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PET-REL

O papel do crime organizado na crise de segurança do Equador

Lenira Oliveira (PET-REL) e Gabriel Marinho (UnB)

 

A recente epidemia de violência no Equador mais uma vez levou a problemática do crime organizado na América do Sul aos holofotes da mídia internacional. O país, cujos índices de violência se mantiveram baixos se comparados aos dos demais países sul-americanos, tem visto, pelo menos desde 2016, um aumento da atividade do crime organizado e de episódios de violência relacionados (Nueva Sociedad, 2024). Alguns marcos trágicos já apontavam essa tendência: o sequestro e o assassinato de três jornalistas pela Frente Olivier Sinisterra, bem como a explosão de carros-bomba, em 2018; e o assassinato do candidato à presidência Fernando Villavencio, em agosto de 2023.

O “estopim” da situação atual, porém, foi a fuga realizada por José Adolfo Macías Villamar (mais conhecido como “Fito”), líder do grupo “Los Choneros”. As autoridades, que pretendiam transferi-lo para outro presídio, relataram seu desaparecimento no dia 7 de janeiro de 2024, seguido por revoltas de prisioneiros – em que servidores do sistema carcerário foram feitos reféns – explosão de carro-bomba e a invasão à emissora TC da cidade de Quayaquil (Calanche, 2024). O governo reagiu declarando “estado de emergência” logo após a fuga de Fito, e, posteriormente, estado de “conflito interno armado”. Tais declarações, contudo, não foram suficientes para recapturá-lo e não evitaram outra fuga: a de Fabricio Colón Pico, “El salvage”, liderança notável do grupo “Los lobos” (Nueva Sociedad, 2024).

A situação no Equador realmente é preocupante. Entretanto, ainda que esses acontecimentos, orquestrados por grupos do crime organizado, representem um marco na história da criminalidade no país, sua compreensão plena envolve não só a análise de fatores internos, mas também do contexto regional em que se insere o Equador. Considerando o contexto apresentado, a presente análise busca lançar luz sobre os fatores que levaram ao aumento da violência e da atividade do crime organizado no Equador, bem como tecer considerações sobre o curso de ação adotado pelo governo Noboa e suas possíveis repercussões para o futuro do país. 

 

A infiltração do narcotráfico no Equador 

 

O primeiro fator importante quando se fala sobre o aumento do crime organizado no Equador, especialmente em se tratando do narcotráfico, é sua proximidade geográfica com a Colômbia e o Peru. Esses dois países possuem capítulos inteiros de sua história ligados à atividade de narcotraficantes e aos grupos guerrilheiros e, mesmo hoje em dia, são os dois maiores produtores de folha de coca do mundo (BBC, 2023). Tendo o Equador fronteiras com esses países e pelo menos um porto importante – o de Guayaquil, em que drogas podem ser exportadas para mercados consumidores de alta renda –, não seria exagero pensar no Equador como área de interesse para o tráfico internacional.

De fato, o Equador constitui-se, cada vez mais, como um país central no transporte da cocaína que sai desses países (Rivera-Rhon; Bravo-Grijalva, 2020, p. 10, 17). Muitas das dinâmicas relacionadas a qualquer tipo de economia ilegal seguem uma lógica mercadológica: os produtores procuram formas de maximizar seus lucros, identificando, por exemplo, os melhores mercados e rotas para seus produtos e procurando formas de minimizar os riscos. Nesse sentido, as rotas que passam pelo Equador e têm como destino o mercado europeu ou o norte-americano sempre se apresentaram como alternativas possíveis economicamente, visto que a fiscalização equatoriana não é capaz de acompanhar o fluxo, e a destinação final das drogas gera grandes montantes (Rivera-Rhon; Bravo-Grijalva, 2020, p. 22-27). Entretanto, após a campanha lançada pelos Estados Unidos para contenção do transporte marítimo de drogas pelo Caribe, os traficantes passaram a utilizar ainda mais as rotas equatorianas (Pónton, 2013, p. 143-146). Esse aumento da utilização de rotas para o tráfico pelo Equador, por sua vez, gerou aumento no número de integrantes de grupos de crime organizado nacionais e internacionais, o que pode ajudar a explicar o recente aumento da violência no país.

Por outro lado, tem-se constatado uma evolução das atividades e grupos de crime organizado no Equador. Se antes o país era basicamente um ponto de trânsito, nos quais grupos locais de médio e pequeno porte serviam simplesmente como intermediários para transporte da droga, hoje existem pelo menos dois grandes grupos criminais nacionais – Los Choneros e Los Lobos –, que cooperam com cartéis mexicanos e com grupos colombianos (Rivera-Rhon; Bravo-Grijalva, 2020, p. 10, 17, 20-24). Além disso, existem fortes indícios de que o Equador tenha crescido como centro de produção de cocaína (Rivera-Rhon; Bravo-Grijalva, 2020, p. 17). E o novo papel assumido pelo país como produtor de drogas associa-se à ausência estatal nas regiões fronteiriças, a exemplo do que ocorre com grupos colombianos produtores de cocaína, que ao encontrarem repressão governamental e paramilitar em suas terras natais, cruzam a fronteira e estabelecem plantações em território equatoriano (Forero; Stoller, 2016, p. 242-246).

Sem o monitoramento estatal das fronteiras, a internacionalização do crime organizado, bem como os fenômenos de instabilidade política a ela associados, tornam-se muito mais possíveis. É por isso, inclusive, que qualquer tentativa de eliminar o crime organizado deve partir de iniciativas multilaterais: a criminalidade reage à repressão e se restabelece em territórios onde esta é menor. Além disso, a ausência do Estado em áreas precárias, como a fronteira Equador-Colômbia, cria um vácuo na prestação de serviços de ordem pública: os habitantes dessas áreas, portanto, passam a recorrer ao crime organizado para questões de arbitragem de disputas, garantia da justiça e proteção, bem como fornecimento de uma renda estável por meio da participação na economia ilegal (Forero; Stoller, 2016, p. 242, 243). O resultado disso é um incentivo para que os grupos de crime organizado se espalhem e/ou cooperem através das fronteiras.

A corrupção endêmica em muitas instituições do Equador é outro fator explicativo para o crescimento da presença do crime organizado no país. O crime organizado prospera quando servidores públicos cooperam com os criminosos, afinal se os responsáveis pela contenção do crime não executam suas funções adequadamente, então pode haver a expansão dos negócios ilegais, culminando no alastramento do crime organizado (Rivera-Rhon; Bravo-Grijalva, 2020, p. 11, 15 e 26). No Equador, o conluio entre servidores públicos e agentes do crime é um problema real, como demonstrado pela operação da Procuradora Geral da República, Diana Salazar, que indiciou um juiz e o antigo chefe da instituição responsável pelos cárceres do país (Nueva Sociedad, 2024). O caso é bastante simbólico, pois envolve autoridades cuja função envolvia a contenção direta do crime, e o zelo pelo império da lei. Sendo assim, não se pode desconsiderar, nesse caso, que talvez a infiltração do crime organizado nesse país tenha sido facilitada pela corrupção das autoridades frente a uma economia ilegal em expansão.

Além disso, a economia dolarizada do Equador também facilita as atividades dos grupos de crime organizado (Manjarrés, 2023). Os grandes montantes gerados pela crescente “economia do submundo” podem chamar a atenção das autoridades fiscais e possivelmente atrair esforços para o desmantelamento de redes operacionais ilegais, assim sendo necessário encontrar métodos para esconder o dinheiro ou fazê-lo parecer legítimo. Acontece que, em uma economia dolarizada como o Equador, os grupos de crime organizado se aproveitam da popularidade do dólar no comércio internacional e fundam empresas de fachada, que ao alegarem a existência de negócios internacionais, lavam o dinheiro das operações ilegais. O fato é que seria mais difícil lavar esse dinheiro caso as empresas de fachada tivessem que converter grandes montantes de dólar em outro tipo de moeda, pois isso chamaria a atenção das autoridades (Manjarrés, 2023).

Por fim, o sistema carcerário equatoriano tem contribuído para a eclosão dos recentes episódios de violência, na medida em que constitui um ecossistema no qual a utilização da violência torna-se o pilar “de facto” da governança, cuja reprodução é incentivada (Pontón, 2022). Na ausência de legitimidade, o crime organizado, em geral, sempre recorreu à violência como meio para a resolução de conflitos (Pontón, 2022, p. 173); logo, em um ambiente no qual a superlotação e a falta de treinamento de oficiais limitam a capacidade das autoridades de administrar as prisões eficientemente, os próprios prisioneiros criam estruturas hierárquicas, coexistentes à hierarquia entre encarcerados e carcereiros, sustentadas pela violência (Pontón, 2022, p. 170-173). Somando-se a isso o fato de que as perspectivas de reabilitação são baixas, fica fácil perceber que as prisões, assim, não só constituem ambientes a partir dos quais os chefes de facções podem administrar seus negócios com relativa autonomia, mas também ambientes nos quais a violência é estimulada, aumentando, portanto, a taxa de homicídios (Pontón, 2022, p. 180-186). 

 

Como o Estado equatoriano está combatendo o crime organizado no país?

 

No decreto executivo n. 111, o presidente do Equador, Daniel Noboa, classificou 22 grupos criminais como terroristas, de modo a autorizar a execução de operações militares pelas Forças Armadas a fim de neutralizar esses grupos (Decreto Ejecutivo No. 111, 2024). No entanto, essa medida implica em uma forte militarização da sociedade equatoriana, o que pode gerar resultados negativos, sobretudo para a população civil que vive em áreas controladas por esses grupos, visto que esses civis tendem a ficar em meio ao fogo cruzado em ações de confronto empreendidas pelas forças de segurança contra as facções criminosas (Calanche, 2024).

    A perspectiva que defende o emprego das forças armadas no combate ao crime organizado no país, defende que elas podem combatê-lo de maneira eficaz, desde que amparadas pela sua missão constitucional de defender a soberania e a integridade nacional do Estado (Estrella et al., 2023, p. 8). Corrobora-se, para isso, o fato de que foi necessário decretar, em abril de 2022, “estado de exceção” nas províncias de Esmeraldas, Guayas e Manabí, o que permitiu uma resposta das forças armadas às ações empreendidas por grupos criminosos que eram responsáveis pelo aumento dos índices de criminalidades nestas localidades. Nesse caso, o emprego das forças armadas se mostrou eficaz em conter as facções criminosas em atuação em um contexto de crescente insegurança. Contudo, os militares normalmente não têm formação específica para atuar em situações como essa – em temas de segurança pública, por exemplo – nem para interagir com a população civil, o que abre a possibilidade de violações dos direitos humanos (Díaz, 2024), fazendo surgir assim questionamentos sobre quais serão os efeitos práticos de sua atuação na atual situação do país e se ela será realmente positiva para a segurança da população equatoriana.

    Para além da discussão sobre o emprego ou não das forças armadas na luta contra o crime organizado no Equador, e tendo presente o atual contexto de crise de segurança no país, faz-se necessário que um conjunto de medidas mais amplas sejam adotadas pelo governo para conter o crime organizado no país. Nessa perspectiva, poder-se-ia investir mais em segurança pública, especialmente nas capacidades das forças policiais, como em equipamentos e armamentos utilizados pelos agentes. Durante a campanha eleitoral, inclusive, o atual presidente prometeu investir no setor de defesa equatoriano, sobretudo por meio do Plano Fénix, que buscaria fortalecer o setor estratégico e de inteligência da força policial do país. Contudo, ainda é muito cedo para ver os resultados deste plano, haja visto que ele apenas começou a ser implementado em dezembro de 2023 (El Nuevo Ecuador, 2023).

    Segundo a Secretária de Segurança de Quito, Carolina Andrade, uma das razões que corroborou para a onda de violência recente no Equador, foi justamente a ausência de um sistema de inteligência efetivo que possibilite a atuação antecipada da polícia e das Forças Armadas (Pimentel, 2023). Destarte, faz-se importante investir também neste setor, a fim de que se possa monitorar os grupos em atuação no país e, assim, seja possível contê-los. 

    Outro importante aspecto a ser destacado é a necessidade de se reforçar também o Consejo de Seguridad Pública y del Estado (COSEPE). O organismo tem como função assessorar e fazer recomendações ao Presidente do Equador sobre planos, estratégias e políticas relacionadas à segurança pública no país. O COSEPE esteve desativado durante mais de uma década e isso foi visto por alguns especialistas como um dos fatos que contribuíram para o crescimento do crime organizado no Estado equatoriano (Benavides; Guerrero, 2023, p. 114). Desse modo, fortalecê-lo seria uma maneira do atual governo articular uma resposta bem acertada para combater as facções criminosas que geram instabilidade na segurança nacional.

 

Considerações finais

 

Tendo-se em vista a atual crise de segurança no Equador, pode-se inferir que se faz necessário uma resposta abrangente por parte do Estado equatoriano para lidar com a questão do crime organizado. No âmbito diplomático, poder-se-ia estreitar os esforços regionais para combater o crime organizado transnacional, por meio da integração dos sistemas de inteligência dos países da região (Benavides; Guerrero, 2023, p. 119). A cooperação entre os países da região nos setores de defesa e segurança é crucial no combate ao crime organizado, tendo em vista a tendência da criminalidade se expandir para áreas em que as forças policiais são menos equipadas e treinadas. 

Em relação à esfera militar, é essencial identificar os centros de gravidade dos grupos criminosos, isto é, suas lideranças para conseguir desestruturar as facções que atuam no país; assim como é importante profissionalizar e equipar as forças de segurança do país. Já na esfera econômica – que é uma das causas estruturais do espraiamento do crime organizado –, deve-se buscar atender além das necessidades básicas da população, fomentando oportunidades de renda e desenvolvimento local, assim como é preciso desmantelar a estrutura financeira que propicia o fluxo de ilícitos rentável aos grupos criminosos (Benavides; Guerrero, 2023, p. 119-120).

Todavia, a resposta do presidente Noboa à situação de segurança do país tem aparentado caminhar para um processo de securitização da sociedade equatoriana, haja visto que as medidas implementadas buscam combater grupos criminosos – agora classificados como terroristas – com o emprego das forças policiais e armadas. O que se observa, portanto, é que não existe um esforço em extinguir as raízes do problema, mas apenas solucionar seus efeitos colaterais, que são justamente os picos de violência observados no início de janeiro no país. Então, caso não seja definida uma estratégia mais abrangente de combate ao crime organizado, o que poderá se observar é uma diminuição da violência no curto prazo com a prisão de criminosos suspeitos de integrarem as facções que atuam no país – com um risco significativo de perdas de vidas civis, que vivem em áreas controladas por esses grupos –, porém, isso tende a ser seguido por eventuais crises como essa no médio e no longo prazo, devido ao não enfrentamento das causas estruturais do problema; de forma semelhante ao que tem sido feito em outros países latino-americanos que lutam contra o crime organizado em seus territórios implementando políticas de segurança pouco eficazes.

 

Referências

 

BENAVIDES, G; GUERRERO, D. El Estado Ecuatoriano y El Crimen Organizado. Revista Academia de Guerra del Ejército Ecuatoriano, vol. 16. n. 1, abr. 2023. p. 110-121.

 

CALANCHE, G. Can a War on Crime Bring Relief to Ecuador?. International Crisis Group, 19 jan. 2024. Disponível em: https://www.crisisgroup.org/latin-america-caribbean/andes/ecuador/can-war-crime-bring-relief-ecuador. Acesso em: 3 fev. 2024.

 

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