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A Crise Peruana: Perspectivas e Balanços

 

João Paulo Bezerra Urbano

 

No dia 7 de dezembro de 2022, o até então presidente eleito do Peru, Pedro Castillo, foi  retirado do poder, iniciando no país uma nova era de instabilidades e de rupturas democráticas. Para compreender a complexidade encontrada no processo do golpe se faz necessária a compreensão de muitos fatores, por isso, a presente análise não buscará realizar a totalidade da conjuntura peruana. 

De início, percebe-se que os processos peruanos demonstram uma similaridade com os processos políticos ocorridos na América Latina. O que o Peru demonstra hoje é uma típica conjuntura que insiste em se repetir na história recente do continente. Primeiramente, tem-se uma correlação de forças em que o presidente eleito é de esquerda e o parlamento é em sua maioria de direita, fazendo forte oposição ao Executivo. a isso, tem-se um cenário de forte crise política e econômica, e a impossibilidade do consenso entre as forças políticas do país. Diante disso, há um movimento em que as esquerdas atuantes no governo, tendem a ceder aos pontos mais centrais do seu programa, em prol de agradar as pressões das burguesias locais. O governo, ao se abster desse enfrentamento, se enfraquece diante do povo e se coloca numa posição de xeque. Sem o apoio popular, o governo fica suscetível a tomada de golpes, que acontecem, como no caso do Peru, com o véu da institucionalidade parlamentar, conferindo assim uma mudança de governo segura e sem maiores entraves para os golpistas.

No Peru, entretanto, algumas particularidades definem o processo e dão início ao movimento analisado. Uma dessas particularidades é um dispositivo constitucional, em que o governo eleito deve apresentar o gabinete ministerial ao parlamento, e o parlamento deve votar uma "moção de confiança”, em que se aprova ou não as escolhas feitas pelo executivo. Se por um lado, podemos pensar que tal dispositivo funcionaria na ideia do legislativo controlar o poder do executivo, na prática temos uma clara sobreposição das forças dos poderes (MARIN, 2021). Dentro da materialidade peruana, os congressistas eleitos historicamente possuem ligação com a direita, regra que se segue de maneira geral na América Latina. Dessa forma, esse dispositivo, tem servido ao longo dos anos para impedir os possíveis avanços da esquerda, uma vez que mesmo no cenário de um governo eleito, as dificuldades de superar esse dispositivo, diante de um congresso conservador, são enormes.

A partir desse contexto, visualizamos a primeira dificuldade que o governo Castillo teve ao tomar posse, e como era de se esperar, o primeiro gabinete montado, mais ligado às pautas a esquerda defendidas na campanha, foi sumariamente rejeitado pelo Congresso. Porém, o governo começa a demonstrar a inabilidade política em costurar dentro dessa conjuntura, e começou a apresentar escolhas questionáveis e problemáticas dentro do campo da própria esquerda (ARETE, 2023).

 Castillo, então, distante de apenas ceder pontos centrais, realizou um giro à direita, que custou a ele a perda dos setores populares que o elegeram. Dada a impopularidade dessas escolhas, em menos de 1 ano de sua posse, o governo foi obrigado a trocar o gabinete ministerial pelo menos 5 vezes. A escolha dos ministros surpreendeu diversos setores diante do nível de rebaixamento político oferecido nas substituições. Foram escolhidos uma série de ministros ligados à corrupção, alguns com histórico de violência contra a mulher, e em casos como a escolhida para o ministério da Mulher e Populações Vulneráveis, uma opositora ferrenha da igualdade de gênero assumiu o cargo. Também, no caso do Ministro dos Transportes, foi escolhido um defensor da máfia de transportes informais. Longe de oferecer as reformas à esquerda prometidas na campanha, Castillo, pelo contrário, ofereceu um recuo à direita que só fundamentou as bases para o golpe (MARIN, 2022).

    No dia 7 de dezembro, a crise peruana atingiu uma proporção diferente. Seria votado pela terceira vez, um impeachment ao presidente Castillo. Num movimento mais uma vez surpreendente, Castillo anunciou à imprensa que iria dissolver temporariamente o Congresso (GESTIÓN, 2022). Essa medida estabeleceu as margens necessárias para que as Forças Armadas peruanas, interpretassem a medida como conspiração contra o país, dando seguimento a prisão e consequentemente a condenação de Castillo, facilitando assim, o processo de impeachment, aprovado no mesmo dia no congresso. O presidente, preso, foi destituído e assim assumiu a vice-presidente, Dina Boluarte iniciando-se uma nova onda de protestos que incendiaram o país (CNN, 2023).

    Uma semana depois, no dia 15 de dezembro, o novo governo já protagonizou o que ficou conhecido como “O massacre de Ayacucho”, ocorrido na cidade de mesmo nome. Em uma ato contra o golpe de estado que destituiu Castillo, cerca de 10 civis foram mortos pelo exército nacional e outras dezenas ficaram feridas por tiros dos soldados (GLOBETROTTER, 2023). A região de Ayacucho, já representa uma chaga histórica para a realidade peruana. Na época da ditadura militar, foi a região mais atingida pelos assassinatos e torturas, sendo uma localidade majoritariamente indígena e camponesa e, portanto, costumeiramente relacionada com as guerrilhas peruanas pelas forças militares (GLOBETROTTER, 2023). Esse massacre foi o ponto que se iniciou abertamente uma repressão aberta aos movimentos populares que pregam a liberdade de Castillo e a renúncia de Boluarte. 

    Já em janeiro de 2023, o governo voltou a protagonizar cenas de repressão brutais em que o exército invadiu universidades, prendeu estudantes, impediu a entrada de advogados para lidar com os presos, censurou a imprensa, e eliminou as concentrações estudantis que convocavam a população para novos atos. Também em janeiro, Boluarte conseguiu ter a triste marca de mais de uma morte por dia desde a sua posse (MARIN, 2023).

    Nesse contexto, outro fator é visto com extrema preocupação pelos manifestantes. O governo de Boluarte, diante desse cenário de repressão total, mortes e impopularidade, apresenta um grande risco de também ser derrubado, porém, se for mantida as regras institucionais vigentes, quem assumiria seria o atual presidente do Congresso, um ultradireitista militar, reconhecido por seus atos de tortura e assasinato no período da ditadura, o general José Willians. Diante disso, os manifestantes, também pedem a renúncia de Willians, bem como a renúncia de Boluarte e a liberdade para Castillo (MARIN, 2023).

    É difícil prever quais são as próximas cenas desse processo histórico, contudo fica nítido como a complexidade dos atores e a complexidade histórica do país precisam ser levadas em sua totalidade para um entendimento mais aprofundado. De qualquer forma, o Peru segue enfrentando sua chaga histórica, contra a dependência econômica e política, e contra os velhos desmandos da burguesia nacional e de uma direita reacionária e conservadora. A esquerda precisa, por outro lado, realizar um processo severo de autocrítica, para conseguir superar as mazelas políticas do país, e não cair, como Castillo caiu, sem o apoio popular, tentando agradar a mesma burguesia que lhe golpeou. O cenário de morte e repressão, revela que a violência, enquanto demonstração de força política, é uma velha tática que está longe de ser superada. Entender a realidade peruana é, de forma geral, compreender também a realidade da América Latina que de certa forma passa por processos semelhantes ao do Peru.

    

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

ARETE, J. Peru: contradições galopantes em 100 dias de CastilloDisponível em: https://revistaopera.com.br/2021/11/09/peru-contradicoes-galopantes-em-100-dias-de-castillo/ . Acesso em: 10 abr. 2023.

 

Argentina y Perú: dos golpes blandos a favor de EEUU y la ultraderecha. Disponível em: https://estrategia.la/2022/12/11/argentina-y-peru-dos-golpes-blandos-a-favor-de-eeuu-y-la-ultraderecha/ . Acesso em: 10 abr. 2023.

 

CNN, D. Pedro Castillo é detido no Peru após tentativa frustrada de golpe. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/pedro-castillo-e-detido-apos-sofrer-impeachment-no-peru/ . Acesso em: 10 abr. 2023.

 

GESTIÓN, N. Pedro Castillo anuncia que “disuelve temporalmente” el Congreso para un Gobierno de emergencia | RMMN | PERU. Disponível em: https://gestion.pe/peru/politica/pedro-castillo-anuncia-que-disuelve-temporalmente-el-congreso-para-un-gobierno-de-emergencia-rmmn-noticia/?ref=gesr . Acesso em: 10 abr. 2023.

 

GLOBETROTTER. “Eles atiraram neles como se fossem animais”: o massacre de Ayacucho, no Peru. Disponível em: https://revistaopera.com.br/2023/01/06/eles-atiraram-neles-como-se-fossem-animais-o-massacre-de-ayacucho-no-peru/ . Acesso em: 10 abr. 2023.

 

Perú alzado: el pueblo pide que se vayan todos.Disponível em: https://estrategia.la/2022/12/13/peru-alzado-el-pueblo-pide-que-se-vayan-todos/ . Acesso em: 10 abr. 2023.

 

 PERUconfirma prisão de ex-presidente por tentativa de golpe; protestos devem retomar em janeiro. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/12/30/peru-confirma-prisao-de-ex-presidente-por-tentativa-de-golpe-protestos-devem-retomar-em-janeiro.ghtml . Acesso em: 10 abr. 2023.

 

MARIN, P. A sangrenta ditadura peruana ataca também os estudantes. Disponível em: https://revistaopera.com.br/2023/01/27/a-sangrenta-ditadura-peruana-ataca-tambem-os-estudantes/ . Acesso em: 10 abr. 2023.

 

MARIN, P. Peru: Castillo, de areia. Disponível em: https://revistaopera.com.br/2022/02/08/peru-castillo-de-areia/ . Acesso em: 10 abr. 2023.

 

MARIN, P. Peru: Congresso propõe formalmente destituição de Pedro Castillo. Disponível em: https://revistaopera.com.br/2021/11/29/peru-congresso-propoe-formalmente-destituicao-de-pedro-castillo/ . Acesso em: 10 abr. 2023.