por Natália Gráss
A Etiópia, República federal parlamentarista localizada na África Oriental, tem vivenciado uma guerra civil resultante de embates políticos entre separatistas da região do Tigré, que representa o coração histórico do país, e o Governo Federal. O conflito iniciou-se em novembro de 2020 e ainda persiste. Nesse sentido, a presente análise pretende explicar como se deu o início do conflito, assim como suas repercussões nos quesitos humanitários. Enfim, se buscará demonstrar como o cessar fogo pode pôr fim ao conflito.
Raízes e contexto histórico do conflito
A Etiópia, país do Chifre da África, enfrenta guerras com outros países desde o início da década de 1990. No entanto, a presente análise pretende explicar e analisar a Guerra que ocorreu entre o governo federal e as forças separatistas do Tigré, ao norte do país. O conflito, iniciado em 1991, evidenciou o poder da Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope (FDRPE), que contava com a coalizão mais forte e influente do país, a Frente de Libertação do Povo Tigré (FLPT). Em 2018, Abiy Ahmed Ali se elegeu como Primeiro-Ministro pela Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope. O que diferencia a política nacional das demais é o teor étnico que as coalizões e partidos possuem, elevando o nível de possíveis conflitos regionais em que a etnia assume um papel fundamental. Além disso, a divisão étnica das regiões e consequente formação de coalizões ocupa um papel decisório da concisão política do país. Embora a região não seja controlada pelo governo etíope, o Tigré é considerado o “coração” histórico do país.
O então Primeiro-Ministro apresentou um projeto reformador, com o foco na liberalização e diálogo para liderar o país. O principal objetivo desse projeto consistiu na retirada de profissionais originários do Tigré de cargos estratégicos do governo, além de mudanças na estrutura da Frente Democrática do Povo Etíope. Como consequência, alguns políticos começaram a entender esse processo como sendo anti-democrático e contraditório, pois o líder elegeu-se buscando tornar o país menos autoritário e fez o oposto em seu governo. Em 2019, Abiy recebeu o Nobel da Paz como reconhecimento por findar o conflito de décadas entre a Etiópia e a Eritreia, país vizinho. Essa cooperação bilateral entre Eritreia e Etiópia se deu a partir de um encontro em 2018 entre os chefes de Estado Abiy e Isaías Afewerki. A partir da mudança na política etíope, iniciou-se uma destituição de representantes do Tigré em altos cargos no governo, nas áreas de inteligência, força aérea, chefia das forças armadas e na indústria estatal (MOLFINO, 2021). O consequente distanciamento político, imposto pela renovação do premier, afastou ainda mais o antigo regime de posições de poder e influência e acabou por formar o Partido da Prosperidade (PP) no final de 2019, formado por Abiy Ahmed.
Pela condição de autonomia regional do Tigré, houve a recusa do grupo político em integrar o partido do líder Abiy e o consequente "aquecimento" na tensão entre os pleitos locais. Em decorrência da pandemia do Covid-19, as eleições regionais e nacionais foram adiadas para agosto de 2020. Houve, então, a retirada dos representantes do Tigré da disputa, como forma de protesto, e o parlamento tornou ilegais os comícios, impossibilitando qualquer tipo de campanha pelos candidatos, essa ação teve apoio do parlamento, mas não foi bem aceita pela frente de Libertação do Tigré, que percebeu essa atitude como antidemocrática e golpista. Além disso, o governo federal suspendeu o repasse de fundos do poder executivo ao Tigré, alegando violação do acordo federal e consequente supressão do grupo da política da região, que ficou sem o apoio financeiro federal. Com a retirada do Tigré do sistema federal, aconteceu, de fato, a eclosão da guerra civil na região.
Em 4 de novembro de 2020, a Força Nacional de Defesa lançou uma operação militar contra a Frente de Libertação do Tigré, quando então, foram iniciados os ataques mútuos entre as Partes. Vale ressaltar, ainda, que o conflito contou com o apoio de outras nações, desde a venda de drones, até o apoio em tropas, como foi o caso da Eritreia. A principal delas é a Eritreia, que já possui um histórico de inimizade com a FLPT, e se aproveitou da aproximação com a Etiópia para eliminar o potencial risco que o grupo traz para o país (MOLFINO, 2021). Além disso, o uso de drones pelo governo federal, desde 2021, foi considerado um ponto fundamental para reverter os avanços da Frente de Tigré à capital, Adis Abeba. Esses drones foram adquiridos a partir de longas negociações do Primeiro-Ministro com parceiros internacionais, há evidências da presença de drones chineses, turcos e iranianos nas bases militares do governo etiope (GATOPOULUS, 2021).
Violações aos Direitos Humanos e problemáticas sociais
A guerra já causou aproximadamente 500.000 mortes, para além dos combates armados, também se somam as principais causas de mortes, a fome e a falta de assistência médica. Com isso, a crise humanitária resultou em cerca de 1.850.000 pessoas internamente deslocadas em 2021, além de dezenas de milhares de pessoas que fugiram para o Sudão (ANNYS et al., 2021), sendo a maior parte destes originária do Tigré. É fundamental conceber que o conflito não é unicamente constituído por discrepâncias políticas, mas sim por fatores étnicos dos grupos que compõem cada região.
Desde o início do conflito, a repercussão de assassinatos em massa de civis, violência sexual, prisões arbitrárias, acusações de limpeza étnica e genocídio foram recebidas por organismos internacionais de direitos humanos (ETHIOPIA…, 2021). Ademais, é notória a insegurança alimentar na região, que acontece principalmente por conta do fechamento das vias que dão acesso ao Tigré pelo governo federal etíope, bem como as secas que afetam a região sul do país, aliadas à alta inflação, o que dificulta o acesso à alimentos, especialmente por parte da população mais pobre da região. Estima-se que cerca de 20 milhões de pessoas vivem em situação de insegurança alimentar ao redor do país, em decorrência da seca e das barreiras impostas pelos grupos militares (ETHIOPIA…, 2021).
Desde o início da guerra, o governo federal e alguns organismos internacionais estão envolvidos na distribuição de alimentos na região do Tigré. Em junho de 2021, o Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas ("WFP", de acordo com seu nome em inglês) passou a liderar a resposta nutricional de emergência. O WFP foi responsável por fornecer alimentos para cerca de 1.05 milhões de pessoas no país, todavia, cerca de 32% da população do Tigré vivem em áreas totalmente inacessíveis aos programas (ANNYS et al., 2021). A liderança do WFP foi fundamental na mitigação da fome na região, todavia, não foi suficiente no impedimento de mortes por inanição no país.
Em novembro de 2021, a ONU acusou o governo etíope de prender 72 funcionários locais, que faziam o transporte de alimentos para a região utilizando-se de um pretexto étnico, pois essas pessoas eram originárias do Tigré. De acordo com Matti Pohjonen, a participação da sociedade civil nas redes sociais foi fundamental para o apoio do governo etiope, por meio da hashtag #cyberarmyofethiopia, mesmo que essa não tenha recebido muita repercussão internacional, não alcançando seu objetivo inicial. Além disso, a autora, doutora e especialista em antropologia e culturas digitais emergentes, ilustra que os compartilhamentos nas redes sociais foram utilizados como uma espécie de “guerra” epistêmica, que serviu de confronto à interferência estrangeira e à pressão injusta que a Etiópia estaria sofrendo. Por fim, houve o fechamento da comunicação regional, restrição de internet e de jornalistas independentes, pondo em cheque a questão da liberdade de expressão e do direito de ir e vir no país.
Papel do cessar fogo na solução do conflito
Em março de 2022, o governo federal etíope declarou o primeiro cessar-fogo desde o início do conflito, com o intuito de permitir que a ajuda humanitária chegasse à região do Tigré. Ao longo do cessar-fogo, tanto o governo etíope, quanto a Frente de Libertação do Povo Tigré concordaram em dialogar sobre a possibilidade do fim da guerra. No entanto, ainda que houvesse expectativas da resolução do conflito, as negociações tornaram-se acaloradas e hostis. Em agosto de 2022, ambas as partes se acusaram de não querer finalizar o confronto, desmoronando as negociações e dando continuidade à guerra.
No dia 25 de outubro de 2022, foi iniciada a discussão de mais um cessar-fogo. Dessa vez, foi o presidente da Comissão da União Africana, Moussa Faki, que anunciou as negociações das Partes envolvidas. A discussão iniciou-se em Pretória, África do Sul, que atuou como área “neutra”. e contou com Tsadkan Gebretensae, General da FLPT Getachew Reda, porta-voz do governo federal, e Redwan Hussein, conselheiro de segurança nacional etíope. Embora as negociações pudessem impor o fim do conflito, era incerto que isso ocorresse, pois, mesmo com as tentativas, os combates não se reduziram. Todavia, em 2 de novembro de 2022, houve um avanço significativo para o fim guerra. Finalmente, a cessação do conflito foi reconhecida pelo Tigré e a Etiópia. Contudo, as outras partes envolvidas nos confrontos, como a Eritréia, não fizeram parte do acordo, o que gera a incerteza se a guerra de fato acabará.
Considerações finais
Em suma, o conflito étnico e regional da Etiópia poderá ter um fim. E apesar de todos os ataques aos direitos humanos e à soberania etíope, é possível conceber que esse não é um conflito comum. A presença dos drones, em conjunto com a participação da Eritreia, país que representou um inimigo por muito tempo, demonstra uma cooperação limitada, em grande medida porque o vizinho ainda não retirou suas tropas do país, o que pode representar um ponto chave de uma “volta” à normalidade. Essa normalidade deverá ser restabelecida tanto pelo governo federal como por Organismos Internacionais, a exemplo das agências da ONU, Comitê Internacional da Cruz Vermelha e dos membros da União Africana. No entanto, para além dos números, é possível compreender os abusos cometidos durante o conflito como sendo equivalentes a crimes de guerra e crimes contra a humanidade.
Nesse sentido, os danos devem ser solucionados, seja a partir da criação de um fundo financeiros, ou mesmo o julgamento dos culpados por crimes de guerra nos tribunais internacionais, a fim de devolver a dignidade aos cidadãos que vivem na região do Tigré, pois foi, sem dúvidas, a mais atingida durante o conflito. Dentre as preocupações mais comuns no pós-conflito, é necessário restabelecer os representantes do Tigré de volta à política nacional, a partir da próxima eleição, que deve ocorrer em 2026. Outro ponto muito importante é a participação dos organismos internacionais na assistência humanitária, ainda que não tenham atuado no processo de resolução do conflito como poderiam ter feito.
Referências
ANNYS, S., VANDENBEMPT, T., NEGASH, E., SLOOVER, L., GHEKIERE, R., HAEGMAN, K., TEMMERMAN, D., NYSSEN, J., 2021. Tigray: atlas of the humanitarian situation. Version 2.2. Ghent (Belgium): Ghent University,Department of Geography. https://doi.org/10.5281/zenodo.5804284
ENDESHW, Dawit. NEBEHAYE, Stephanie. Equipe conjunta de direitos humanos da ONU e da Etiópia: todos os lados cometeram abusos em Tigray. Reuters. Disponível: Equipe conjunta de direitos humanos da ONU e da Etiópia: todos os lados cometeram abusos em Tigray | Reuters. Acesso em: 27 nov 2022.
ETHIOPIA – Northern Ethiopia Humanitarian Update. OCHA, 2021. Disponível em: Ethiopia | Situation Reports (unocha.org). Acesso em: 27 nov 2022.
GATOPOULUS, Alex. How armed drones may have helped turn the tide in Ethiopia’s war. Aljazeera. Disponível em: How armed drones may have helped turn the tide in Ethiopia’s war | Military | Al Jazeera. Acesso em: 26 nov 2022.
MOLFINO, Santiago. Crisis en Etiopía: un acercamiento al conflicto de Tigray. Anuario en Relaciones Internacionales, Universidad de La Plata. 2021.
POHJONEN, Matti. An epistemic proxy war? Popular communication, epistemic contestations and violent conflict in Ethiopia, Popular Communication, v. 20, n.3, 236-252, 2022. DOI: https://doi.org/10.1080/15405702.2022.2074998.