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Aborto e feminismo: a frágil mudança social e política na América Latina

 

Por Marina Morena Caires

 

Na última década, muitos movimentos populares lutaram pela descriminalização e legalização do aborto na América Latina. Muitos deles foram liderados por grupos feministas.  A Maré Verde (Marea Verde), um movimento de luta pelo direito ao aborto que usava de lenços e bandeiras verdes, na Argentina e México, por exemplo, enaltece a dimensão e o poder transformador dessas manifestações.  

Apesar disso, a luta pelos direitos reprodutivos das mulheres latino-americanas atravessa diversas questões. Como as regionais e históricas, exemplificada pela forte religiosidade da população e o sistema patriarcal herdado de uma colonização, e as questões legais, assim como a dificuldade de respaldo em instrumentos de direito internacional. Dessa forma, a seguinte análise busca discutir como as crescentes pautas feministas das mais diversas vertentes, em especial o  direito ao aborto, alinham-se a um processo que pode ser analisado como decolonial dentro das sociedades latino-americanas, conduzindo-as a profundas mudanças sociais e políticas. 

 

As leis sobre o aborto na América Latina

    

De acordo com dados do Abortion Worldwide 2017, a incidência mais alta de abortos do mundo se encontra na América Latina e no Caribe: 44 abortos para cada 100 mulheres (JAIME, VALDIVIA, 2020). Além disso, a maioria dessas mulheres pertencem a classes socioeconômicas mais baixas ou são socialmente vulneráveis. A ilegalidade e a falta de acesso à informação e a procedimentos seguros perpetua a descriminação de um sistema classicista, racista e excludente (KARJNE et al., 2019 apud JAIME, VALDIVIA, 2020).

Países diferentes possuem abordagens diferentes. Sobre a legislação do aborto, alguns optam pela criminalização enquanto outros permitem casos de não-punibilidade.  (WECHSELBLATT, 2020). Esse seria o caso do Brasil, Colômbia, Argentina e Chile e na grande maioria dos países, no entanto, o aborto legal se mantém restrita a poucos casos como o de perigo a vida da mãe, perigo à saúde física ou mental. Há países que não aceitam nenhum tipo de aborto como El Salvador, Nicarágua, Haiti e Honduras (WECHSELBLATT, 2020). 

Em 2020, o aborto até a 14ª semana foi legalizado na Argentina. No Uruguai, o direito ao aborto até a 12ª semana existe desde 2012. Em Cuba, o direito data de 1965, limitado à 10ª semana. E há outros casos pelo mundo. Enquanto isso, na Colômbia e em partes do México a descriminalização por um determinado tempo já é realidade. 

Em locais como Barbados e Belize, o aborto legal pode ser feito em todos os casos acima, adicionando as razões socioeconômicas como possível fator (JAIME, VALDIVIA, 2020). Em poucos países nos quais o aborto é permitido em certos casos o estupro e o incesto são considerados para um aborto legal (JAIME, VALDIVIA, 2020).

 

As diretrizes internacionais sobre o aborto

 

Um tema frequente na legislação internacional sobre o  aborto é a confecção e ratificação de textos com definições gerais e vagas sobre o assunto. Isso permite a adesão das mais diversas partes, sem uma decisão concreta. Consoante à explicação de Wechselbatt (2020), esse vazio legal é encoberto posteriormente por outros mecanismos e acordos, como se vê nos instrumentos fundadores da própria Declaração Internacional dos Direitos Humanos (DIDH). Os Comitês das Nações Unidas, que dão seguimento aos tratados, analisam casos particulares e terminam por tomar decisões mais incisivas. 

    

Um exemplo é o Comitê de Direitos Humanos (CDH), que recomendou a vários países a descriminalização do aborto, assim como seu acesso em determinadas circunstâncias, como em caso de perigo à vida e à saúde da mulher ou menina, de estupro ou incesto e quando levar a gravidez até o fim do termo pode gerar sofrimento considerável. (WECHSELBATT, 2020). São recomendações e resoluções como essa que dão respaldo e base à luta pelos direitos reprodutivos de mulheres ao redor do mundo, seja por meio de criação de novos parâmetros, seja pela quebra de antigas concepções. 

Tal lógica também é válida para as instituições regionais como a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CtIDH), que julgou casos que criaram precedentes e marcos normativos para a questão do aborto na América Latina, sem interferir nas legislações nacionais. Assim foi o caso Artavia Murillo v. Costa Rica, no qual foi discutido o direito da vida de um embrião, que reforçou que o Artigo 4º da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), o qual afirma que o direito à vida que geralmente deveria ser protegido a partir do momento da concepção, era inválido para todos os casos (WECHSELBATT, 2020). Assim, abrindo caminho para uma possível discussão do direito ao aborto.

 

 

As questões sociais e políticas do aborto na América Latina

        

    A partir dessa análise normativa, a luta pelos direitos reprodutivos pode aparentar ter como objetivo principal  mudanças jurídicas e legislativas dos países. Contudo, esse é apenas um aspecto dentro das metas de um processo de mudança social e político muito maior. 

    Construída em bases fortemente patriarcais, racistas e religiosas, a América Latina enfrenta primeiramente a sua negligenciada e urgente necessidade de reconhecer e acolher grupos historicamente oprimidos e marginalizados socialmente. No caso do aborto, são justamente as mulheres de grupos étnicos minoritários, campesinas e trabalhadoras pobres quem morrem, sofrem danos ou vão para a cadeia por abortos ilegais (LAMAS, 2008). Pior ainda,  qualquer maternidade imposta ou forçada, especialmente nas condições de pobreza em que vivem a maioria das latinas, resulta em uma “estrutura de desvantagens”, as quais perpetuam essa exclusão e descriminação (LAMAS, 2008). Dessa forma, o aborto é defendido não só como uma direito que assegura a autonomia da mulher sobre seu próprio corpo, mas também um que interfere na saúde pública, podendo protegê-las de abortos ilegais com sérios riscos, auxiliá-las com o acompanhamento físico e psicológico necessário e, também, quebrando um ciclo de possível perpetuação dessa “estrutura de desvantagens”. 

    Ademais, as fortes raízes religiosas, principalmente católicas, na região criam um empecilho não só social, como também político na caminhada em prol da descriminalização e da legalização do aborto, pois, mesmo em países laicos, essa formação religiosa tem um peso significativo. Na década de 90, a agenda internacional nas Nações Unidas nas conferências da População e do Desenvolvimento, no Cairo em 1994, e a da Mulher, em Beijing, 1995, sofreu grande pressão de atores do Vaticano que promoviam uma agenda teológica nos assuntos de sexualidade e reprodução (LAMAS, 2008). 

    Essas diretrizes da Igreja se transportaram aos espaços políticos latino-americanos também. Em 1997, em El Salvador, pressões do Vaticano e de grupos religiosos de direita unidos a partidos políticos promoveram um projeto de lei que derrubou os casos de exceções ao aborto garantidos pelo Código Penal (CRLP, 2000 apud LAMAS, 2008), além de implementar diversas outras normas que penalizavam o aborto e direitos que protegiam as gestantes.

    Na América Latina onde, em 2020, de acordo com dados do Statista (2021), 57,1% da população em 18 países eram católicos e outras 19,1% evangélicas, a influência cultural e política da religião é indiscutível. Até em países onde as leis de aborto chegaram a ponto de grandes avanços, como o Uruguai, não há escapatória dos estigmas sociais. Lá, mesmo com a legislação completando mais de 10 anos, ainda existem fortes movimentos, inclusive de ginecologistas e profissionais de saúde conservadores, que buscam retrocedê-la ao mesmo tempo que o movimento feminista se articula para promover uma evolução dela, sanando seus atuais problemas (CAMPANELLA, 2023). 

 

    O feminismo e as perspectivas decoloniais nas frágeis mudança social

 

    As conquistas dos mais diversos movimentos feministas em toda a América Latina na pauta do aborto se tornam um estudo de caso para demonstrar o longo caminho a ser percorrido e a fragilidade das vitórias já alcançadas. Isso se dá devido à luta social constante contra os ideais patriarcais, derivados da colonização, que vem antes e depois da legislação. 

    Uma das grandes conquistas do feminismo moderno foi o questionamento da separação do que seria o público e o privado, investigando as formas de poder construídas e perpetuadas em cada um desses espaços e como elas se conectam (ENLOE, 2007). A própria divisão clássica binária do DIDH entre esfera pública e privada prejudicou e prejudica historicamente as mulheres (WECHSELBLATT, 2020). Tudo isso para elucidar como as violências sofridas pelas mulheres muitas vezes permeiam o que seria considerada a esfera privada, a qual, em uma visão liberal eurocêntrica, não podia ser tocada pelo Estado ou pelo público. 

    Assim, começa a se casar o feminismo latino-americano, em diversas das suas plurais vertentes, com a perspectiva das teorias decoloniais. O aborto constitui um dos debates que provavelmente melhor representa essa política sexual global (JAIME, VALDIVIA, 2020). É fato que o controle sobre os corpos das mulheres se transforma em uma questão de segurança estatal e estabilidade global, no que tange diversas questões de saúde, guerra e paz e relações internacionais (ENLOE, 2007). Com essas noções já calcadas, os movimentos latino-americanos precisam pensar nas opressões e as soluções particulares da região. O feminismo ocidental europeu, que muitas vezes pautou a “mulher do terceiro-mundo” como uma sem agência e liberdade, passa a ser descartado (BALLESTRIN, 2021). 

    Nasce aqui a luta que pensa as interseccionalidades e contexto da América Latina, moldando uma nova episteme que, consoante as ideias de Grosfoguel (2008), seria pensada por latino-americanas para tais.  Dessa forma, chegando aos poucos a uma relativa independência das restrições do Norte Global. No caso do aborto, o escape de mecanismos como a Lei da Mordaça criada pelos Estados-Unidos que impedia organizações beneficiadas por fundos americanos a não trabalhar o tema do aborto (JAIME, VALDIVIA, 2020).

 

    Conclusão

      

    Em 2023, todos os países latinos ainda têm um longo caminho a ser traçado na pauta sobre o aborto, desde os que o restringem e o criminalizam completamente até os mais liberais. Nenhum dos marcos legais até o momento conseguiu resolver de forma satisfatória a questão de maneira que a assistência chegasse a todas as mulheres de forma igual e o direito ao aborto fosse amplamente alcançado. Assim, o movimento feminista ainda tem muito o que enfrentar dentro e fora da arena política. 

    Mónica Gorgoroso, ginecologista da saúde sexual e reprodutiva que trabalha em uma instituição estatal no Uruguai, conta que a pressão e o preconceito, principalmente em cidades pequenas, ainda é um problema (CAMPANELLA, 2023). Além disso, em entrevista para o EL PAÍS (2023), Yanina Roldán, de um grupo feminista chamado Las Lilas, relata que a divulgação do Estado do direito ao aborto e de como consegui-lo não existe e que esse direito continua sendo reforçado pelos movimentos feministas.

    Na Colômbia, em maio de 2023, uma decisão da Corte Constitucional põe em risco  o futuro progresso e as atuais vitórias da legislação de direitos reprodutivos femininos no país. Após o caso de uma jovem indígena a qual lhe foi negada a interrupción voluntaria del embarazo (IVE) ou o interrompimento voluntário da gravidez, a Corte afirmou que não é possível proclamar a IVE como um direito fundamental (DÍAZ, LEWIN, 2023). Mesmo que cada vez mais as mulheres ocupem cargos públicos e cresçam sua presença política na América Latina, elas não representam uma força substantiva para inclinar a balança, pois nem todas são feministas (LAMAS, 2008) ou alinhadas com as ideias de luta e superação das imposições patriarcais. Logo, é evidente a luta diária e imprescindível do movimento feminista que começa e termina na sociedade.

 

 

 

Referências

 

BALLESTRIN, Luciana Maria de Aragão. Introdução: uma leitura sobre a institucionalização das Relações Internacionais. Para uma abordagem feminista e pós-colonial das Relações Internacionais no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2021, p. 179-204.

 

CAMPANELLA, Gabriela Díaz. Legal, pero obstaculizada: la despenalización del aborto cumple 10 años en Uruguay. EL PAÍS, Montevidéu, 6 jan. 2023. Disponível em: Legal, pero obstaculizada: la despenalización del aborto cumple 10 años en Uruguay | Planeta Futuro | EL PAÍS (elpais.com). Acesso em: 18 jun. 2023. 

 

DÍAZ, Daniela; LEWIN, Juan Esteban. Una sentencia de la Corte Constitucional amenaza el derecho al aborto. EL PAÍS, Bogotá, 13 jun. 2023. Disponível em: Una sentencia de la Corte Constitucional amenaza el derecho al aborto | EL PAÍS América Colombia (elpais.com). Acesso em: 18 jun. 2023. 

 

ENLOE, Chyntia. Feminism. International Relations Theory for the Twenty-First Century: an introduction.  1ª ed. Londres: Routledge, 2007, p. 99-110.

 

GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economía política e os estudos póscoloniais. Eurozine, julho, 2008, 25p.

 

JAIME, Martín; VALDIVIA, Fátima. Política Sexual y religiones desde Latinoamérica: debates sobre el aborto en torno a la gubernamentalidad y la subjetividad. Mujeres, aborto y religiones en Latinoamérica: Debates sobre política sexual, subjetividades y campo religioso. 1ª ed. Lima: Martín Jaime e Fátima Valdivia, 2020, p. 13-47.

 

LAMAS, Marta. El aborto en la agenda del desarrollo en América Latina. Perfiles latinoamericanos, México, v. 16, n. 31, 2008, p. 65-94.

 

WECHSELBLATT, Luciana. El rol del derecho internacional de los derechos humanos en las estrategias de incidencias de los movimientos sociales pro-aborto. Revista Estado y Políticas Públicas, Buenos Aires, ano 8, n. 14, p. 131-154, maio de 2020.