O cessar-fogo em Gaza e o problema do institucionalismo neoliberal
Felipe Alexandre Moura
Há dois meses, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou a resolução 2728, que demandou um cessar-fogo imediato entre Israel e Hamas durante o mês do Ramadã. Apesar disso, o conflito continuou a escalar na região. A campanha militar de Israel avançou sobre Rafah, no sul de Gaza, enquanto que os foguetes disparados contra uma base do exército israelense em Kerem Shalom, na fronteira entre o norte de Gaza e Israel, foram reivindicados pelo Hamas.
De fato, o Conselho de Segurança não foi capaz de envolver as partes beligerantes em um processo de negociação e, menos ainda, de desescalar ou interromper o conflito. Neste contexto, o que a ineficácia da resolução 2728 revela sobre a ordem internacional neoliberal? O foco desta análise é, portanto, compreender como as estruturas do institucionalismo neoliberal falharam em promover a paz em Gaza.
O institucionalismo neoliberal
Nesta perspectiva, os teóricos acreditam que as organizações internacionais não são meras arenas forjadas para continuação do jogo de poder entre os Estados, mas sim um espaço multilateral que viabiliza a cooperação e a manutenção da paz. O institucionalismo neoliberal também reconhece a premissa realista de que os Estados são atores centrais e racionais que se relacionam em um sistema internacional anárquico. Porém, mesmo neste cenário, as organizações internacionais ainda são capazes de influenciar o comportamento dos Estados, a depender de seu escopo e eficiência. (Keohane, 1984).
A eficiência das organizações internacionais depende das estruturas que as sustentam, uma vez que o desenho institucional condiciona as interações políticas entre os Estados membros. Padrões de votação, por exemplo, estabelecem as normas e procedimentos a serem seguidos por todos os Estados membros na defesa dos seus interesses no âmbito multilateral. O poder de veto dos membros permanentes do Conselho de Segurança, neste caso, tem comprometido a eficiência da organização no cumprimento de seu papel mor, pois o mecanismo engessa o processo decisório e, consequentemente, impede que o órgão responda mais rapidamente às crises internacionais.
Com um escopo ampliado, as organizações internacionais podem atuar transversalmente para promover soluções mais satisfatórias e duradouras aos problemas enfrentados por seus Estados membros. Em troca, os Estados cedem uma parcela de sua soberania para as organizações internacionais, pois racionalmente permitem a interferência sobre seus territórios e agendas. Esta interferência é limitada pela flexibilidade de vinculação, ou seja, as organizações internacionais decidem sobre quais instrumentos haverá a imposição de efeitos vinculantes, que geram obrigações jurídicas aos Estados membros para influenciar seu comportamento.
É razoável, então, definir o padrão de votação do Conselho de Segurança e a flexibilidade de vinculação como dois elementos que, de alguma forma, caracterizam as estruturas neoliberais sobre as quais as Nações Unidas têm operado desde sua criação.
Conselho de Segurança e o poder de veto
Ainda que as organizações internacionais não sejam meras arenas forjadas para continuação do jogo de poder entre os Estados, suas estruturas são construídas e atravessadas por esse jogo. Estados que mais contribuem para uma organização, seja financeiramente ou de outra forma, podem demandar mais poder de decisão como forma de garantir sua participação e influência (Koremenos; Lipson; Snidal, 2001).
O poder de veto dos cinco membros do Conselho de Segurança é um exemplo da projeção de poder de Estados com mais recursos e, consequentemente, com mais participação e influência sobre os processos de tomada de decisão. É claro que, em perspectiva histórica, este mecanismo possibilitou, de certo modo, a própria criação das Nações Unidas. Isto porque, os Estados são avessos a risco e, sendo assim, a presença de mecanismos como o poder de veto, que permitem aos Estados evitar circunstâncias imprevistas ou consequências indesejadas, pode determinar sua adesão e engajamento em uma organização internacional (ibid., 2001).
Outra questão subjacente ao poder de veto é que ele fere o princípio de igualdade entre os Estados membros das Nações Unidas, pois este mecanismo afeta a representatividade e a equidade no processo de tomada de decisões dentro das organizações internacionais. Como consequência, as resoluções aprovadas pelo Conselho de Segurança podem ter, e frequentemente tem, sua legitimidade questionada pelos demais membros da ONU.
Quando consideradas ilegítimas ou equivocadas por seus destinatários, as resoluções aprovadas no Conselho de Segurança dificilmente concretizam seus objetivos. Em paralelo, o governo de Israel condenou a resolução 2728 e os primeiros indícios são de que a ação da ONU pouco mudou a realidade ou estimulou o progresso diplomático. Oficiais de alta patente israelense disseram aos canais de comunicação que iriam ignorar o pedido de cessar-fogo, argumentando que era imperativo prosseguir com a guerra até que o Hamas seja desmantelado (The New York Times, 2024).
A resolução 2728 é vinculativa?
No texto da resolução 2728, aprovada em 25 de março de 2024, o Conselho de Segurança faz três exigências: o cessar-fogo imediato durante o mês do Ramadã, a libertação incondicional de todos os reféns e a garantia de acesso humanitário à Faixa de Gaza. O órgão também reiterou que as partes beligerantes devem respeitar o direito internacional humanitário, enfatizando a necessidade urgente de expandir o fluxo de assistência humanitária e reforçar a proteção dos civis em zonas de conflito (Nações Unidas, 2024).
A única exigência da resolução que Israel prometeu cumprir refere-se ao aumento do fluxo de assistência humanitária que, mais do que nunca, é imprescindível para resgatar Gaza da fome iminente. Um relatório da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (2024) revelou que a fome deve atingir com mais intensidade as províncias do norte e submeter mais de um milhão de pessoas a níveis catastróficos de subnutrição.
E ao que parece, Israel não tem cumprido sua promessa. No dia 13 de maio, um veículo da ONU foi atingido por forças israelenses a caminho de um hospital em Gaza. Os trabalhadores humanitários também não conseguiram sair da cidade, desde que o exército israelense tomou o controle de Rafah e bloqueou a passagem no início de maio (Human Rights Watch, 2024). Com efeito, estes ataques têm sufocado os esforços de agências humanitárias para aliviar a fome e o sofrimento em Gaza, em vez de impulsioná-los como prometido.
Na prática, resoluções como esta funcionam mais como bússolas, que apontam para onde sopram os ventos políticos. O “consenso” entre China, França, Reino Unido e Rússia sobre o texto da resolução e a abstenção dos Estados Unidos, que há tempos são o principal defensor de Israel na ONU, sinaliza, pelo menos, um certo “ímpeto internacional” de conquistar uma pausa na guerra (Barron, 2024).
Neste sentido, o debate sobre a eficácia desta resolução perpassa a sua incapacidade de obrigar os Estados a cumprir o que se exige. Afinal, apenas as resoluções adotadas no âmbito do capítulo VII da Carta das Nações Unidas são consideradas vinculativas. Este capítulo concede ao Conselho de Segurança autoridade para tomar medidas coercitivas, como impor sanções econômicas, embargo de armas e uso da força para manter ou restaurar a paz. Destarte, para a embaixadora dos Estados Unidos na ONU, Linda Thomas-Greenfield, a resolução 2728 não tem efeito vinculante, demonstrando que o país provavelmente também considera a resolução mais um instrumento político valioso do que uma ordem vinculativa (The New York Times, 2024).
Considerações finais
Afinal, como as estruturas do institucionalismo neoliberal falharam em promover a paz em Gaza? Em síntese, o padrão de votação, produto de uma complexa dinâmica de poder que permeia a ordem internacional neoliberal, retardou a ação do Conselho de Segurança diante da crise e a flexibilidade de vinculação anulou o potencial do órgão de compelir as partes beligerantes a cumprir suas exigências.
A ineficácia da resolução 2728 expôs as limitações intrínsecas das estruturas neoliberais das Nações Unidas. A dependência de mecanismos como o poder de veto dos membros permanentes do Conselho de Segurança frequentemente compromete a capacidade de resposta rápida e eficaz. Ao mesmo tempo, a flexibilidade de vinculação e a resistência dos Estados, especialmente aqueles com grande influência política e militar, minam os esforços multilaterais para a resolução pacífica de conflitos.
Na melhor das hipóteses, a resolução 2728 pôde expressar o descontentamento da comunidade internacional diante do que têm ocorrido na Faixa de Gaza. Nesta conjuntura, a importância política da resolução é destacada, mesmo que a ausência de vinculação enfraqueça seus efeitos concretos. Logo, é coerente afirmar que, sim, as estruturas do institucionalismo neoliberal estão apresentando sintomas crônicos de seu desgaste.
Referências
BARRON, J. What Does the U.N. Cease-Fire Resolution Mean for the Israel-Gaza War? United States Institute of Peace, 2024.
BBC. Three soldiers killed in Kerem Shalom rocket attack. https://www.bbc.com/news/world-middle-east-68960585. Acesso em: 6 de mai. de 2024.
BBC. UN Security Council passes resolution calling for Gaza ceasefire. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-middle-east-68658415. Acesso em: 6 de mai. de 2024.
FAO. Projected famine in Gaza: FAO urges immediate access to deliver urgent and critical assistance at scale. Disponível em: https://www.fao.org/newsroom/detail/projected-famine-in-gaza--fao-urges-immediate-access-to-deliver-urgent-and-critical-assistance-at-scale/en. Acesso em: 6 de mai. de 2024.
HUMAN RIGHTS WATCH. Gaza: Israelis Attacking Known Aid Worker Locations. Disponível em: https://www.hrw.org/news/2024/05/14/gaza-israelis-attacking-known-aid-worker-locations. Acesso em: 14 de mai. de 2024.
KEOHANE, Robert O. After Hegemony: Cooperation in the World Political Economy, Princeton, 1984.
KOREMENOS, B; LIPSON, C; SNIDAL, D. The Rational Design of International
Institution, Cambridge, 2001.
ONU. Resolutions adopted by the Security Council in 2024. Disponível em: http://undocs.org/en/S/RES/2728(2024). Acesso em: 6 de mai. de 2024.
THE NEW YORK TIMES. Days After U.N. Cease-Fire Resolution, Has Anything Changed in Gaza? Disponível em: www.nytimes.com/2024/03/29/world/middleeast/un-ceasefire-resolution-israel-gaza.html. Acesso em: 6 de mai. de 2024.