A perpetuação do racismo no futebol europeu: principais implicações para as relações internacionais e dinâmicas de poder
por Natália Gráss
No dia 21 de maio de 2023 o jogador brasileiro Vinícius Júnior foi alvo de ataques de cunho racista enquanto jogava contra o Valencia. O jogador, que atua no Real Madrid desde 2018, foi chamado de “mono” (macaco) por toda a torcida e foi inclusive expulso de campo ao se livrar de um mata-leão aplicado pelo adversário Hugo Duro. A situação não foi a primeira. Torcedores do Atlético de Madrid já penduraram um boneco negro vestindo a camiseta como o nome e número de Vini Jr, simulando um enforcamento.
A partir desse contexto, a presente análise se centrará no racismo acometido no esporte, principalmente no futebol, enquanto organismo de manutenção das dinâmicas de poder que moldam as relações internacionais. Com isso, pretende-se compreender as razões do racismo e quais são as medidas que podem ser tomadas para que esse tipo de crime não ocorra, com ênfase no debate pós-colonial nas Relações Internacionais.
Raça e RI: um debate pós-colonial
O debate pós-colonial é centrado na perpetuação das relações de poder, sobretudo, centradas no diálogo norte-sul (JATOBÁ, 2013). De acordo com Karine Silva (2021), a política internacional possui como principal objetivo o estudo do poder, que pode ser definido como a capacidade de influenciar outros Estados ou impor sua vontade. Entretanto, considerando que por muito tempo o foco da disciplina foi centrada no estudo da relação entre Estados, os debates pós-coloniais surgiram para dar ênfase nas relações e estruturas de poder assimétricas entre povos (JATOBÁ, 2013).
Sendo essas relações de poder hierárquicas, o fato de não reconhecer o outro perpetuam a hegemonia. Quando se imagina o contexto internacional pode-se compreender que o processo histórico de diversas nações e povos seja de grande relevância para a realidade atual, também definido como path dependence, implica que as ações do passado podem restringir as ações no presente (PAGE; 2006). E com isso, a presença desses grupos, outrora desprezados, no contexto internacional define uma configuração de poder distinta. A comunicação e construção do saber (epistemologia) é uma das principais ferramentas de demonstrar poder, afinal, “falar é existir absolutamente para o outro” (FANON, 2008, p.33).
A teoria não deve ser somente um marco que guia e possibilita a produção de análises. Ela também é uma ferramenta, que permite o questionamento e transformação do mundo tal qual conhecemos e como queremos que se torne (SILVA, 2021). O estudo do pós-colonial permite produzir análises acerca de diversos locais e instituições, por isso e foi trazida aqui já que o esporte é um espaço de perpetuação de preconceitos, que devem ser combatidos com as medidas devidas.
Atuação da La Liga e o caso dos jogadores brasileiros
O futebol é uma importante representação da cultura, onde quer que seja jogado. O crescimento do esporte no mundo e sua profissionalização acabam agrupando pessoas de diferentes raças, classes sociais e nacionalidades em uma mesma esfera (CERVI, 2014). O contexto do esporte já foi definido como a síntese da dialética entre identidade nacional, globalização e xenofobia (HOBSBAWM, 2007).
O racismo no futebol europeu é notório e, de acordo com a Federação SOS Racismo, as denúncias de discriminação racial cresceram mais de 30% entre 2013 e 2021 na Espanha (SOUZA, 2023). A Espanha não é o único país onde a intolerância e o ódio são generalizados. Em 2021, a Grã-Bretanha prendeu 11 pessoas que proferiram abusos raciais a três jogadores negros da Inglaterra (Jadon Sancho e Marcus Rashford, do Manchester United, e Bukayo Saka, do Arsenal) durante um jogo contra a Itália na final do Euro 2020. Houve uma onda de apoio popular aos jogadores em toda a Grã-Bretanha, e o então primeiro-ministro Boris Johnson condenou o "ataque racista", e afirmou que os jogadores deveriam ser tratados como heróis nacionais (TIMES OF INDIA, 2023)
Em setembro de 2022, um convidado disse em um programa de TV que Vini deveria parar de dançar em suas comemorações, que deveria deixar de fazer 'macaquices'. Dois dias depois, em mais uma partida entre Real e Atlético, torcedores do time rival cantam do lado de fora do estádio: “Vinícius, você é um macaco”. Nenhuma medida foi tomada para resolver, ou reparar os danos sofridos pelo jogador.
Nesta quinta, 25/05, a La Liga, principal e mais importante liga de futebol na Espanha, afirmou que a intolerância e a violência não cabem no futebol - e que vai solicitar sanções penais mais severas aos responsáveis. O Real Madrid agradeceu as manifestações de carinho recebidas após o lamentável e repugnante ato de racismo, xenofobia e ódio contra o jogador da equipe, Vini Junior. A polícia da capital espanhola disse que abriu uma investigação para encontrar os responsáveis. A Comissão contra a Violência, Racismo, Xenofobia e Intolerância no Esporte da Espanha decidiu marcar uma reunião extraordinária na próxima segunda-feira, 30/05, para tratar do assunto.
Além dos absurdos cometidos contra o jogador, o presidente da La Liga, Javier Tebas, afirmou que o jogador exagerava nas acusações de negligência nos casos de racismo. o presidente do Conselho para Eliminação da Discriminação Racial ou Étnica (Cedre) do Ministério da Igualdade espanhol, Antumi Toasijé, afirmou que a legislação em vigor não consegue fiscalizar e punir os agressores de racismo de forma eficiente. Toasijé, afirmou ainda que o crescimento do racismo está conectado à insurgência da extrema-direita espanhola.
Um fato curioso é que embora a Espanha não possua uma lei anti racista, entretanto, possui a Comissão Estatal contra a Violência, o Racismo, a Xenofobia e a Intolerância no Esporte. Além disso, a lei 19/2007, especifica que os juízes de campo podem suspender provisoriamente as partidas para que se estabeleça a legalidade, algo que não ocorreu nos jogos em que Vinícius Júnior foi alvo de ataques racistas. A lei também prevê a aplicação de multas de 150 a 650 mil euros, proibição de frequentar estádios por até cinco anos para os infratores e suspensão do direito de sediar eventos desportivos por um período máximo de dois anos para os organizadores. Todavia, é evidente que a lei não é aplicada, pois casos como o de Vinícius e tantos outros seguem se repetindo. A partir dessa situação, pode-se compreender que instituições como a Liga Espanhola, a La Liga e a FIFA apoiam ou deixam de combater o racismo, que segue presente na Europa.
Repercussão e ações do governo brasileiro
No dia 23 de maio, os Ministérios de Igualdade Racial do Brasil e Espanha divulgaram uma nota conjunta sobre o caso de racismo ocorrido contra Vinícius Júnior. O documento ressalta "mais contundente e absoluta condenação ao racismo no esporte e à violência que ele gera, que constitui uma grave violação dos direitos humanos e perpetua a desigualdade e a discriminação em todos os âmbitos da sociedade". Além de condenar as atitudes e exigir providências cabíveis a gravidade do ocorrido, afirmando que as instituições cabíveis devem responder de forma mais incisiva aos casos de racismo, a fim de evitar a impunidade e garantir a proteção e reparação às vítimas.
Um fato curioso e contraditório é que no início do mês de maio os países assinaram um acordo intitulado Memorando de Entendimento de combate ao racismo, à xenofobia e a formas correlatas de discriminação. Um dos destaques do acordo é a disposição de que os países "prestem atenção especial ao combate ao racismo no esporte" (BRASIL…, 2023). Nos últimos meses, notícias sobre jogadores brasileiros vítimas de racismo em clubes europeus receberam atenção especial. A ministra de Igualdade Racial, Aniele Franco, afirmou que o acordo representava todos os negros e migrantes, espanhóis e brasileiros, com ssuas raízes. Entretanto, crimes dessa magnitude não podem passar impunes, sendo relevante destacar que um simples pronunciamento não resolverá sozinho a questão do racismo dentro e fora de campo.
O racismo estrutural é definido por Silvio Almeida (2019), como sendo a consolidação do preconceito e discrimimnação racial na sociedade. A partir dessa discriminação, privilegiam-se determinadas etnias, afetando inclusive, o funcionamento da sociedade (ALMEIDA, 2019). A partir disso, os signatários também devem avaliar o impacto do racismo estrutural na sociedade e promover pesquisas, pesquisas e estatísticas que reconheçam o impacto da discriminação na formação sociocultural. “Levaremos em consideração as avaliações de racismo sistêmico em várias áreas dentro de nossa esfera de responsabilidade, como educação, justiça, forças de segurança nacional e agências governamentais, e implementamos medidas de ação positiva”, reforçou a Ministra.
Conclusão
A partir do exposto, pode-se compreender a situação do racismo praticado no esporte como algo inaceitável e que necessita de medidas da mesma proporção que as ações causadas. Ainda que os países tenham apontado as medidas a serem tomadas é fundamental que essas atitudes sejam exemplo, para que não haja a repetição de casos como o praticado contra Vinícius Júnior. Além disso, é fundamental que as instituições europeias punam os culpados pelos casos de racismo, para que os demais compreendam que esse tipo de atitude não é aceitável em lugar algum, tampouco no contexto esportivo.
Além disso, uma simples conversa com a embaixadora espanhola não será suficiente para resolver a questão do racismo. Muito mais deve ser feito, cobrar respostas do governo espanhol é fundamental, a reparação, ou tentativas, também é urgente. O Ministério da Igualdade Racial deve, portanto, fazer com que os acordos e notas conjuntas sejam cumpridas, e as instituições envolvidas sofram penalidades.
Referências
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MINISTÉRIOS da Igualdade de Brasil e Espanha divulgam nota conjunta sobre caso Vini Jr. Secretaria de Comunicação Social. Disponível em:Ministérios da Igualdade de Brasil e Espanha divulgam nota conjunta sobre caso Vini Jr. — Secretaria de Comunicação Social (www.gov.br). Acesso em: 28 mai 2023.
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SILVA, Karine de Souza. “Esse silêncio todo me atordoa”: a surdez e a cegueira seletivas
para as dinâmicas raciais nas Relações Internacionais. Revista de Informação Legislativa:
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SOUZA, Nathalia. RACISMO NO FUTEBOL EUROPEU: Além de Vini Jr, relembre quais jogadores brasileiros foram alvos de ofensas. Polêmica Paraíba. Disponível em: RACISMO NO FUTEBOL EUROPEU: Além de Vini Jr, relembre quais jogadores brasileiros foram alvos de ofensas - Polêmica Paraíba - Polêmica Paraíba (polemicaparaiba.com.br). Acesso em 28 mai 2023.
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