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Análise Quinzenal
PET-REL

por João Paulo Urbano

 

    O Mercosul, como conhecemos, dificilmente atingirá seus objetivos. A integração latino-americana, tão almejada pelo grupo, tem colecionado diversos fracassos políticos, econômicos e institucionais, pouco avançando para a criação de um Mercado Comum de fato.  Desde a sua criação com o Tratado de Assunção em 1991, obstáculos materiais têm se sobreposto à vontade inicial dos países de promover os avanços desejados. Observa-se, portanto, uma crescente perda de força do Mercosul, resultando em um processo de integração praticamente estagnado (DA SILVA; DA SILVA, 2017). O histórico do bloco revela as dificuldades intrínsecas em promover a integração na América do Sul, especialmente por ser uma região marcada pelo subdesenvolvimento e desigualdades pronunciadas. Isso posto, é preciso compreender quais as dificuldades enfrentadas pelo MERCOSUL e destacar de que maneira as realidades econômico-políticas dos países-membros impedem o avanço da integração.

 

O desenvolvimento da economia-política do Mercosul

 

    O processo de integração do MERCOSUL foi marcado por incertezas que fragilizam as atividades do bloco. Limitações institucionais, ausência de políticas públicas nas mais diversas áreas e a inefetividade das instituições criadas, as quais possuem apenas caráter consultivo, como o Parlamento do Mercosul (PARLASUR) demonstram as dificuldades de avanço do processo integrativo. Aliado a isso, a completa ausência de capilaridade social do bloco, convergiu para o fracasso do plano integrativo e aprofundou a crise mercosulina, que não apresenta um horizonte concreto de superação (DA SILVA & DA SILVA, 2017).

   É preciso voltar à própria formação do Mercosul e analisar as reais possibilidades de se criar um Mercado Comum. Na prática, fatores estruturais e particularidades no plano nacional e regional se somaram para criar uma conjuntura de dificuldades inerentes a esse processo. As persistentes fragilidades e limitações institucionais mencionadas por Da Silva & Da Silva (2017) são diretamente decorrentes desses elementos. Em primeiro lugar, o fator determinante reside na própria formação histórica das economias da região. Os países latino-americanos passaram por um tipo específico de desenvolvimento capitalista, cunhado como capitalismo dependente. Essa especificidade do capitalismo latino-americano é um fator estrutural marcadamente presente na região, afetando diretamente as possibilidades do processo integrativo. O que se sucede, portanto, é que todos os países do bloco apresentam características de economias primárias exportadoras, com níveis baixos de industrialização e balanças comerciais desfavoráveis em relação às potências desenvolvidas.

    A criação de um mercado comum nessas realidades se torna necessariamente uma tarefa hercúlea, já que a baixa industrialização desses países faz com que todo acordo de liberalização do comércio necessariamente passe por um abandono de todo o protecionismo, tão necessário para alavancar o reduzido setor industrial de cada país. Para melhor ilustrar, pensemos em um exemplo prático. Caso se avance para uma realidade de mercado comum, as tarifas alfandegárias da maioria dos produtos precisariam cair. Em um cenário onde o processo integrativo aconteça entre países industrializados, a queda das tarifas alfandegárias geraria uma conjuntura em que as vantagens comparativas alavancariam as indústrias mais potentes de cada país. Este entretanto, não é o caso do Cone Sul. Na região mercosulina, inexiste a complexificação produtiva, isto é, não existe diversidade entre os ramos industriais, as indústrias mais fracas de cada país seriam engolidas pela entrada das indústrias mais fortes do país vizinho, e a pouca diversidade industrial se reduziria ainda mais. Na prática, foi exatamente esse o processo mercosulino.

    A título de exemplificação, isso ocorreu com o avanço agressivo do setor de carne de frango brasileiro nos países vizinhos. Como o Brasil é uma potência na indústria alimentícia, a liberalização do comércio intrabloco serviu para que esse setor adentrasse com toda a força nos mercados argentinos, paraguaios e uruguaios, promovendo uma política agressiva de dumping e eliminando assim qualquer concorrência das indústrias nacionais de cada país. Tal processo também ocorreu em outras esferas produtivas e contribuiu para o declínio das indústrias de cada país afetado.

    Essas assimetrias existentes, especialmente entre Brasil e Argentina em comparação com Uruguai e Paraguai, dificultam a criação até mesmo de uma união aduaneira plena. Na melhor das hipóteses, o Mercosul conseguiu estabelecer uma união aduaneira imperfeita. De um lado, os ramos da indústria que se adequaram à Tarifa Externa Comum (TEC) estabelecida para os países do bloco passaram pelo processo mencionado acima. Com a predominância do setor industrial do Brasil, a institucionalização da TEC resultou em uma grande expansão do mercado brasileiro, sem necessariamente ter uma contrapartida significativa principalmente dos mercados paraguaios e uruguaios. Por outro lado, os setores que não se adequaram à TEC foram salvaguardados pelo extenso protecionismo acordado para proteger aqueles que se sentiram mais ameaçados pela liberalização forçada do comércio (VAZ, 2002). É, portanto, difícil imaginar sequer uma união aduaneira plena nessa realidade, e pensar na criação de um Mercado Comum é uma ideia hoje completamente impensável.

 

O processo negociador e os interesses empresariais

 

    Essa base estrutural do desenvolvimento econômico-político do bloco fundamentou, portanto, o processo negociador em si. Compreende-se que as negociações para a construção do Mercosul ocorreram predominantemente no âmbito governamental-empresarial, com participação limitada de partidos políticos, parlamentos e, sobretudo, sem envolvimento social significativo (VAZ, 2002). Esse cenário estabeleceu uma preocupação primordialmente econômica para o bloco, permeada pelos interesses empresariais. Conforme salientado por Vaz, para compreender o processo negociador, é necessário considerar:

 

“(...) não apenas a crescente diversidade de autores e de interesses presentes na cena internacional e que, consequentemente, orientam processos de negociação em tal âmbito, mas também os fatores, tanto de ordem interna quanto de ordem externa, que atuam na redefinição dos interesses e no próprio comportamento dos Estados diante da possibilidade de cooperação internacional” (VAZ, 2002, p. 32).

 

    Em outras palavras, a significativa influência do empresariado nas negociações, aliada à ausência de influência dos movimentos sociais, mediou os interesses do processo e determinou, paradoxalmente, os limites da própria integração. Na prática, o interesse comercial, excluindo, dessa forma outros interesses sociais e políticos, conferiu ao processo de integração mercosulino uma incapacidade de se desenvolver plenamente. Temos, então, a continuidade de um processo quase que estritamente econômico, voltado principalmente para beneficiar o grande empresariado, especialmente o do Brasil e o da Argentina. Dessa forma, um ideal de integração que incluísse questões sociais, culturais e políticas foi deixado de lado em prol dos interesses das elites econômicas da região.

    Isto posto, a persistência de assimetrias e disparidades entre os países, contrárias portanto a qualquer interesse integrativo, demonstrou na verdade ser benéfica para essas mesmas elites que influenciaram o processo negociador. O desenvolvimento de um Mercado Comum implicaria na redução dessas assimetrias, o que não interessa em uma realidade de franca expansão dos setores industriais mais fortes. Prova disso foram as respostas dadas pelas empresas brasileiras em uma pesquisa do IPEA realizada em 2001, na qual foram observadas as opiniões dos industriais sobre as restrições existentes para o comércio interno no Mercosul. Uma das principais respostas, tanto no ramo siderúrgico quanto no setor de carnes de frango — setores de peso do mercado brasileiro —, foi a política antidumping imposta pelos países vizinhos. As empresas brasileiras compreendiam que conter a prática de dumping era um obstáculo fundamental para a política comercial do Mercosul. Em outras palavras, o interesse era conquistar o mercado dos países vizinhos sem dar qualquer chance para as empresas nacionais de cada país do bloco (KUME et al., 2001).

    O beneficiamento do empresariado brasileiro se expressa claramente no crescimento econômico do Mercosul ao longo das décadas. O comércio intrabloco expandiu-se em uma proporção maior do que o comércio mundial desde a criação do Mercosul, e o Brasil, como a economia mais produtiva da região, representa 72% do PIB nominal do Mercosul, possuindo um PIB de US$2,67 trilhões, enquanto o Paraguai possui apenas US$41,3 bilhões (BENEVIDES, 2023). As assimetrias existentes são significativamente discrepantes e impedem, por exemplo, que os setores produtivos do Paraguai (a menor economia do bloco) possam sobreviver em um cenário de competição desigual. O que se observa é que os processos comerciais do Mercosul operam como um jogo de soma zero, em que um não ganha se o outro não perder (VAZ, 2002).

 

Desafios e impasses

 

    Esse predomínio brasileiro causa receios nos países vizinhos, conforme apontado por Marini (2012 apud MOTA FILHO, 2018) ao destacar traços do 'subimperialismo brasileiro'. Os países do Cone-Sul temem a imposição da presença brasileira e sua consequente projeção de poder (PECEQUILO; CARMO, 2015 apud RODRIGUES, 2018), fatores que contribuem para a retração do desenvolvimento de uma integração efetiva. Theotônio dos Santos (1973 apud MOTA FILHO, 2018) também destaca como a questão do subimperialismo determina que, em um processo de integração, as diferenças econômicas implicam necessariamente em diferenças de poder político. Conforme Mota Filho:

 

Ainda que na retórica dos acordos diplomáticos se preze pela afirmação de processos de integração “sem hegemonismos”, não há como negar que as assimetrias existentes mesmo em países dependentes [acarretem em hierarquias entre eles]. (MOTA FILHO, 2018, p. 157)

 

    Essas hierarquias também se refletem no plano institucional. Brasil e Argentina, como as principais potências do bloco, discutem inicialmente de maneira bilateral os acordos tratados no Mercosul para posteriormente envolver Uruguai e Paraguai nas negociações quadrilaterais (VAZ, 2020). Essa abordagem gera indícios de descontentamento entre os demais membros, afetando o avanço da integração de maneira mais ampla. Um exemplo disso é que nos últimos anos o Uruguai tem proposto a redução da TEC e uma maior flexibilização para comercializar com países fora do bloco, buscando seus próprios interesses comerciais com a China (URUGUAI [...], 2021).  Ao perceber sua posição minoritária no grupo, o Uruguai intercede em prol de seus interesses nacionais, contrapondo-se à primazia das relações intrabloco. Uma possível redução da TEC e flexibilização do comércio extrabloco, consequentemente, acabaria com a pouca força que restou ao Mercosul e comprometeria a própria lógica da União Aduaneira.

    Em resumo, as dificuldades no processo de integração do Mercosul são numerosas, e as soluções são escassas. O histórico do bloco evidencia as dificuldades estruturais no desenvolvimento nacional das economias da região. Em grande medida, as questões políticas e econômicas de cada país constituem os obstáculos principais no processo integrativo. As assimetrias entre os países e a submissão do desenvolvimento mercosulino aos interesses das elites econômicas são fatores que se somam e determinam os limites do processo integrativo.

    Nos próximos anos, as expectativas em relação a um aumento da relevância do Mercosul no plano regional são bastante baixas. Os problemas estruturais inevitavelmente dependem dos esforços internos de cada país para superar sua condição de dependência, visando a diversificação de seus setores produtivos e o fortalecimento de suas economias. As assimetrias no bloco exigem um esforço considerável e uma vontade genuína de equacionar o desenvolvimento nacional dos países menos desenvolvidos. No entanto, todos os indícios sugerem que essa nunca foi a intenção fundamental do bloco. Na prática, é possível esperar que, mantendo-se tudo mais constante e sem alterações radicais nas políticas econômicas internas de cada país, o Mercosul caminhe para ocupar um posto cada vez menos relevante na América do Sul.

 

REFERÊNCIAS

 

BAMBIRRA, Vânia. O Capitalismo Dependente Latino-Americano. Florianópolis: Insular, 2012

BENEVIDES, H. F., Gabriel. Brasil responde por 72% do PIB nominal do Mercosul. Disponível em: https://www.poder360.com.br/economia/brasil-responde-por-72-do-pib-nominal-do-mercosul/ . Acesso em: 18 de nov, 2023. Às 16h06.

 

DA SILVA, Marcos Antonio; DA SILVA, Lucimara Inácio do Prado. O MERCOSUL e o novo momento político na América Latina: aprofundamento ou estagnação?. 2017

 

KUME, Honorio; ANDERSON, Patrícia; OLIVEIRA JÚNIOR, Márcio de. Identificação das barreiras ao comércio no Mercosul: a percepção das empresas exportadoras brasileiras. 2001.

 

MARINI, Ruy. O ciclo do capital na economia dependente. In: FERREIRA, Carla; LUCE; Mathias; OSORIO, Jaime. Padrão de reprodução do capitalismo: contribuições da teoria marxista da dependência. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 21-35.

 

MENEZES, Miriam Albene. ¿Será posible el Sur? América do Sul: integração e autonomia no contexto de globalização, 1990 – 2015. IN Latitud Sur N° 11, Año 2016. CEINLADI, FCE. UBA. ISSN 1850-3659. Publicado por: Facultad de Ciencias Económicas de la Universidad de Buenos Aires.

 

RODRIGUES, Bernardo Salgado. Mercosul: 25 anos de avanços e desafios. Revista Neiba, Cadernos Argentina Brasil, [S. l.], v. 5, n. 1, p. e27486, 2017. DOI: 10.12957/neiba.2016.27486. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/neiba/article/view/27486. Acesso em: 18 nov. 2023.

 

URUGUIAI propõe mudar regras do Mercosul, e países do bloco se desentendem. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/04/27/uruguai-propoe-mudar-regras-do-mercosul-e-paises-do-bloco-se-desentendem.ghtml>. Acesso em: 18 nov. 2023.

 

VAZ, A. C. . Cooperação, Integração e Processo Negociador: A Construção do Mercosul. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2002. v. 01. 308p .