MENU



Análise Quinzenal
PET-REL

por Isis Aquino


Recentemente, no dia 3 de dezembro de 2022, o FBI derrubou o servidor do site “Z Library”, um domínio virtual que armazenava mais de 11 milhões de livros e 84 milhões de artigos científicos e os disponibilizava gratuitamente, violando os respectivos direitos de publicação sob o viés legal. A operação foi, em grande parte, resultado da viralização do endereço na comunidade literária do TikTok. Diante da derrubada do site, debates sobre a pirataria da informação se recrudesceram, e criadores de conteúdo contemplavam as repercussões da violação da propriedade intelectual (JAVAID, 2022).


A discussão na rede social tomou, sobretudo, um rumo direcionado à disponibilização de romances por meios não oficiais, entretanto, os conteúdos disponibilizados no site eram utilizados principalmente para fins científicos e estudantis, se tratando de literatura didática (JAVAID, 2022). A medida corresponde a uma tendência crescente pela cassação de grandes Shadow Libraries, título dado a bibliotecas virtuais que pirateiam escritos pagos e os disponibilizam para livre acesso dos internautas (NATH, 2023). Em 2020, após a condução de um longo processo na justiça indiana, as gigantes Shadow Libraries Libgen e Sci Hub também foram impossibilitadas de fazer upload de novos materiais, estagnando sua atualização desde então (HINDUSTAN…, 2020).


A ideologia por trás da criação e manutenção de plataformas como essas, que vêm sendo duramente golpeadas pela campanha antipirataria, remonta a um movimento muito maior de reivindicações em torno da construção da ciência e das questões sociais atreladas a essas. A maioria das pesquisas sobre pirataria vem sendo financiada por grandes corporações, que unem os dados obtidos no seu lobby antipirataria e condicionam o debate nas últimas décadas aos seus interesses comerciais pela expansão do lucro, ignorando fatores de relevância social (KARAGANIS, 2011).


Nesse contexto, a presente análise busca ampliar o campo de visão em torno dos ideais de direito intelectual vigentes, a partir de uma abordagem que leva em consideração variáveis sociais relevantes e dados da área. A questão das shadow libraries será analisada em torno do histórico do movimento de reivindicação por livre acesso a literatura científica e, a partir dessa contextualização, do debate em torno da ética como eixo central de legitimidade.


Open Access Movement


Dentro do meio científico, pesquisadores vêm questionando a maneira como as produções são disponibilizadas. Muitas vezes mediante acessos pagos ou institucionalmente associados, estudantes têm dificuldade em acessar fontes de informação das quais necessitam devido às barreiras comerciais colocadas (BOHANNON, 2016). Como contrapartida, surge em 2001 o Open Access Movement (OA), que reivindica um acesso sem barreiras à publicações acadêmicas e alegam que a ampla disponibilização dos dados e papers permite um melhor desenvolvimento da ciência (BOAI, 2002; UNESCO, [entre 2001-2010]).


Além disso, seus defensores também perpassam a defesa pela utilização igualitária do capital cultural, uma vez que limitações de acesso institucionais ou diretamente financeiras afetam mais opressivamente estudantes do Sul Global e de situações mais vulneráveis (BOAI, 2002). Instituições de países periféricos têm menos recursos para garantir o acesso a dados e repositórios pagos, o que mitiga o desenvolvimento do conhecimento nesses espaços (UC…, 2022).


Edificadas oficialmente através da Iniciativa de Budapeste para o Livre Acesso (2001) e da Declaração de Berlim por um Livre Acesso ao Conhecimento (2003), a causa procurou um caminho institucional para dar vazão às suas demandas e objetivos.  Foram construídos, a partir desses esforços, repositórios públicos para artigos e um banco de dados, bem como jornais e revistas de caráter aberto, que disponibilizam seus produtos gratuitamente na íntegra ou parcialmente (OPEN…, [2005-2023]).  


Nesse sentido,  o movimento lança ao palco global as incoerências da publicação acadêmica, em concomitante campanha pela construção de alternativas acessíveis ao público. Em 2015, aproximadamente 28% da produção acadêmica global se encontrava aberta para leitura do público geral. Nesse ano de análise, 47% da produção anual foi diretamente postada em livre acesso, com dados que demonstram uma forte tendência ao aumento de publicação de pesquisas nesse sistema. A pressão colocada nas instituições também se prova eficiente, à medida que muitas passaram a impor o acesso geral ou parcial para todos os leitores (PIWOWAR et al, 2018).


Ao longo de mais de 20 anos de reivindicação, a campanha que propõe o alcance de seus objetivos pelas vias legais e através da construção de um senso de solidariedade coletivo entrou em embate com iniciativas de pirataria ilegais, como as Shadow Libraries acima mencionadas. Apesar de buscar o livre acesso, a organização preza sobretudo pela preservação dos direitos de propriedade dos autores e editoras, e nesse sentido se indispõe contra qualquer pressão por métodos violentos ou ilegais (PIWOWAR et al, 2018; SOLAR et al, 2019).


Guerilla Open Access


    Mesmo diante de concessões da indústria informacional, em 2016, um ano após a publicação dos indicadores acima apresentados, um pesquisador iraniano que buscasse pelas informações que precisa somente pelas vias oficiais precisaria gastar mais de 1.000 dólares por semana. Isto é, somente em pagamentos direcionados a editoras, livrarias, bibliotecas, entre outros, levando em consideração ainda a constância desse ciclo, que pode se repetir por anos durante um processo de pesquisa acadêmica (BOHANNON, 2016).


Diante da resistência corporativa para abrir as fronteiras do conhecimento, e conduzidos por uma reflexão que coloca a informação como ferramenta de poder, emerge a Guerilla Open Access (FRANCESCHI, 2011). O movimento é edificado diante da publicação de um manifesto de Aaron Swartz, em 2008, na qual o programador afirma: 


“Information is power. But like all power, there are those who want to keep it for themselves… But you need not — indeed, morally, you cannot — keep this privilege for yourselves… all of this action goes on in the dark, hidden underground. It’s called stealing or piracy.. But sharing isn’t immoral — it’s a moral imperative…    ” (SWARTZ, 2008)


Pensando a Pirataria


    O histórico de conflitos em relação a direitos autorais circula em torno de três pontos centrais: moralidade, viabilização financeira da produção e a pirataria. Cabe delimitar, para compreensão dos pontos a serem apresentados, que direitos autorais se referem à proteção da expressão de ideias, e nunca as ideias em si. A legislação estadunidense, nação protagonista na luta contra pirataria, parte do pressuposto que reproduções para fins como crítica, comentários, ensino, estudo ou pesquisa não constituem cópia. Shadow Libraries se baseiam no mesmo ideal de divulgação científica, mas diferem em relação a amplitude dessas definições (VARIAN, 2005).


A disponibilização virtual dos artigos nos repositórios ilegais é, inclusive, benéfica para os autores. Artigos disponíveis para download no Sci Hub, que ganhou espaço cativo no debate devido a sua proporção, tendem a ter quase o dobro (1.95x) de chance de serem citados por terceiros. A citação é uma métrica altamente utilizada para medir o sucesso de uma pesquisa e seus respectivos autores, e tal indicativo reforça como o livre acesso é capaz de promover intercâmbios de dados e impactar positivamente o meio acadêmico e seus escritores (CORREA et al., 2020).


    Existe muito receio em relação a como isso impactaria o financiamento da produção científica a longo prazo. Gigantes editoriais como a Elsevier acusam o Sci Hub e semelhantes de prejudicar ostensivamente suas margens de lucro, mas é difícil avaliar objetivamente o impacto financeiro dos downloads piratas, mesmo porque não se sabe ao certo a extensão dos acessos aos múltiplos endereços (BOHANNON, 2016). Porém, dentre os fundos direcionados à ciência, a maioria tem origem pública. Nos Estados Unidos 60% das pesquisas são financiadas com dinheiro público, e na Europa o número aumenta para 77%. Esse dado aponta que as cobranças privadas por artigos e livros não impactam diretamente a principal fonte de recursos para pesquisa, e, ainda, uma vez que o dinheiro empregado é público, a lógica é que seus resultados também sejam (CAIRES, 2019; UC…, 2022).


    A pirataria também tem uma função social importante a nível de redistribuição de conhecimento. As publicações científicas fechadas e bancos de dados são inacessíveis para alunos do Sul Global e de instituições menores, numa dinâmica que concentra o conhecimento - e o poder atrelado a esse - nas mãos de uma elite global (UC…, 2022). Um balanço divulgado em 2017 por Elbakyan, criadora do Sci Hub,  aponta a prevalência de países em desenvolvimento na lista dos dez  maiores números de downloads. Dentre eles , o único país pertencente ao Norte Global é os Estados Unidos, que ocupa o quarto lugar e é seguido pelo Brasil (BOHANNON, 2016). Repetidas pesquisas reiteram tais indicadores, ao apontar que quanto mais precários o Índice de Desenvolvimento Humano e a renda per capita, maior a pirataria. 


    Mesmo pessoas com acesso institucional vêm, por vezes, optando pelas Shadow Libraries (BOHANNON, 2016). Bibliotecários leem essa prática como uma demanda por modernização no serviço, que vem se provando demasiadamente burocrático (SOLAR et al, 2019). O imbróglio socioeconômico em que a pirataria está inserida cria um contexto no qual a mesma pode ser lida como uma ferramenta imperativa de distribuição (SWARTZ, 2008), mas também como uma mera consequência inevitável do sistema de produção vigente (SOLAR et al, 2019; NATH 2022).


Conclusão


    Após edificar a Guerilla Open Access, criar uma shadow library - Open Lib, tornar público dados de mais de 20 mil processos judiciais americanos, e criar grandes plataformas virtuais como o Reddit e o Watchdog.net, Aaron Swartz foi preso após a abertura de um inquérito da JSTOR (repositório virtual) por supostos downloads de seu acesso pessoal da plataforma para uso disruptivo. Condenado à prisão e diante de milhares de dólares em indenizações pendentes, em 2011 Swartz se entregou e posteriormente se suicidou (FRANCESCHI, 2011; G1, 2013).


Por sua vez, Alexandra Elbakyan, fundadora do Sci Hub e grande defensora do acesso imperativo ao conhecimento, hoje encontra-se foragida e escondida em uma localidade não identificada. Os criadores da z-library, dois russos que estavam sitiados na Argentina, também foram presos durante a operação de derrubada do site em 2022 (JAVAID, 2022).


Após alguns anos da grande eclosão da pirataria intelectual, as autoridades vêm retomando o controle da situação. Os rostos do OA radical estão sendo gradativamente escrutinados (NATH, 2023). A tendência aparenta ser de supressão do movimento, entretanto, as iniciativas seguem fortes nas camadas da deep web (WOODCOCK, 2022) e, mesmo na superfície da Internet, é possível observar a reinvenção das técnicas de disponibilização para driblar as sanções, conforme exemplificado pelo retorno da Zlib através de um cadastro e geração de link’s de acesso pessoal (ROSA, 2023).


    As Shadow Libraries sofreram incisivas retaliações, respondendo processos das editoras e repositórios, mas, na mesma proporção, estão edificando seus espaços com protagonistas na revolução pelo livre acesso. Tanto os domínios derrubados como os líderes do movimento guerrilheiro vem estabelecendo um papel semelhante aos de mártires, e conquistando espaços de debate tanto dentro do Ensino Superior quanto na mídia mainstream.


    Muitos acadêmicos acreditam que, por mais ilegítimos que sejam, os repositórios desse gênero vieram para ficar (BOHANNON, 2016). O fato é que, à medida que os sites são atacados, suas técnicas se renovam e se adaptam às sanções. Nesse contexto, é crucial estabelecer um debate ético em torno não só da existência dos repositórios, mas também em relação ao consumidor dos textos disponibilizados. A discussão precisa levar em consideração o cenário global, aprofundar a questão dos direitos de propriedade intelectual e, ainda, estabelecer paralelamente uma crítica ao próprio status quo das ciências modernas. Pensar pirataria na atualidade não pode desconsiderar todas as variáveis citadas, entretanto, é fulcral refletir como e até que ponto os direitos de propriedade intelectual são negociáveis.


REFERÊNCIAS

AARON Swartz e o Manifesto Guerrilla Open Access. Baixa Cultura, nov 2011. Disponível em: https://baixacultura.org/2011/08/12/aaron-swartz-e-o-manifesto-da-guerrilla-open-access/  Acesso em: 24 fev 2023.


BOHANNON, J. Who’s dowloanding piracy papers? Everyone. Science, v. 352, n. 6285, p.508-512, 2016. https://doi.org/10.1126/science.352.6285.508 


BUDAPEST Open Access Iniciative. BOAI, Budapest, 2002. Disponível em: https://www.budapestopenaccessinitiative.org/read/ . Acesso em: 24 fev 2023.


CORREA, J.; LAVERDE-ROJAS, H.; MARMOLEJO-RAMOS, F et al. The Sci-hub Effect: Sci-hub downloads lead to more article citations. ArXiv: 2006,14979, 2020.


GONZÁLEZ-SOLAR, L.; FERNÁNDEZ-MARCIAL, V. Sci-Hub, a challenge for academic and research libraries. El profesional de la información, v. 28, n. 1, e280112. https://doi.org/10.3145/epi.2019.ene.12


KARAGANIS, J. Rethinking piracy. In: KARAGANIS, J. Media Piracy in Emerging Economies. Estados Unidos: Social Science Research Council. 2011. Cap. 1, p. 1-75.


MORRE nos EUA ativista on-line Aaron Swartz, um dos fundadores do Reddit. G1, São Paulo, jan 2013. Disponível em: https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2013/01/morre-nos-eua-ativista-line-aaron-swartz-um-dos-fundadores-do-reddit.htmlAcesso em: 24 fev 2023.

NO new articles on Sci Hub, Libgen till Jan 6 over copyright infringement: Delhi HC. Hindustan Times, Nova Deli, dez 2020. Disponível em: https://www.hindustantimes.com/india-news/no-new-articles-on-sci-hub-libgen-till-jan-6-over-copyright-infringement-delhi-hc/story-3j8he06wFMfmoARTpOGoKO.html. Acesso em: 24 fev 2023.


NOS Países Desenvolvidos, Dinheiro que Financia a Educação é Público. Jornal da Usp, São Paulo, maio 2019. Disponível em: https://jornal.usp.br/ciencias/nos-paises-desenvolvidos-o-dinheiro-que-financia-a-ciencia-e-publico/. Acesso em 28 fev 2023.


THE End of an Era For Shadow Libraries… Or is it?. NATH, S., jan 2023. Disponível em: https://www.iposgoode.ca/2023/01/the-end-of-an-era-for-shadow-librariesor-is-it/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=the-end-of-an-era-for-shadow-librariesor-is-itAcesso em: 24 fev 2023.


THE FBI closed the book on Z-Library, and readers and authors clashed. Washington Post, Estados Unidos, nov 2022. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/nation/2022/11/17/fbi-takeover-zlibrary-booktok-impacted/ Acesso em: 24 fev 2023.


PIWOWAR, H.; PRIEM, J.; LARIVIÈRE, V. et al. The state of OA: a large-scale analysis of the prevalence and impact of Open Access articles. PeerJ 6:e4375, 2008. https://doi.org/10.7717/peerj.4375


SHADOW Libraries Are Moving Their Pirated Books to Deep Web After Crackdowm. Motherboard, nov 2022. Disponível em: https://www.vice.com/en/article/v7vnn4/shadow-libraries-are-moving-their-pirated-books-to-the-dark-web-after-fed-crackdowns  Acesso em: 24 fev 2023.


SWARTZ, A. Guerrilla Open Access Movement. Eremy: 2008, 2 p.


VARIAN, H. Copying and Copyright. Journal of Economic Perspectives. V. 19, n. 2, p. 121-138, 2005.


WHAT is Open Access?. Open Access. nl, entre 2005 e 2023. Disponível em: https://www.openaccess.nl/en/what-is-open-accessAcesso em: 24 fev 2023.


WHAT is Open Access. Unesco, 2001-2010. Disponível em:https://en.unesco.org/open-access/what-open-accessAcesso em: 24 fev 2023.


WHY Open Access. University of California San Diego, San Diego, ag 2022. Disponível em: https://ucsd.libguides.com/oa/why. Acesso em: 28 fev 2023.


Z-LIBRARY vai usar domínios individuais para não ser derrubado de novo. Terra, Brasil, fev 2023. Disponível em: https://www.terra.com.br/byte/z-library-vai-usar-dominios-individuais-para-nao-ser-derrubado-de-novo,6af541170d2dd52e28f41709ddf2f9d9g3dlswp9.html. Acesso em: 24 fev 2023.