por Mariana Nascimento
Desde a retomada do poder pelo grupo Talibã, em 15 de agosto de 2021, no Afeganistão, a crise humanitária no país foi agravada. Atualmente, formam uma das maiores populações de refugiados do mundo. Somente em 2021 mais de 2,6 milhões de pessoas se viram forçadas a abandonar suas vidas no país (ACNUR, 2022), e a situação é ainda pior para as crianças e mulheres, que veem cada vez mais seus direitos serem reduzidos. Segundo a ACNUR, de 699.999 cidadãos que se deslocaram internamente no país, 80% eram mulheres e crianças (ACNUR, 2022). Assim, essa análise busca entender o contexto histórico do conflito afegão, com foco na conquista e perda de direitos por parte das mulheres.
Contexto histórico
Para o entendimento do conflito afegão, é necessário compreender as origens do Estado, que foi marcada por uma série de interferências externas, conflitos entre a família real, além da forte presença de um extremismo ideológico baseado em princípios religiosos, com o poder concentrado na figura de um líder político e uma política baseada na barganha (GOMES, A. D. T, 2005).
Com as reformas para a modernização do país que duraram de 1919 a 1929, as afegãs iniciaram o processo de conquistas de seus direitos, a partir de uma modernização do islamismo tradicional. O rei Amanulláh Khan introduziu, na época, uma nova constituição que previa algumas mudanças como a abertura de escolas para meninas, enfatizando a importância da educação feminina, além de criar leis que aboliam o casamento forçado e aumentavam a idade mínima para as meninas se casarem. Porém as mudanças não foram aceitas socialmente pelos conservadores, o que levou à queda do monarca e a sua substituição por Muhammad Nadir Shah, que aboliu a maioria das reformas promulgadas (BBC, 2021).
Com a morte do rei Muhammad e a posse do trono por seu filho, diversas das medidas de Khan foram retomadas. As escolas femininas voltaram a vigorar, agora com a presença de uma nova universidade e foi publicada uma nova constituição, em 1964, que previa o direito ao voto feminino (HISOUR, 2021). Após mais de 200 anos de regime monárquico, em 1973, a república vigorou no país, continuando o progresso de conquista de direitos das mulheres, que agora poderiam ocupar cargos públicos e estar presentes no parlamento. E os avanços seguiram tanto nos governos seguintes, como durante a invasão soviética.
Infelizmente, a maior parte do avanço nos direitos femininos ficaram concentradas em Cabul, capital do país. Em outras cidades do país, a população, em sua maioria conservadora, mantinha os antigos costumes, mesmo com as proibições governamentais.
Porém, com o primeiro regime do Talibã, as mulheres da capital viram seus direitos serem exauridos repentinamente, e o progresso de conquista de anos foi perdido com a chegada ao poder pelo grupo extremista. As mulheres perderam o direito de frequentar a escola, foram obrigadas a se cobrir da cabeça aos pés e estavam proibidas de andar desacompanhadas de um parente do gênero masculino (CNN, 2021). E assim foi perpetuado o regime até 2001, ano no qual ocorreu a invasão do Afeganistão pelos Estados Unidos na Guerra ao Terror, após os ataques de 11 de setembro. O Estados Unidos chegou a aproveitar das discussões de gênero para construir uma pauta que fundamentasse a intervenção militar como uma libertação das mulheres afegãs (SOUZA, A. C. T. C. D, 2017).
O que acontece agora?
Embora não estivessem mais no poder desde 2001, o Talibã continuou atuando no Afeganistão, tentando afastar os Estados Unidos do país e negociar o fim da guerra, e, durante esse período, as mulheres aos poucos foram reconquistando seus direitos. Entretanto, com a fracassada retirada de tropas americanas do território afegão em 2021, as cidadãs veem suas liberdades em risco mais uma vez. Ademais, a retirada desorganizada dos Estados Unidos demonstra um descaso com as questões de gênero que opaís utilizou para legitimar a invasão em 2001. O discurso anterior, a partir dessas observações, soa como uma tentativa de conseguir apoio da opinião pública, convencendo-os da necessidade de "libertação e civilização" do Afeganistão (SOUZA, A. C. T. C. D, 2017).
Durante o ano passado, diversas agências da ONU postularam ao Talibã o cumprimento de promessas que garantiriam a proteção aos vulneráveis. O Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) se mostrou especialmente preocupado com o impacto que o retrocesso sociopolítico teria em meninas e mulheres, que haviam conquistado avanços significativos na luta por seus direitos nos últimos anos. Chegou a ser requerido, inclusive, que as mulheres tivessem o acesso à escola e trabalho, mas a solicitação não foi cumprida.
O que esperar do futuro é incerto, embora existam entidades internacionais agindo na tentativa de conseguir manter a dignidade dessas mulheres, o governo dos talibãs mostra extrema resistência. Após voltar atrás na decisão da liberação de escolas para as adolescentes, o governo decidiu, dia 28 de março de 2022, proibir a viagem das mulheres desacompanhadas de algum parente do sexo masculino.
Amedrontadas com a possibilidade do retorno das políticas do regime anterior do Talibã, as afegãs protestaram algumas vezes por seus direitos,tendo sido reprimidas sob a justificativa de que as manifestações haviam saído do controle. Postadas em posição humilhante e inferior, as cidadãs do Afeganistão relatam profunda desesperança no futuro.
Em termos gerais…
Ainda que historicamente tenha momentos com suspiros de progresso, a cultura afegã dominante acaba por fazer retornar o conservadorismo através de suasmovimentações políticas. Assim, a perspectiva de uma melhora no que diz respeito aos direitos das mulheres se detém em um futuro incerto e melancolicamente dependente de uma esperança precária e, tendo em vista o panorama atual, que não resguarda medidas que projetam qualquer avanço progressista.
E é fato que o governo do Talibã mina cada vez mais os direitos femininos e amedronta as mulheres afegãs, retirando liberdades básicas e colocando-as em situações degradantes, reafirmando sua misoginia estrutural que, como visto no presente texto, leva a grande saída de refugiados do gênero feminino. Às mulheres que permanecem no território, resta a sobrevivência precária sob a sombra do regime. Mesmo com a promessa de flexibilização do regime em uma tentativa de diminuir a rejeição da comunidade internacional, por parte do Talibã, ainda existem diversas medidas que ferem profundamente o direito da mulher.
Sem se deixar enganar ou ser leviano, é claro que os problemas e inflamações da crise humanitária presentes no Estado afegão não se restringem às mulheres. Contudo, na mesma moeda, seria cair no engano se não considerarmos a misoginia e guerra de gêneros como uma grande ferida aberta e carente de urgente tratamento. Seria de bom tom terminar o texto com uma conclusão que soprasse qualquer vento ou indício de melhora, mas isso iria contradizer o sentimento das mulheres afegãs e a realidade vivida por elas.
Referências Bibliográficas:
ACNUR. Afeganistão. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/afeganistao/#:~:text=Em%202021%2C%20cerca%20de%20quatro,80%25%20eram%20mulheres%20e%20crian%C3%A7as.. Acesso em: 29 mar. 2022.
BBC. Afeganistão: como era a vida das mulheres antes do Talebã. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58450823. Acesso em: 29 mar. 2022.
CNN. Linha do tempo: da insurgência ao poder, a história do Talibã no Afeganistão. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/linha-do-tempo-da-insurgencia-ao-poder-a-historia-do-taliba-no-afeganistao/. Acesso em: 29 mar. 2022.
G1. Afeganistão: Talibã reprime protesto por direitos das mulheres em Cabul. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/09/05/afeganistao-taliba-reprime-protesto-por-direitos-das-mulheres-em-cabul.ghtml. Acesso em: 29 mar. 2022.
G1. 'Odeio ser mulher e espero que mais nenhuma menina nasça aqui': afegãs se revoltam contra talibãs. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/03/28/odeio-ser-mulher-e-espero-que-mais-nenhuma-menina-nasca-aqui-afegas-se-revoltam-contra-talibas.ghtml. Acesso em: 29 mar. 2022.
GOMES, A. D. T. Resenha Modern Afghanistan: A History of Struggle and Survival: subtítulo do artigo. Contexto internacional, RJ, v. 30, n. 1, p. XX-YY, dez./2005. Disponível em: file:///C:/Users/maria/Downloads/Modern_Afghanistan_a_history_of_struggle_and_survi%20(1).pdf. Acesso em: 29 mar. 2022.
HISOUR. Direitos das mulheres no Afeganistão. Disponível em: https://www.hisour.com/pt/womens-rights-in-afghanistan-37352/. Acesso em: 29 mar. 2022.
ONU BRASIL. Afeganistão: Talibã reprime protesto por direitos das mulheres em Cabul. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/140484-afeganistao-agencias-da-onu-instam-o-taliba-cumprir-promessas-de-protecao-aos-vulneraveis. Acesso em: 29 mar. 2022.
SOUZA, A. C. T. C. D. Sob o véu da intervenção:: discursos de gênero na guerra do Afeganistão. Estudos feministas: subtítulo da revista, RJ, v. 25, n. 3, set/2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ref/a/qnhcNkQFhJQm683sSmb7TBg/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 29 mar. 2022.