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Entre o Peso e o Dólar: A ascensão de Javier Milei

João Paulo Urbano

O caótico cenário político da Argentina foi atravessado por uma onda de extrema-direita que invadiu o país e inverteu a ordem histórica da política nacional. Com a ascensão de Javier Milei, a Argentina viu suas duas forças mais tradicionais, o peronismo e o anti-peronismo, serem suplantadas por um grupo político caracterizado por serem 'outsiders', ultraliberais e autoproclamados 'anarco-capitalistas'. Na figura central de Milei, a extrema-direita emplacou uma derrota ao atual Ministro da Economia, o peronista de direita, Sérgio Massa, em uma eleição que inaugura uma nova era na política argentina. É a primeira vez desde a redemocratização, que um presidente eleito não estava estritamente atrelado às tradicionais correntes políticas do país.

Inspirado pela linha econômica da escola Austríaca, Milei foi eleito prometendo fechar o Banco Central e substituir o Peso como moeda para dolarizar o país (SQUIRES et al, 2023). Economista de formação, o presidente eleito centralizou seu discurso no plano econômico, já que a crise argentina se estende por décadas e a inflação se tornou cotidiana. 

Foi nesse contexto que cresceu no país o descontentamento com o Kirchnerismo (de Néstor e Cristina) e com a direita mais tradicional, protagonizada pelo ex-presidente Mauricio Macri. Tanto nos governos dos Kirchner como no governo de Macri, a insatisfação popular se deu pelos inúmeros casos de corrupção, altas taxas de inflação e desemprego, e, sobretudo, por um alto sentimento de frustração contra o establishment político, ou, nas palavras de Milei, "la casta" (Dos Santos, 2018).

Esse foi o cenário perfeito para o crescimento da extrema-direita. Ao se apresentar como "outsiders" e demonstrar insatisfação com a situação econômica do país, Milei e seu grupo conseguiram conquistar uma juventude que passou a maior parte de suas vidas em um país em crise. Esse apoio da juventude, no entanto, rapidamente se transformou em um apoio transversal, com diferentes partes da população, de diversas regiões, classes sociais e idades, acreditando que o programa de Milei merecia um voto de confiança (VÁZQUEZ, 2024). Com um forte apoio nas redes sociais, Milei e sua equipe souberam se comunicar com essa juventude insatisfeita. Em comparação a Massa, Milei tem mais de 18 vezes o número de seguidores em sua conta no TikTok. Nas ruas, os apoiadores de Milei se envolveram em uma "batalha cultural", na qual buscaram disputar as práticas agitativas tradicionalmente ligadas à esquerda (VÁZQUEZ, 2023). Esse conjunto de forças resultou na perpetuação de uma "derecha popular" que prega um "liberalismo de bases populares" e terminou por de fato conquistar as camadas baixas e médias da população argentina (VÁZQUES, 2023).

Explicar a ascensão de Milei e do movimento político na Argentina é uma tarefa complexa que não pode ser concluída dentro dos limites desta análise. No entanto, aqui, procuraremos refletir sobre e destacar alguns pontos essenciais do fenômeno ocorrido no cenário argentino. Por um lado, é necessário compreender a história recente do país, que passou por anos de crises sem solução. Por outro lado, é fundamental observar como Milei e seu grupo aproveitaram essa conjuntura para promover seu projeto ultraliberal. Nesta análise, busco apenas iniciar o debate sobre a ascensão da extrema-direita argentina, sem a pretensão de esgotar as discussões.

A história de uma crise histórica

Desde o início da ditadura militar de 1976, iniciou-se um acelerado processo de desmantelamento dos setores industriais produtivos e um esfacelamento do mínimo de seguridade social alcançado nos anos do peronismo. A miséria e a desigualdade herdadas da ditadura militar foram seguidas por governos neoliberais que apenas aprofundaram o estado de crise. As dívidas externas adquiridas no período ditatorial passaram a marcar a política nacional. As constantes negociações perante o FMI visando a renegociação da dívida se fizeram presentes em todos os governos subsequentes (DOS SANTOS, 2018).

Desde os anos de Carlos Menem, presidente argentino entre 1989 e 1999, as medidas neoliberais tomadas na época enfraqueceram a moeda nacional, o Peso, e criaram uma conversibilidade insustentável com o Dólar. A consequência foi uma dolarização indireta que enfraqueceu o poder de compra dos argentinos. Uma vez que a conversibilidade não poderia mais ser sustentada, a crise se agravou ainda mais. A situação chegou a um cenário tão crítico que, em 2001, já no mandato posterior de Fernando De La Rua, o país se viu afundando devido à dívida, e a população tomou as ruas contra a onda neoliberal que assolava o país (DOS SANTOS, 2018). 

A crise foi tão intensa que De La Rua foi deposto, e os presidentes que assumiram após sua deposição não conseguiram se manter no cargo. No que ficou conhecido como "Argentinazo", o país teve 5 presidentes em um período de 1 semana (EL ALI, 2021). Aqui, é interessante analisar a contradição presente nesses processos. Menem era um peronista, enquanto De La Rua era um anti-peronista convicto. Entretanto, os dois presidentes mantiveram o mesmo ministro da economia, Domingo Cavallo, mantendo a mesma política econômica e aprofundando a crise ao longo dos anos (DOS SANTOS). "La casta" política, que Milei costuma apontar, é entendida por esses grupos tradicionais, que, mediante seus programas políticos em teoria antagônicos, apresentam as mesmas políticas quando chegam ao poder.

Os anos subsequentes, entretanto, marcaram o surgimento de um novo tipo de peronismo, que ganhou vida própria: o Kirchnerismo. Dentro de uma conjuntura internacional favorável, com o boom mundial das commodities e o início da onda progressista na América do Sul, o governo de Néstor Kirchner, de 2003 a 2007, alcançou uma rápida aceleração econômica, aliado a programas de cunho assistencialista. Em um primeiro momento, o país declarou moratória perante a dívida, o que permitiu redirecionar o dinheiro destinado ao pagamento da dívida, possibilitando um maior investimento nos setores produtivos do país. Kirchner, então, conseguiu diminuir a desigualdade, o desemprego e obteve uma redução drástica da inflação. Em um segundo momento, a dívida foi renegociada com êxito, conferindo a Kirchner um forte apoio popular (DOS SANTOS, 2018).

Com o fim do boom das commodities, as medidas econômicas até então sustentadas principalmente na expansão do setor primário se mostraram insuficientes para superar a crise no país. Agora, no mandato de Cristina Kirchner, de 2007 a 2015, os mesmos problemas de antes retornaram à política nacional. Na prática, esse período de crescimento econômico não desafiou a estrutura de dependência do capitalismo argentino e, em vez disso, apenas reforçou o processo de desindustrialização do país diante do crescimento do setor agroexportador. Segundo o professor Fabio dos Santos:

Em síntese, analisando o perfil da economia e das relações de trabalho durante os governos Kirchner, observa-se que o padrão de acumulação legado pelas reformas que remontam à ditadura se perpetuou, a despeito de melhoras que têm como referência comparativa a crise mais grave que o país já viveu. (..) Sob o kirchnerismo, o motor da economia argentina foi a exportação primária, notadamente a soja, acompanhada por hidrocarbonetos e um inédito crescimento na exploração de minérios. (DOS SANTOS, 2018.)

O fortalecimento do agronegócio custou muito caro aos Kirchner. Notavelmente, os latifundiários argentinos, ao serem fortalecidos por políticas que valorizavam a venda de produtos primários, passaram a ser uma classe política determinante no cenário nacional. No governo de Cristina, uma proposta de aumento da tributação do superlucro do agronegócio dividiu o país e uniu o patronato rural contra o governo. A proposta foi aprovada no congresso e levada para o senado, onde foi recusada. O voto de minerva caiu nas mãos do vice-presidente de Cristina, que recusou a proposta, dando a vitória ao agronegócio. Desde então, a classe latifundiária do país tem crescido como um polarizador da política argentina, possuindo um caráter notadamente anti-peronista e reacionário. Não à toa, o desgaste político ocasionado pela crise econômica e pelo enérgico embate com os latifundiários abriu caminho para a eleição de Maurício Macri, um político da direita liberal (DOS SANTOS, 2018).

Macri, seguindo a cartilha econômica da direita, contribuiu para aprofundar ainda mais a crise no país. A dívida externa voltou a aumentar, e o número de desempregados cresceu para cerca de 1,5 milhão de argentinos (CENTENERA, 2016). Macri foi sucedido por Alberto Fernández, que tinha Cristina Kirchner como vice-presidente. Fernández também falhou em encontrar soluções para a crise, que se agravou, especialmente no cenário da pandemia de COVID-19. Nas ruas, a insatisfação com "la casta" cresceu cada vez mais. Fernández enfrentou a resistência da direita, que via as medidas protetivas relacionadas à pandemia de COVID-19 como uma "tirania comunista". O distanciamento social era considerado uma tentativa de reprimir a juventude insatisfeita de manifestar seu descontentamento (VÁZQUEZ, 2024). O kirchnerismo perdeu força, permitindo que outras forças políticas ganhassem destaque. Novamente, na Argentina, a sucessão de grupos tradicionalmente históricos e supostamente antagônicos foi incapaz de resolver a crise econômica. A alternância de poder na teoria representava, para a população argentina, a continuação da crise e da estagnação.

Milei e o Abismo da Extrema-Direita

Nesse cenário de instabilidades políticas, não foi surpresa notar o crescimento da extrema-direita argentina. Acompanhando o movimento internacional, Milei é para a Argentina o que Bolsonaro é para o Brasil e Trump para os Estados Unidos. As semelhanças entre esses movimentos são evidentes e não é à toa que Milei e sua base militante reivindicam abertamente os governos de Bolsonaro e Trump como experiências políticas positivas.

Por outro lado, Milei tem suas peculiaridades que definem a identidade do movimento ultradireitista argentino. Com o cabelo sempre desalinhado, um jeito escrachado e direto de falar, Milei ganhou popularidade ao criticar os grupos tradicionais argentinos e prometer mudanças, principalmente no campo econômico. Entretanto, o presidente construiu em torno de si um personagem extremamente caricato que foi essencial para diferenciá-lo dos políticos tradicionais. Uma das maiores expressões desses momentos, foi quando o presidente, afirmou que o espírito de seu falecido cachorro Conan ainda o acompanhava todas as noites e o aconselhava em suas decisões (JAVIER…, 2023). Esse movimento serviu para consolidar a popularização de Milei transformando-o no principal candidato das eleições e consequentemente, em presidente eleito.

Além desse aspecto mais "teatral", o que o presidente e seu grupo conseguiram na prática foi de fato bastante eficaz. Reconhecer que a insatisfação popular com a economia era o cerne da política argentina fez com que Milei elevasse o tom contra as medidas econômicas atuais. Ele foi um dos poucos candidatos a demonstrar verdadeira insatisfação com a direção do país. Ao contrário de Massa, seu oponente no segundo turno, que, por ser o atual Ministro da Economia, enfrentava uma contradição bastante óbvia - se já era o Ministro da Economia atual, por que não resolveu a crise? -, Milei reforçou em seus discursos soluções simples e diretas. Culpou o Banco Central (BC) e prometeu encerrar as atividades do BC. A partir disso, também prometeu abandonar o Peso e adotar exclusivamente o Dólar como moeda na Argentina. Por mais incertas que essas medidas possam parecer na prática, os cidadãos argentinos, saturados das mesmas "soluções" de sempre, viram em Milei um candidato que trazia algo diferente.

A direita argentina soube, sobretudo, capitalizar uma nova geração de jovens que, desde que nasceram, testemunharam a Argentina passar por inúmeras crises e uma forte instabilidade política. Para os filhos de uma classe média mais bem remunerada, a solução para um futuro melhor é sair do país para estudar e trabalhar no exterior. A Argentina de hoje não oferece oportunidades atraentes para esses jovens. Como mencionado anteriormente, Milei soube utilizar as redes sociais para adotar uma linguagem que se conectava com a juventude e foi extremamente bem-sucedido nesse empreendimento. Ao lado de Milei, um casal de jovens influenciadores opera como os responsáveis pelo seu marketing nas redes. Iñaki Gutiérrez, de 23 anos, e sua noiva, Eugenia Rolón, de 21 anos, desempenham um papel fundamental nessa estratégia. Gutiérrez costuma aparecer nos vídeos do TikTok fazendo perguntas diretas a Milei sobre medidas econômicas, opiniões sobre propostas de candidatos e avaliações das medidas do governo atual. As respostas são sempre fornecidas de maneira simples e direta, transmitindo a ideia de um presidente que "joga limpo" e explica os problemas e soluções econômicas de maneira clara e objetiva.

Já Rolón se define no Twitter como uma militante de direita e do antifeminismo. A capa da sua rede social apresenta uma foto de Trump, Bolsonaro e Milei atrás das respectivas bandeiras de seus países. Rolón também desempenha um papel ativo na campanha online e afirma que Milei fornece respostas que nenhum outro político argentino conseguiu dar. O sucesso do presidente é observado quando se compara os seus números com os dos outros candidatos. A conta de TikTok de Milei possui cerca de 1,5 milhão de seguidores, enquanto a de seu oponente, Sérgio Massa, tem apenas 238 mil. 

Outro traço reivindicado por Milei é o seu desprezo pelas pautas sociais. Nesse aspecto, o movimento que o presidente argentino apoia é bastante semelhante ao que representa o Bolsonarismo no Brasil. Todas as pautas associadas à esquerda e aos movimentos sociais são rejeitadas e desqualificadas como preocupações “de comunistas”. Milei se posiciona contrariamente ao feminismo e também contra o aborto legal, conforme foi aprovado recentemente na Argentina. No entanto, muitas mulheres que participaram do movimento pela descriminalização do aborto acabaram votando no atual presidente entendendo que a economia era a questão central.

Milei também viralizou em um vídeo no qual remove adesivos representando os ministérios do país, jogando-os fora um por um e deixando apenas aqueles que, em sua visão, seriam essenciais. O Ministério da Educação foi descartado, pois, nas palavras de Milei, era considerado um “Ministério de Doutrinação". Os ministérios relacionados à seguridade social também foram descartados, sendo acusados de prejudicar o desenvolvimento do país. No final, restaram apenas ministérios como o da Economia e da Defesa, baseando-se na clássica concepção de que o Estado deve interferir o mínimo possível na economia e permitir que o livre mercado atue.

Conclusão

Por mais peculiar que pareça, a ascensão de uma figura como Javier Milei no cenário político da Argentina é mais bem compreendida ao considerar os contextos históricos que levaram a essa vitória. Um país que enfrenta anos de crise, no qual os grupos políticos tradicionais não conseguiram oferecer soluções eficazes para a população, abre espaço para figuras como Milei ganharem força. Seguindo as tendências extremistas que influenciaram o cenário internacional, Milei traz uma nova perspectiva para a extrema-direita na região e contribui para o que pode ser a nova onda de extrema-direita da América Latina.

Com uma significativa parcela da juventude ao seu lado e as classes médias e baixas reivindicando para si um “liberalismo de bases populares”, a extrema-direita está ganhando força e demonstra, na prática, que deixa os grupos tradicionais de esquerda desorientados e perdidos na ação política concreta. No entanto, como vimos com Bolsonaro no Brasil, o custo humano da extrema-direita no poder é extremamente alto. Milei no poder é a representação do que há de pior na política latino-americana; sua vitória é, em grande medida, a derrota da Argentina.

Referências

CENTENERA, M. Argentina tem 1,4 milhão de novos pobres desde que governa Macri. 2016. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/04/01/internacional/1459536107_743633.html. Acesso em: 18 nov. 2023.

EL ALI, J. Cinco presidentes en 11 días, una prueba a la institucionalidad argentina. 2021. Disponível em: https://www.telam.com.ar/notas/202112/577669-dos-semanas-cinco-presidentes-institucionalidad-argentina.html. Acesso em: 18 nov. 2023.

 

JAVIER Milei, candidato à presidência da Argentina, tem clones de seu cachorro que morreu em 2017. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/10/24/javier-milei-candidato-a-presidencia-da-argentina-tem-clones-de-seu-cachorro-que-morreu-em-2017.ghtml. Acesso em: 18 nov. 2023.

 

SQUIRES, S. et al. Milei promete pagar dívida da Argentina, fechar BC, deixar Mercosul e romper com a China. Disponível em: https://valor.globo.com/mundo/noticia/2023/08/16/milei-promete-pagar-divida-da-argentina-e-fechar-banco-central.ghtml. 2023. Acesso em: 18 nov. 2023.

 

VÁZQUEZ, Melina. "242 “Change Is to the Right” Youth Participation and “New Right-Wing Formations” in the 2018–2021 Cycle." In Argentina's Right-Wing Universe During the Democratic Period (1983–2023) Processes, Actors and Issues, pp. 242-258. Routledge, 2024.

 

______. Los Rappi de Milei. 2023. Disponível em: https://www.revistaanfibia.com/los-rappi-de-milei/. Acesso em: 18 nov. 2023.