Por Lenira Vitoria Barroso de Oliveira
“The cross-border plastic waste trade is perhaps one of the most nefarious expressions of the commercialisation of common goods and the colonial occupation of territories of the geopolitical south to turn them into sacrifice zones.” (SOLÍZ, 2022)
Os países da América Latina têm se tornado nos últimos anos o destino de grande parte do lixo descartado pelos países ricos do Norte Global, especialmente, dos Estados Unidos. Nesse contexto, faz-se importante situar esse imbróglio no cenário em que há o consumo desenfreado de bens que geram um número cada vez maior de resíduos. Desse modo, os países ricos, em que a capacidade de consumo é maior, acabam gerando uma enorme quantidade de lixo que passam a ser descartados e processados nos países pobres do Sul Global, como é o caso de diversos países latino-americanos.
Nessa perspectiva, buscar-se-á relacionar o consumo desenfreado de bens, especialmente de países ricos, com a produção de lixo em grande escala, que gera um enorme imbróglio no que se refere a sua destinação. Ademais, procurar-se-á analisar o processo que levou a América Latina a se tornar o “lixão” de países do Norte Global, assim como se evidenciará o papel dos Estados Unidos nesse cenário. Além disso, salientar-se-á ainda acerca das dificuldades dos países latino-americanos em processarem os resíduos produzidos até mesmo em seus territórios, bem como será abordado as implicações socioambientais da exportação de lixo aos Estados da América Latina.
O consumo desenfreado e a produção de lixo
O aumento do consumo de bens e a crescente produção de lixo no planeta não podem ser dissociados, na medida em que ambos estão correlacionados (MANSANO & NOGUEIRA, 2016). Nessa perspectiva, pode-se compreender o constante incentivo ao consumo por parte das mídias de comunicação, principalmente, fundamentado em uma noção capitalista cada vez mais enraizada no imaginário da população (MANSANO & NOGUEIRA, 2016). Portanto, cria-se um distanciamento cada vez maior entre a consciência do indivíduo em relação ao seu consumo e o desenvolvimento sustentável do meio ambiente; levando assim, a uma maior clivagem entre o sujeito e o lixo que ele produz cotidianamente.
Ainda no que tange a questão do consumo e sua relação com a produção de lixo, cabe evidenciar que esse aspecto é destacado por ambientalistas como sendo de fundamental importância para o combate ao problema dos resíduos. Nesse sentido, a ambientalista Magdalena Donoso, coordenadora latino-americano da Aliança Global para Alternativas à Incineração (GAIA), argumenta que se faz necessário mudar os padrões de consumo – sendo essa uma estratégia fundamental e central, de acordo com Donoso –, a fim de que se reduza o desperdício para enfim se pensar em outras iniciativas, como a reciclagem (ALMEIDA ET AL, 2022).
Em relação à temática do consumo, faz-se necessário mencionar que entre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 – aos quais diversos países da América Latina se comprometeram a adotar –, evidencia-se o ODS 12 que diz respeito ao consumo e a produção responsável. Nesse viés, portanto, busca-se “assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis”, de forma que se garanta o suprimento das demandas humanas, concomitantemente, com a preocupação com os limites da natureza (CABRAL & GEHRE, 2020). Destarte, torna-se evidente que um consumo mais consciente tem sido colocado em pauta no cenário internacional; porém, é necessário ter em perspectiva que isso exige constante monitoramento para sua implementação de fato.
O processo que levou a América Latina a se tornar o “lixão” de países ricos
O aumento da exportação de lixo dos países do Norte Global – especialmente dos Estados Unidos (LIMA, 2022) – para os países da América Latina, está relacionado, de acordo com a ambientalista Magdalena Donoso, com uma regulamentação crescente ligada à exportação de resíduos plásticos de grandes potências para países que possuem uma legislação bastante debilitada no que se refere ao tema (ALMEIDA ET AL, 2022). Nessa perspectiva, cabe pontuar que os Estados Unidos são o maior exportador de plástico do mundo e que o fato da China ter deixado de receber os resíduos desse país; resultou com que os países latino-americanos, possuindo uma mão de obra barata e estando mais próxima geograficamente desse país, recebessem um número cada vez maior de resíduos (DANIELS, 2021).
Apesar da maioria dos Estados haverem concordado, no que se denominou como emenda dos plásticos à Convenção de Basiléia em 2019, em buscarem diminuir o fluxo de lixo entre as nações desenvolvidas do Norte Global para os países mais pobres do Sul Global, os números demonstram a não aderência por parte de Estados como o estadunidense (DANIELS, 2021). Segundo o acordo, as empresas privadas dos Estados Unidos estariam proibidas de exportar resíduos plásticos para países em desenvolvimento do Sul Global, sem a permissão dos governos locais (DANIELS, 2021).
No entanto, faz-se necessário destacar que o acordo não foi ratificado pelos Estados Unidos e o que houve, na verdade, foi a continuidade e até mesmo o aumento dessa exportação para países pobres ao redor no mundo, inclusive para a América Latina (DANIELS, 2021). Por conseguinte, nota-se um claro processo em que uma potência se nega a aderir a um esforço internacional que busca regulamentar essa exportação transfronteiriça de resíduos plásticos que tanto afetam os países pobres. Nesse sentido, a porta-voz do instituto GAIA, Magdalena Donoso, evidencia que os países do Norte Global vêm em seus discursos dando bastante ênfase a reciclagem, enquanto deixam de lado a redução do desperdício e a remodelagem de seus produtos (DANIELS, 2021).
A América Latina como o mais “novo lixão” dos Estados Unidos
Segundo ambientalistas, a América Latina tem se tornado o lixão dos Estados Unidos, na medida em que desde 2018 o número de resíduos plásticos exportados para a região apenas vem aumentando, atingindo em 2021 a maior quantidade exportada que se tem registro (LIMA, 2022). De acordo com a organização ambientalista Last Beach Cleanup, até outubro de 2021 mais de 89 mil toneladas de resíduos plásticos haviam sido exportadas para os países latino-americanos (LIMA, 2022).
O principal país de destino para os resíduos plásticos estadunidenses é o México, que recebeu de janeiro a outubro de 2021 aproximadamente 60 mil toneladas desses resíduos (LIMA, 2022). Todavia, outros países latino-americanos também receberam parte do lixo produzido pelos Estados Unidos, dentre eles incluem-se a Argentina, a Bolívia, o Chile, a Colômbia, a Costas Rica, o Equador, El Salvador, Honduras, Guatemala, o Panamá, o Paraguai, o Peru, a República Dominicana e a Venezuela (LIMA, 2022).
Ainda no que se refere à exportação de resíduos plásticos dos Estados Unidos para os países latino-americanos, pode-se salientar que esse não é um fenômeno recente, mas que apenas vem aumentando nos últimos anos (LIMA, 2022). De acordo com Maria Fernanda Solíz, especialista em questões ambientais da Universidade Andina Simon Bolívar, esse aumento está relacionado, principalmente, com o fato de a China ter deixado de receber resíduos de origem estadunidense (LIMA, 2022).
Nesse contexto, cabe salientar ainda que segundo Solíz, a principal razão das exportações de resíduos dos Estados Unidos para outros Estados, como os países latinos-americanos, é que é mais fácil e barato para as empresas norte-americanas enviarem o lixo produzido nesse país para outros (LIMA, 2022). Desse modo, argumenta-se que dentre as dificuldades que são facilitadas e barateadas com a exportação desses resíduos, estão o processamento e o fato dessas empresas terem que lidar com as regulamentações ambientais do país, bem como de arcarem com os altos custos dos poucos centros de processamento dos Estados Unidos (LIMA, 2022).
Para a especialista, a conjuntura latino-americana também foi um fator leniente para que esse cenário de exportações gigantescas de resíduos plásticos fosse viável (LIMA, 2022). Nesse contexto, Solíz destaca a existência de governos enfraquecidos, bem como marcos regulatórios, normativos e jurídicos fracos nos países da América Latina (LIMA, 2022). Destarte, faz-se possível inferir que há na região, uma fragilidade nas estruturas estatais que são permissivas à países ricos e influentes no sistema internacional, como os Estados Unidos; de forma a permitir que estabeleçam com esses Estados, tal relação que visa atender as suas próprias necessidades.
As dificuldades de países latino-americanos de lidarem com o lixo
Em relação à questão do lixo na América Latina, cabe salientar que a região possui dificuldades latentes no que trata até mesmo do processamento e do descarte do lixo produzido em seus próprios territórios (LIMA, 2022). Portanto, essa constatação reforça ainda mais o alerta de como essa situação de exportação do lixo de países ricos para as nações pobres dessa região podem ter consequências nefastas para o meio ambiente. Nesse sentido, destaca-se que os países latino-americanos não possuem estrutura para processar de forma responsável o lixo produzido pelos Estados Unidos, por exemplo (LIMA, 2022).
Nesse contexto, pode-se indagar o porquê dos países do Sul Global continuarem recebendo o lixo dos países ricos do Norte Global. Desse modo, cabe-se pontuar que parte da explicação dessa questão está no fato de que as externalidades negativas advindas do comércio transfronteiriço de resíduos, não são de fato levadas em consideração nos processos decisórios sobre esse tema (POPE, 2018). Ademais, faz-se possível ainda destacar que existe uma prevalência do discurso dos envolvidos no negócio do lixo que justificam a importação de resíduos alegando que ela gera empregos e contribui para uma “economia circular” e a reciclagem (LIMA, 2022).
Sobretudo, é válido destacar que soma-se ao problema o fato dos países do Sul Global serem mais vulneráveis tanto economicamente quanto politicamente em termos globais (POPE, 2018). Portanto, cria-se um cenário propício para que esses Estados com instituições regulatórias frágeis, aceitem receber o lixo de países do Norte Global, mesmo que no fim eles acabem arcando com a maior parte das externalidades negativas resultantes da importação de resíduos para seus territórios.
Segundo dados publicados no relatório “Perspectivas sobre a Gestão de Resíduos na América Latina e no Caribe” em 2018, um terço do lixo produzido diariamente nos países da América Latina e do Caribe eram descartados em locais inadequados (BOEHM, 2018). Nesse contexto, pode-se salientar que esse percentual equivale a 145 mil toneladas de resíduos, em que somente o Brasil representa 25% desse volume descartado de forma inadequada da região latino-americana (BOEHM, 2018).
Ainda de acordo com esse relatório do setor de Meio Ambiente das Nações Unidas (ONU), isto é, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), a América Latina enfrenta, ainda, outro desafio que é o de alcançar uma economia circular (BOEHM, 2018). Desse modo, evidencia-se que somente 10% dos resíduos descartados e processados nessa região seriam de fato reaproveitados por meio da reciclagem ou de outras técnicas relacionados à recuperação de materiais (BOEHM, 2018). Ademais, o relatório ainda apontou que parte das razões para esse problema estaria na falta de recursos para investimentos e custeios das operações ligadas ao reaproveitamento de materiais descartados na região (BOEHM, 2018).
No que se refere ao conceito de economia circular, cabe destacar que de acordo com a Fundação Ellen Macarthur, esse termo é definido como sendo um sistema de solução que tem como perspectiva problemas globais como a mudança climática, a perda de biodiversidade, o desperdício e a poluição (CIRCULAR…, 2022). Desse modo, evidencia-se que esse sistema é baseado em três princípios ligados ao design, sendo eles: eliminar o desperdício e a poluição desde o princípio, manter produtos e materiais em uso e regenerar sistemas naturais (ECONOMIA…, 2021). Ademais, evidencia-se que a transição para uma economia circular implica separar as atividades econômicas do consumo de recursos finitos na natureza (CIRCULAR…, 2022).
As implicações socioambientais aos países latino-americanos da exportação de resíduos
O “negócio do lixo” na região da América Latina tem impactos tanto ambientais quanto humanos, haja vista que tanto o meio ambiente quanto a população são afetadas negativamente com a importação de resíduos plásticos para esses países (LIMA, 2022). Enquanto os atores envolvidos nesse negócio defendem-no alegando que ele geraria empregos para milhares de pessoas na região, assim como contribuiria para a “economia circular” e a reciclagem; os ambientalistas discordam dessa visão e trazem para a discussão questões problemáticas envoltas nesse processo (LIMA, 2022).
Nesse contexto, a engenheira ambiental e fundadora do Last Beach Cleanup, Jean Dell, destaca que o que muitas vezes ocorre, por conta da baixa fiscalização das autoridades dos Estados latino-americanos, é o pagamento de baixos salários aos trabalhadores, bem como a sujeição destes a condições de trabalho insalubres (LIMA, 2022). Além disso, evidencia-se nesse cenário ainda as acusações do uso trabalho infantil para a processamento desse lixo devido, outrossim, a falta de regulamentação e fiscalização por parte das autoridades locais (LIMA, 2022).
No que se refere aos impactos ambientais ligados à exportação do lixo, cabe ressaltar que, pela dificuldade dos países latino-americanos, receptores desses resíduos em processá-los, acaba que não há um descarte adequado desse material (LIMA, 2022). Nessa perspectiva, destaca-se ainda que esses resíduos também podem acabar sendo queimados, gerando assim gases tóxicos que são lançados no meio ambiente (LIMA, 2022). Ademais, soma-se à problemática o fato de o processamento desse lixo demandar grandes quantidades de água, levando, com isso, à escassez de água em diversas comunidades dessa região (LIMA, 2022).
Considerações finais
Tendo-se em perspectiva todos os efeitos nocivos causados pela exportação do lixo de países ricos do Norte Global para países pobres do Sul Global, faz-se necessário uma mudança estrutural no que se refere aos padrões de consumo dos indivíduos. Na medida em que grande parte do problema está relacionado à superprodução desses países ricos que, seja pela dificuldade de dar um destino correto a esses resíduos, seja pelo alto custo do processamento e da reciclagem nos seus próprios territórios (FILHO, 2021), acabam “terceirizando” esse serviço aos países do Sul Global, como é o caso dos países latino-americanos.
Ademais, faz-se necessário pontuar que os governos têm um papel fundamental nessa conjuntura, haja vista que eles possuem o poder de decidir que determinados resíduos não entrarão em seus territórios (ALMEIDA et al., 2022). Sobretudo, cabe destacar que o comércio transfronteiriço de resíduos afeta diretamente o compromisso dos países da América Latina em desenvolverem em seus territórios, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) ao minar as possibilidades de cumprimento das metas e diretrizes dos ODS (ALMEIDA et al., 2022).
Por fim, pode-se concluir a necessidade de uma mudança paradigmática no que se remete a essa questão, haja vista os impactos socioambientais negativos que a exportação de resíduos gera nos países da América Latina. Destarte, é imprescindível fortalecer a regulamentação e o controle dos países latino-americanos no que se refere aos resíduos importados para seus territórios, a fim de que seja rompida uma forma de colonialismo ambiental que se constrói a partir dessa prática (DANIELS, 2021).
Referências
ALMEIDA ET AL. Descarte de lixo de países ricos na América Latina ameaça o meio ambiente e a saúde de populações marginalizadas, diz ambientalista. Olhares do mundo, abr. 2022. Disponível em: https://olharesdomundo.wordpress.com/2022/04/25/descarte-de-lixo-de-paises-ricos-na-america-latina-ameaca-o-meio-ambiente-e-a-saude-de-populacoes-marginalizadas-diz-ambientalista-%EF%BF%BC/. Acesso em: 21 ago. 2022.
BOEHM, Camila. Um terço do lixo tem destinação inadequada na América Latina e Caribe. Agência Brasil, São Paulo, out. 2018. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-10/um-terco-do-lixo-tem-destinacao-inadequada-na-america-latina-e-caribe. Acesso em: 22 ago. 2022.
CABRAL, Raquel; GEHRE, Thiago. Guia Agenda 2030: Integrando ODS, Educação e Sociedade. 1. ed. São Paulo: CBL, 2020. 192 p. ISBN 978-65-00-14287-7. E-book.
CIRCULAR economy introduction. Ellen Macarthur Foundation, 2022. Disponível em: https://ellenmacarthurfoundation.org/topics/circular-economy-introduction/glossary. Acesso em: 31 ago. 2022.
DANIELS, Joe Parkin. Latin America urges US to reduce plastic waste exports to region. The Guardian, dez. 2021. Disponível em: https://www.theguardian.com/environment/2021/dec/24/latin-america-urges-us-to-reduce-plastic-waste-exports-to-region. Acesso em: 24 ago. 2022.
ECONOMIA circular: um futuro possível. Gazeta do Povo, dez. 2021. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/conexao-design/economia-circular-um-futuro-possivel/. Acesso em: 31 ago. 2022.
FILHO, Pio Penna. O lixo dos ricos. UnB Notícias, Brasília, dez. 2021. Disponível em: https://noticias.unb.br/artigos-main/5420-o-lixo-dos-ricos. Acesso em: 25 ago. 2022.
LIMA, Lioman. Por que a América Latina se tornou novo 'lixão' dos EUA. BBC News Mundo, fev. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60304415. Acesso em: 20 ago. 2022.
NOGUEIRA, E. F.; MANSANO, S. R. V. DA GLAMOURIZAÇÃO DO CONSUMO À PRODUÇÃO DE LIXO: UM DEBATE NECESSÁRIO. In: VIII ENPECOM - Encontro de Pesquisa em Comunicação - Tema: Crítica de Mídia, 2016, Curitiba/PR. GT Comunicação e Consumo, 2016.
POPE, Kamila. TRANSFERÊNCIA TRANSFRONTEIRIÇA DE RESÍDUOS SOB A PERSPECTIVA DA JUSTIÇA ECOLÓGICA: RUMO À GESTÃO INTERNACIONAL DE RESÍDUOS. Tese (Doutorado em Direito). Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 434 p. 2012.