Nathália Rabelo

 

No dia 17 de março de 2023, o atual Presidente da Rússia, Vladimir Putin, recebeu uma ordem de prisão pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) sob a acusação de cometer crimes de guerra na Ucrânia. Desta forma, cabe indagar a diferença de tratamento entre os dois presidentes das nações envolvidas no conflito, Rússia e Ucrânia, visto que o presidente russo, até o momento, foi o único entre os dois a ser investigado por atitudes criminosas que ambos os presidentes têm permitido em seus respectivos países. 

Logo, esta análise buscará  analisar a possibilidade do Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, ser investigado e condenado pelo Tribunal Penal Internacional, por crimes de guerra e contra a humanidade relacionados à guerra russo-ucraniana, assim como Vladimir Putin foi condenado à prisão pelo Tribunal por estes motivos, considerando o fato que nenhum dos países mencionados ratificou o Estatuto do TPI.

 

O Tribunal Penal Internacional

O Tribunal Penal Internacional, também chamado de Tribunal de Haia, é o primeiro tribunal internacional penal permanente. Composto por 18 juízes de diferentes países, sua atuação é autônoma e seu objetivo é julgar os chamados core crimes, apresentados no Artigo 5° do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, que são: o crime de genocídio ( explicitado no Art. 6°), os crimes contra a humanidade (Art. 7°), os crimes de guerra (Art. 8°) e o crime de agressão, que consiste nas graves violações a Convenção de Genebra de 1949 (BRASIL, 2002). 

O TPI é fruto de uma necessidade do Sistema Internacional de julgar tais crimes de forma imparcial, por uma instituição já estabelecida e preparada. Observou-se essa necessidade após o estabelecimento de dois Tribunais Penais Internacionais ad hoc,um para a ex-Iugoslávia (1993) e outro para Ruanda (1994). O sucesso destes tribunais no ordenamento jurídico internacional ao julgar e penalizar os responsáveis por crimes de genocídio e contra a humanidade levou a criação do Comitê Preparatório da Conferência das Nações Unidas sobre o Estabelecimento de um Tribunal Penal Internacional em 1996 (TRINDADE, 2010). 

Em 1998, a Conferência de Roma das Nações Unidas aprovou o Estatuto do TPI, e quatro anos depois ele entrou em vigor internacional. A jurisdição do TPI segue o princípio da complementaridade, ou seja, é complementar às jurisdições penais nacionais. Entretanto, o Estatuto estabeleceu também que os crimes que julga não podem prescrever por limitações do Estado, independente do tempo, visto que são de domínio do jus cogens, que são consideradas regras obrigatórias visto sua grande aceitabilidade por diversos atores e tratados internacionais,  o que trás efeito erga omnes, ou seja, que vale para todos (VARELLA, 2012).

O Estatuto de Roma foi criado com base no direito humanitário, ramo do direito internacional que define as regras e limites admitidos na guerra, como os direitos dos combatentes e dos civis, as ações e armas permitidas e o tratamento para presos de guerra (ibid. ). O Tribunal Penal Internacional tem sua jurisdição e seu próprio direito aplicável, mas não é hierarquicamente superior a nenhum tribunal nacional, ou seja, ele não pode interferir em uma situação quando quiser, e só pode agir quando o tribunal nacional não estiver com o caso, solicitar sua ação ou não for imparcial no julgamento. E também, não é superior a tribunais internacionais, como a Corte Internacional de Justiça, visto que seus trabalhos são complementares dentro do Sistema Internacional, afinal, cada um trata de um domínio do Direito Internacional (TRINDADE, 2010).

Outro ponto importante do Estatuto de Roma é a obrigação de cooperar pelos Estados-membros. Dessa forma, os mais de 120 países que ratificaram o tratado têm a obrigação de cooperar plenamente com o Tribunal e atender às solicitações judiciais para facilitar os processos e investigações, como por exemplo, o Art. 89, que obriga os Estados a dar cumprimento a ordem de prisão e entregar o indivíduo que se encontre em seu território (BRASIL, 2002). Caso um Estado não coopere neste sentido, a questão pode ser levada pelo TPI, que não pode exercer dentro da jurisdição de um Estado, à Assembleia dos Estados Partes (AEP) e ao Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), que teriam de tomar providências, sejam elas sanções econômicas, diplomáticas ou políticas (CARDOSO, 2012). 

O TPI não pode atuar em conflitos de Estados que não ratificaram o Estatuto de Roma, a não ser que essa questão seja objeto de remessa pelo CSNU, ou em casos específicos em que um dos Estados em conflito tenha ratificado o Estatuto e o outro não, sobressai a vontade daquele que ratificou (ibid.). Como supracitado, o caso da Rússia e Ucrânia foge a regra das duas formas: nenhum dos países faz parte do Estatuto. Entretanto, o que permitiu que o TPI iniciasse uma investigação sobre os crimes cometidos por Putin e outros membros de seu governo foi um pedido formal do governo ucraniano e declarações de autoridades ucranianas em 2014, reconhecendo a jurisdição do Tribunal para supostos crimes cometidos em seu território desde aquele ano; medida tomada quando a Rússia anexou o território da Crimeia e o governo ucraniano temia que ocorresse o mesmo em seu território (ÉPOCA…, 2022). 

No caso de Putin, dias após a invasão russa no território ucraniano, o promotor do TPI, Karin Khan, anunciou o início das investigações contra autoridades do governo russo. Cerca de um ano depois, o promotor anunciou a ordem de prisão do Presidente russo e da comissária de direito das crianças, Maria Alekseyevna Lvova-Belova, pela "deportação ilegal" de crianças ucranianas para o território russo e por iniciar um processo de repatriação destas crianças para serem vinculadas ao goveno russo (ENTENDA POR…, 2023). 

Putin teve o 36º mandado de prisão emitido pelos juízes do Tribunal desde sua criação. Putin foi o quarto líder de um Estado condenado pelo TPI, que já emitiu mandado de prisão contra o presidente do Sudão, Omar al-Bashir; contra o líder da Líbia, Muamar Kadafi; e contra o ex-presidente da Costa do Marfim, Laurent Gbagbo (PUTIN É…, 2023).

Além da acusação da deportação de crianças, as investigações apontam que os ataques à infraestruturas de energia ucranianas e o recurso à tortura constituem crimes contra a humanidade (ibid.). Entretanto, minutos após o anúncio do mandado de prisão, Maria Zakharova, porta-voz da Chancelaria russa, utilizou as redes sociais para denotar que as decisões tomadas pelo TPI não significam nada para a Rússia, que não é parte do Tratado e não tem nenhuma obrigação jurídica sob ele (ibid.).

É importante frisar que a agilidade do Tribunal em iniciar as investigações e emitir a ordem de prisão contra o Presidente da Rússia tem um forte significado internacional. Tanto por demonstrar um grau de urgência quanto por ser passível do seguinte questionamento: por que este caso específico foi tratado com tanta urgência enquanto outras guerras tão ou mais violentas fora do território europeu e do interesse estadunidense não receberam o mesmo empenho e agilidade do TPI? Embora não tenha valor jurídico para os russos, essa decisão tem um valor moral no sistema internacional, em especial para os países que participam do Tratado de Roma, visto que estes têm obrigação de entregar o Presidente russo caso ele se encontre em seu território.

 

O caso de Zelensky

Desta forma, é necessário analisar a nível individual o diferente tratamento que os presidentes destes dois países em guerra têm recebido na comunidade internacional. Enquanto Putin recebeu este mandado de prisão e é julgado constantemente por suas atitudes, Zelensky passou o ano fazendo viagens para encontrar outros chefes de Estado, muitas vezes portando símbolos neonazistas em suas roupas ou na equipe que o acompanha. Recentemente, por exemplo, Zelensky visitou o Papa Francisco, e inclusive o presenteou com um colete a prova de balas dos soldados ucranianos, utilizando uma roupa com o símbolo da Organização dos Ucranianos Nacionalistas. Essa Organização apoiou e lutou junto dos exércitos alemães nazistas na Segunda Guerra, e age até hoje nas Forças Armadas da Ucrânia utilizando símbolos neonazistas e com discursos ultranacionalistas de supremacia e violência na guerra contra a Rússia (G1, 2023).

Antes mesmo do início do conflito em 2022, Zelensky e as Forças Armadas da Ucrânia, que contam com militantes neonazistas do antigo Exército Insurgente Ucraniano e do Batalhão AZOV, integrados à força nacional da Ucrânia, constantemente atacavam os cidadãos russos na região do Donbass. Além disso, os cidadãos ucranianos que participavam de movimentos separatistas em Donetsk e Luhansk, também foram duramente atacados pelas Forças Armadas, o que o Presidente Putin chamou de “russofobia” e “primeiro passo para o genocídio” (OBSERVADOR, 2015). De 2015 até o início da invasão russa, Zelensky incitou esses ataques inúmeras vezes, o que levou à morte de milhares de russos (BBC, 2018).

Ademais, Zelensky influenciou e incitou milhares de civis ucranianos a participar do conflito armado após a invasão russa. Segundo Maristela Basso (2022), professora de direito internacional da Universidade de São Paulo, esse chamado feito por Zelensky não é proibido, mas põe a população em uma situação de praticamente suicídio, visto que a população não é treinada para usar os equipamentos de guerra e lutar contra exércitos (CNN, 2022). Esse chamado, como outras atitudes de Zelensky diante de sua população, como colocar bases militares em bairros residenciais, demonstra como o Presidente não está devidamente preocupado com a segurança e o bem estar da população ucraniana. 

Além disso, a Organização Human Rights Watch, que acompanha a situação na Ucrânia há muitos anos, informa em seus relatórios vários crimes ucranianos. Entre eles, o uso de minas e outros equipamentos proibidos em conflitos (HRW, 2023); as diversas evidências de tortura, maus tratos e assassinato de prisioneiros de guerra russos (HRW, 2022). Além de publicações nas redes sociais da Organização com relatos de não ucranianos que foram impedidos de entrar nos ônibus e trens que levavam os fugitivos para longe do conflito, outro sinal do desrespeito das autoridades ucranianas com a vida humana. 

Por fim, pode-se inferir destes casos diferentes crimes de guerra e contra a humanidade, incitados por Zelensky e autoridades do seu ciclo próximo dentro do governo. Logo, as acusações contra o presidente russo Vladimir Putin não devem ser vistas como uma via de mão única pelo Tribunal Penal Internacional, e os diversos crimes ligados a Zelensky devem ser também investigados e julgados pelos juízes competentes do TPI. 

Sendo assim, de acordo com o supracitado, Zelensky pode sim ser julgado pelo Tribunal Penal Internacional, como Putin foi. Essa conclusão se justifica sob os relatos de tortura e assassinato a prisioneiros de guerra, e o uso de armas de violência excessiva proibidas, claros crimes de guerra de acordo com o Estatuto de Roma. As acusações de crimes de genocídio contra os cidadãos russos e os separatistas na região do Donbass que merecem ser investigadas a fundo. As declarações incitando os civis a lutarem na guerra que ele foi ativamente parte responsável por ocorrer, sem se preocupar com seus cidadãos, sem ajudá-los a fugir dos territórios atacados e até mesmo impedindo pessoas de diferentes etnias de escapar; atitudes que podem configurar diferentes tipos de crimes contra a humanidade. Além do uso de símbolos neonazistas, em roupas e em fotos em suas redes sociais, o que não necessariamente configura um crime para o TPI, entretanto, a ideologia desses símbolos promovem gestos de ódio e discrimação condizentes com crimes em diversos países assinantes do Estatuto, que têm legislação complementar ao TPI.   



Referências: 

BASSO, Maristela. Zelensky também pode ser investigado por crimes de guerra, avalia professora. CNN BRASIL, 4 mar. 2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/zelensky-tambem-pode-ser-investigado-por-crimes-de-guerra-avalia-professora/ . Acesso em: 18 maio 2023.

 

CARDOSO, Elio. Tribunal Penal Internacional : conceitos, realidades e implicações para o Brasil. Prefácio de Marcel Biato. ─ Brasília : FUNAG, 2012

 

ENTENDA o que são a Corte Internacional de Justiça e o Tribunal Penal de Haia. CNN BRASIL, 16 mar. 2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/entenda-o-que-sao-a-corte-internacional-de-justica-e-o-tribunal-penal-de-haia/ . Acesso em: 18 maio 2023.

 

ENTENDA por que colocar Putin atrás das grades será missão (quase) impossível para o TPI. O Globo, 17 mar. 2023. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2023/03/entenda-por-que-colocar-putin-atras-das-grades-sera-missao-quase-impossivel-para-o-tpi.ghtml.  Acesso em: 19 maio 2023.

 

MAIA, Marriele. A ABERTURA DE INVESTIGAÇÕES DO TPI SOBRE A SITUAÇÃO DA UCRÂNIA. OPEU, 5 mar. 2022. Disponível em: https://www.opeu.org.br/2022/03/05/a-abertura-de-investigacoes-do-tpi-sobre-a-situacao-da-ucrania/ . Acesso em: 19 maio 2023.

 

O PAULISTA que trocou a vida no interior por linha de frente na guerra na Ucrânia. BBC, 25 jul. 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-44816555 . Acesso em: 19 maio 2023.

 

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA CASA CIVIL SUBCHEFIA PARA ASSUNTOS JURÍDICOS (BRASIL). DECRETO Nº 4.388, DE 25 DE SETEMBRO DE 2002. Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, 25 jul. 2018. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm.  Acesso em: 19 maio 2023.

 

PUTIN é o quarto chefe de Estado a receber ordem de prisão do Tribunal Penal Internacional. O Globo, 17 mar. 2023. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2023/03/putin-e-o-quarto-chefe-de-estado-a-receber-ordem-de-prisao-do-tribunal-penal-internacional.ghtml.  Acesso em: 19 maio 2023.

 

TRIBUNAL Penal Internacional diz que pode investigar possíveis crimes de guerra após invasão russa da Ucrânia. ÉPOCA, 25 fev. 2022. Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Mundo/noticia/2022/02/tribunal-penal-internacional-diz-que-pode-investigar-possiveis-crimes-de-guerra-apos-invasao-russa-da-ucrania.html. Acesso em: 19 maio 2023. 

 

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado., OS TRIBUNAIS INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEOS E A BUSCA DA REALIZAÇÃO DO IDEAL DA JUSTIÇA INTERNACIONAL, Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 57, p. 37-68, jul./dez. 2010 

 

UCRÂNIA: aparente abuso contra prisioneiros de guerra configuraria crime de guerra. HRW, 7 abr. 2022. Disponível em: https://www.hrw.org/pt/news/2022/04/07/ukraine-apparent-pow-abuse-would-be-war-crime.  Acesso em: 19 maio 2023.

 

UCRÂNIA. Putin adverte que "russofobia" é "primeiro passo para um genocídio". Observador, 9 dez. 2021. Disponível em: https://observador.pt/2021/12/09/ucrania-putin-adverte-que-russofobia-e-primeiro-passo-para-um-genocidio/ . Acesso em: 18 maio 2023.

 

UKRAINE: International Justice Response. HRW, 29 mar. 2023. Disponível em: https://www.hrw.org/news/2023/03/29/ukraine-international-justice-response.  Acesso em: 19 maio 2023.

 

VARELLA, Marcelo D., Direito Internacional Público, 2012

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