencializada nos primeiros governos Lula e que retorna neste mandato.
O México seguirá provavelmente focado em tratar de assuntos internos, baseado emuma tendência de nacional desenvolvimentismo e de cooperação internacional mais focada em resolução de problemas nacionais. Ademais, é possível que continuaremos vendo a diplomacia mexicana seguir suas fortes convicções de não intervencionismo em assuntos de grande pauta dentro da região, como o da Venezuela.
Conclusões
Apesar de o documento de propostas não buscar ser um plano aprofundado de medidas de um futuro governo, a candidata eleita à presidência mexicana nas questões de política externa para com a América Latina são suficientes para averiguar que ela segue os passos do atual presidente.
A política externa de um das potências latino-americanas segue relegada a um segundo plano, sendo vista mais como consequência/impulsionador de políticas e interesses internos, como o controle da migração, do que um pilar importante de projeção internacional. Isso significa que provavelmente, ao menos ao longo dos próximos dois anos, enquanto Lula ainda for presidente, o Brasil continuará com o seu cargo autointitulado de porta-voz da região.
É de se esperar que o México permaneça em destaque no que tange aos espaços de cooperação na América Central e Caribe, além de instituições onde já obteve êxito como a CELAC. Possivelmente o país seguirá com a postura de não-intervenção e de abstenção em questão de punição de regimes antidemocráticos, provando-se um possível empecilho para diálogos e repreensão a figuras polêmicas da região.
Dessa forma, se os críticos de Obrador consideravam que ele e seu partido tinham uma política exterior pouco efetiva ou inexistente, com sua herdeira Claudia Sheinbaum eleita, há fortes indícios de que isso não mude tão cedo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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