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PET-REL

por Natália Gráss

 

“Existem apenas duas classes sociais, as do que não comem e as do que não dormem com medo da revolução dos que não comem.” 

(Milton Santos)

 

A presente análise tem por objetivo apresentar as causas, empecilhos e resultados da insegurança alimentar na sociedade brasileira. Nesse sentido, buscar-se-á demonstrar os dados e os grupos que são mais atingidos por esse fenômeno. Além disso, pretende-se demonstrar o motivo pelo qual 33,1 milhões de pessoas passam fome no território brasileiro, onde o slogan do “Agro é tech, agro é pop, agro é tudo” apenas se faz presente para fins comerciais.

 

As recentes repercussões de que o Brasil estaria de volta ao Mapa da Fome não são reais; todavia, isso só ocorreu porque o Mapa era baseado nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs), estabelecidos em 2000, que foram substituídos pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). No entanto, se existisse, o Brasil faria parte, pois, estavam listados os países em que mais de 5% da população vivencia a condição de insegurança alimentar (NÃO…, 2022).

 

Realidade brasileira em 2022

 

De acordo com o Inquérito da Rede PENSSAN, cerca de 33,1 milhões de pessoas estão passando fome no Brasil, o que corresponde a 15,3% da população brasileira. Esses dados demonstram que de 2020 a 2022 as pessoas que vivenciavam a fome passaram de 19% para 33% do total da população. Além disso, o estudo demonstra que mesmo após o segundo ano da pandemia de Covid-19, 58,7% da população enfrenta algum tipo de insegurança alimentar, de leve a grave, o que representa 125,2% da população, ou seja, mais da metade do total de habitantes do Brasil (INQUÉRITO…, 2022). 

 

Segundo Rafael Zavala, representante da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO/ONU) no Brasil, o país não tem priorizado a  redução do número de pessoas que estão em situação de fome ou mesmo de insegurança alimentar (NÃO…,2022). Vale ressaltar que o país é um dos maiores produtores e exportadores de grãos do mundo, a exemplo disso, há o recorde brasileiro batido em 2020, quando foram exportadas 122 milhões de toneladas de grãos, ficando apenas atrás dos Estados Unidos da América, com 138 milhões de toneladas. Em dados publicados pela Secretaria de Inteligência e Relações Estratégicas da Embrapa, foi concluído que a produção que é exportada do Brasil é responsável por alimentar cerca de 800 milhões de pessoas em todo o mundo (PEDUZZI, 2021).

 

Dessa forma é possível inferir que o Brasil tem sim, a capacidade de produzir e alimentar toda sua população, considerando ainda um superávit na Conta corrente da Balança de Pagamentos. Como o próprio Zavala mencionou em sua entrevista à BBC News Brasil, o país já foi referência em uma campanha de combate à fome em 2014, quando reduziu para 1,7% a população que passava fome, o que representava 3,4 milhões de habitantes (NÃO.., 2022). Dessa forma, é evidente a desigualdade de distribuição alimentar no Brasil, mas não é possível justificar isso com base na escassez de alimentos, mas sim na maneira como eles são distribuídos e o quão acessível são esses itens à população.

 

Comparações regionais

 

Ainda que a pobreza e a desigualdade estejam ligadas, sua distribuição também é irregular e mais presente em locais em que a assistência governamental não chega ou é insuficiente, seja pela sua história e fundação, ou mesmo pela falta de políticas públicas. Seguindo a lógica de concentração de desigualdades, há o líder brasileiro da fome, o estado do Maranhão, com 57,09% da população com algum grau de insegurança alimentar. E no outro extremo, há o estado de Santa Catarina, com 10,16% de sua população em situação de fome (MALAGONI,2022). 

 

Embora a pandemia tenha agravado o cenário de subnutrição e desemprego, esse fenômeno não é exclusivo do Brasil. De acordo com o relatório de estado de segurança alimentar da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura de 2021, cerca de 21% da população do continente africano é atingida pela fome, contrastando com 9% da Ásia, e 9,1% da América Latina e Caribe. Logo, conclui-se que metade dos desnutridos do mundo vivem em países asiáticos, em grande medida, pela quantidade total de habitantes da região (FAO, 2022). 

 

É muito importante perceber que a realidade latino-americana é uma construção de múltiplas culturas e fatores, pois além da pandemia, há uma grande presença de conflitos, gangues, migrações e desastres ambientais. Consoante a essa problemática, os países sul americanos que possuem a maior prevalência de desnutrição são Haiti (46,8%), a República Bolivariana da Venezuela (27,4%), Nicaragua (19,3%), Guatemala (16,8%), Honduras (13,5%), Estado Plurinacional da Bolívia (12,6%) e Equador (12,4%) (FAO,2021). 

 

Possíveis causas da fome brasileira

 

Um dos piores resultados da pandemia no contexto brasileiro, que se relaciona ao tema da insegurança alimentar, foi, sem dúvidas, o aumento do desemprego e da precarização do trabalho. Nessa perspectiva, cabe destacar que a pandemia trouxe um evidente aumento no número de trabalhadores informais, terceirizados ou mesmo daqueles que possuíam subcontratos (COSTA, 2020). Dessa forma, é perceptível que as pessoas não amparadas por leis trabalhistas ou que não possuem algum nível de proteção de benefícios, foram a parcela da população mais afetada, em grande medida pela falta de renda ou ainda pela precariedade gerada por  uma inflação brutal. 

 

É possível ainda fazer uma análise de como o setor agrícola brasileiro participa de maneira quase irrisória no Produto Interno Bruto (PIB) do país, contando com apenas 5 % da riqueza nacional. Ademais, nota-se que a agroindústria brasileira gera altos custos, tanto ambientais quanto em se tratando do bem-estar de seus trabalhadores ou prestadores de serviços, uma vez que possuem poucos postos de trabalho com carteira assinada e benefícios, e em geral também possuem um salário menor (ROSÁRIO, 2021).

 

O Agronegócio brasileiro se beneficia ainda da redução e isenção de alguns impostos, de acordo com Yamila, autora do artigo “O Agro não é tech, o Agro não é pop e muito menos tudo”, lançado pela Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra). Dentre esses tributos, há o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), resultante da Lei Kandir, que pretendia estimular as exportações, por se tratar de um produto primário (JÚNIOR; YAMILA, 2021). Portanto, é possível concluir que o setor do agronegócio no Brasil faz muito menos do que poderia pelo país, principalmente, por não contribuir com a mitigação da insegurança alimentar brasileira.  

 

O agronegócio não é a única causa da insegurança alimentar vigente no país, mas está atrelada, principalmente, ao gênero e raça das pessoas que enfrentam a realidade de fome no Brasil.. A exemplo disso, é apresentado pelo Inquérito II da  Rede PENSSAN, que a proporção de Insegurança Alimentar foi maior nos domicílios em que os responsáveis identificavam como negros e pardos. Além disso, 42,5% dos domicílios em que os responsáveis possuíam escolaridade de até 4 anos de estudo tinham algum nível de Insegurança Alimentar, seja leve, moderada ou grave (INQUÉRITO…, 2022).

 

Ainda nesse contexto, as mulheres, principalmente as que chefiam suas residências, por exemplo as mães solo, são mais afetadas por essa insegurança. Por volta de 19,3% das famílias chefiadas por mulheres estão expostas à fome, ao passo que esse número é reduzido para 11,9% quando são homens que se encontram na mesma posição (INQUÉRITO…, 2022). Essa diferença pode ser claramente representada pela diferença de rendimentos e proventos no mercado de trabalho brasileiro, que coincidentemente desfavorece mulheres e negros. Logo, é necessário o questionamento de até que ponto isso seria uma desculpa ou se isso é apenas um projeto aceito pelo Estado brasileiro.

 

Considerações finais

 

Embora tenham sido desenvolvidos diversos auxílios durante a pandemia, não foram totalmente eficientes. E é ainda mais óbvio que a grande maioria dos brasileiros está com dificuldade para se sustentar e fazer o mínimo: se alimentar.  A partir desse contexto é possível concluir que não é um problema de fácil resolução, no entanto, a receita utilizada em 2014 poderia ser implementada novamente (NÃO…,2022). 

 

A implementação de políticas de geração de emprego são sempre uma ótima opção, mas algo ainda mais urgente é o ajuste do salário mínimo que foi duramente corroído pela inflação. Além da clara necessidade de regulação do agronegócio, para que pelo menos parte dele seja voltado ao consumo interno, barateando o custo final do consumidor. Ademais, urge o investimento nas produções locais e familiares, afinal, são esses alimentos que sustentam de fato os brasileiros (JÚNIOR; GOLDFARB, 2022). 




Referências

 

COSTA, Simone. Pandemia e desemprego no Brasil. Revista de Administração Pública, V. 54, n.4 , 969-978, jul - ago 2020. https://doi.org/10.1590/0034-761220200170.  

 

FAO. The State of Food Security and Nutrition in the World, 2022. Disponível em:THE STATE OF FOOD SECURITY AND NUTRITION IN THE WORLD 2021 (fao.org). Acesso em: 10 jul. 2022. 

 

FAO. Panorama regional de la seguridad alimentaria y nutricional, 2021. Disponível em:PANORAMA REGIONAL DE LA SEGURIDAD ALIMENTARIA Y NUTRICIONAL 2021 - AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE (fao.org). Acesso em: 10 jul. 2022. 

 

FAO.  Sistemas alimentarios en América Latina y el Caribe, 2021. Disponível em:https://www.fao.org/3/cb5441es/cb5441es.pdf . Acesso em 20 jul. 2022.

 

GOLDFARB, Yamila; JÚNIOR, Marco. O Agro não é tech, o agro não é pop e muito menos tudo. FRIEDRICH-EBERT-STIFTUNG, set. 2021.Disponível em:18319-20211027.pdf (fes.de). Acesso em: 10 jul. 2022. 

 

INQUÉRITO Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar.  Disponível em:https://olheparaafome.com.br/wp-content/uploads/2022/06/Relatorio-II-VIGISAN-2022.pdf. Acesso em: 10 jul. 2022.

 

“NÃO se priorizou o combate à fome no Brasil”, diz representante da FAO no país. BBC, São Paulo, 30 jun. 2022. Disponível em:'Não se priorizou o combate à fome no Brasil', diz representante da FAO no país - BBC News Brasil. Acesso em: 10 jul. 2022. 

 

PEDUZZI, Pedro. Embrapa: Brasil será maior exportador de grãos do mundo em cinco anos. Agência Brasil, Brasília, 2021. Disponível em: Embrapa: Brasil será maior exportador de grãos do mundo em cinco anos (ebc.com.br). Acesso em: 10 jul. 2022. 

 

ROSÁRIO, Fernanda. Agronegócio é o principal responsável pela fome no Brasil, aponta estudo. Alma preta, 2021. Disponível em:Agronegócio é o principal responsável pela fome no Brasil, aponta estudo (almapreta.com) Acesso em: 10 jul. 2022.