por Jales Caur
My blood type is marked on my sleeve,
My ordinal number is marked on my sleeve,
Wish me luck in the fight,
So I don't stay here in the grass
Кино, Группа Крови (1988)
Mesmo no meio de uma pandemia, a questão securitária continua forte desde a virada da década. Em 2020, tivemos a ameaça de uma guerra devido aos testes nucleares realizados pelo Irã, levando à possibilidade de uma resposta internacional por parte dos Estados Unidos. Já em 2021, o problema se concentrou no Sudeste Asiático com mais um golpe militar na história do Mianmar — país já fragilizado pelo processo imperialista e os diversos golpes em sua história. E, em 2022, temos a questão entre Ucrânia, Rússia e Estados Unidos, relembrando um pouco sobre o jogo de poder e da esfera de influência entre os dois países chaves na história do mundo no século XX.
Essa questão recorrente é um dos resquícios sistémicos, históricos e culturais deixados pela Guerra Fria, que envolve o posicionamento da Rússia em relação ao restante dos países do Leste Europeu, que formavam a antiga União Soviética, e a atuação dos Estados Unidos enquanto hegemon global. A Ucrânia se encontra no meio das esferas de influência dos EUA e da Rússia. Por um lado, há a sociedade ucraniana, que deseja uma aproximação junto ao ocidente — desejo que pode ser visto conforme visto na crise de 2014, conhecida como “Revolução da Dignidade”, que resultou com a remoção do então presidente, Viktor Yanukovich, após a interrupção da assinatura do acordo que integraria a Ucrânia à União Europeia, e a anexação da Crimeia pela Rússia. Por outro, há uma grande potência que não quer ter sua esfera de influência e securitária afetada pelo inimigo representado pelos Estados Unidos e pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
A partir disso, temos um cenário que reverbera os resquícios da Guerra Fria nas estruturas de ação internacional. Portanto, é necessário entender a relação Rússia e Ucrânia, relembrar a que passos Estados Unidos e Rússia valsam e, por fim, o que isso poderá implicar para a situação securitária da Europa e do mundo.
Relações Ucrânia e Rússia pela história
A Ucrânia foi formalmente fundada e reconhecida como um país soberano em 1991, com a ruptura da União Soviética causada por diversas crises políticas e econômicas — como as grandes crises econômicas que assolaram o bloco na última década e o acidente de Chernobyl, que aconteceu em território ucraniano. No entanto, a relação precede 1917. Em discurso, Vladimir Putin (2014) classificou Kiev, atual capital da Ucrânia, como “mãe de todas as cidades russas”, referindo-se às raízes eslavas que formaram a cultura de ambos os países. A cidade foi centro do que um dia foi o Estado medieval de Kyivan Rus’, durante os anos de 882 e 1240, e é associada às raízes russas desde os czares do antigo Império Russo — argumento usado para atribuir soberania do território ucraniano à Rússia (DURAND, 2022).
É notável nas ações e nos discursos de política externa regional da Rússia que se enxerga os países que já foram membros da União Soviética pela perspectiva da subordinação — na qual a Rússia seria um país superior e o restante deveria seguir suas instruções e normas. Essa posição pode ser vista na interferência da Rússia nos problemas domésticos dos países da região, como na situação da Arménia, em 2020, e no Cazaquistão, entre 2021 e 2022. A Ucrânia acabou nessa esfera de influência em 1919, quando foi somada à Revolução Russa devido ao caos generalizado da instituição governamental, quando diversos estados avançaram rumo ao separatismo e independência (KUBICEK, 2008). A partir disso, considerando a situação de pós-Primeira Grande Guerra e dos diversos exércitos atuando dentro do território ucraniano, a fome se espalhou pelo país pela falta de abastecimento gerada e agravada pelos conflitos, levando à incorporação do país ao bloco soviético (SUBTELNY, 2000).
Portanto, deve-se considerar duas variáveis: o passado recente, de influência do governo soviético, que era baseado na Rússia, nos países da região; e o passado antigo de raízes compartilhadas, relembrando as atribuições feitas desde os czares até Vladmir Putin de que as raízes da Rússia se encontram na Ucrânia. Isso acaba gerando um sentimento de superioridade por parte da Rússia em relação à Ucrânia enquanto um país soberano e reconhecido internacionalmente. A Crimeia é fruto dessa conjuntura que se formou com o fim da União Soviética e do avanço estadunidense junto aos países do Leste Europeu como forma de sufocar a influência e o exercício de poder da Rússia na região (SIMES, 1992).
No entanto, a Rússia não iria somente observar. A anexação da Crimeia após a remoção de Viktor Yanukovych, alinhado aos interesses de Moscou, foi uma das respostas mais radicais na contemporaneidade considerando se tratar de uma anexação de território em pleno século XXI. A anexação aconteceu em momento oportuno, com a insurgência de um grupo separatista na região e o apoio militar e político da Rússia a ele — acusações de apoio, essas, que foram feitas pela Ucrânia e pelo ocidente, mas desmentidas pela Rússia, que alegou que o apoio vinha de russos voluntários e simpatizantes ao grupo (A SIMPLE..., 2022).
A partir disso, as demandas da Ucrânia em se proteger dos interesses russos e de qualquer desdobramento indesejado que poderiam ameaçar sua soberania e instituição governamental se mostra presente na política externa do país. Em junho de 2017, os deputados ucranianos pautaram novamente no legislativo a tentativa de integração à OTAN como membro (NORTH ATLANTIC TREATY ORGANIZATION [NATO], 2022). Algo de interesse desde 2008. Essa ação, no entanto, só pode acontecer caso haja concordância unânime dos 30 países membros da organização criada no pós-Guerra Fria como forma de aliança militar e securitária formada pelos países do hemisfério norte contra a Rússia. E, de maneira direta, seria uma ação completamente oposta aos interesses russos, que fariam fronteira com um país cujo a OTAN poderia, e provavelmente faria, exercícios e manteria bases militares. O próprio presidente da Rússia, Vladimir Putin, afirmou que o ingresso da Ucrânia na aliança poderia engatilhar uma guerra entre a Rússia e a OTAN (EPSTEIN, HALTIWANGER, 2022).
O que está acontecendo em 2022?
Conforme mencionado, se a Ucrânia se unisse à OTAN, uma guerra poderia se originar — algo contra o interesse de todo o mundo, visto as denúncias que ambas Rússia e Estados Unidos fizeram um contra o outro no Conselho de Segurança das Nações Unidas, no qual ambos possuem poder de veto. No entanto, a Rússia busca por garantias legais que a aliança militar restrinja as suas ações no Leste Europeu devido à ameaça que isso apresenta à soberania russa (A SIMPLE..., 2022). É observado que essa ação de ingresso da Ucrânia à OTAN é enxergada pelo Kremlin como um cerco contra a Rússia — o que, de fato, chega a ser.
A partir dessas imposições russas feitas no final de 2021, a OTAN respondeu. O atual Secretário Geral da OTAN, o norueguês Jens Stoltenberg, recusou o pedido russo de rescindir com um compromisso de 2008 feito pela OTAN para a Ucrânia de que algum dia o país iria se tornar membro da aliança (A SIMPLE..., 2022). E ainda há o fator de que o país eslavo é considerado parceiro da aliança, gerando ainda mais incômodo à Rússia. Com isso, a Rússia começou a se mexer. Ainda em dezembro de 2021, Putin aumentou a mobilização já existente do exército russo para a fronteira do país com a Ucrânia, assim como diversos equipamentos de batalha para bases de treinamento próximos da fronteira. Imagens de satélite mostram que o aparelhamento militar russo na região acontece desde novembro (ROTH; BLOOD; HOOG, 2022).
Figuras 1, 2 e 3: Imagens de satélite que comprovam a movimentação das forças beligerantes russas na região de fronteira com a Ucrânia entre novembro de 2021 e janeiro de 2022.
Haverá guerra?
Como pode-se observar pelas raízes do conflito e a sua evolução conflituosa, é plausível esperar que um conflito estoure a qualquer momento. Nenhum país movimenta tropas e armamentos da forma em que está sendo feita sem estarem cientes da belicosidade que estão provocando. Dentro das diversas teorias e lentes de análise providas pela disciplina de Relações Internacionais, a guerra parece ser a mais iminente em todas elas. Temos ameaça à segurança doméstica e soberania de um país, temos uma potência temerosa por perder seu espaço de atuação de poder, há uma grande aliança de cooperação internacional disposta a manter a atual conjuntura construída após a considerada derrota da União Soviética com o fim do bloco. Todas as teorias têm valores para alimentarem suas variáveis enquanto as constantes parecem se confirmarem nas equações da realidade em 2022.
No entanto, como estamos lidando com a irracionalidade humana, a análise precisa ser feita de modo a não tentar prever ou prescrever nada, respeitando os limites de não ser uma ciência natural da política. A partir disso, temos alguns cenários de possibilidade para o futuro. O primeiro cenário e com maior probabilidade de concretude é o cenário da via diplomática. A via diplomática pode ser acionada antes de que um conflito de fato aconteça. A administração Biden teria um grande problema caso um conflito estourasse após o fiasco da retirada das tropas estadunidenses do Afeganistão no ano de 2021. Além disso, as Nações Unidas foram criadas com um propósito e todos os membros permanentes do Conselho de Segurança estarem envolvidos de alguma forma — no caso da China, por associação ideológica, mesmo que não apresente vontade de se colocar a favor ou contra nenhum país pelos custos econômicos que uma guerra poderia trazer para uma China que possui fortes planos de desenvolvimento e de expansão de poder. Dessa forma, a via diplomática, sempre a mais desejada, é a melhor saída tanto para as partes envolvidas como para o mundo — algo que a Rússia deve reconhecer como verdade.
O segundo cenário é da trava nuclear é extremamente semelhante aos princípios básicos de segurança e o que se acredita que impediu uma terceira guerra mundial. Três dos cinco países-membros permanentes do Conselho de Segurança fazem parte da OTAN e possuem armamento nuclear. Desde o princípio de sua criação e capacidade de destruição, as ações beligerantes envolvendo essa tecnologia são evitadas a fim de manter a sobrevivência mútua de toda a espécie humana — o que a política realista chama de Mutual Assured Destruction, o maior pavor mundial durante a Guerra Fria. Portanto, não é vantajoso que potências nucleares iniciem conflitos entre si, principalmente duas dessas que passaram meio século de ameaças constantes e reais — como, por exemplo, a Crise dos Mísseis de Cuba, em 1962.
O último cenário é o menos provável, mas ainda sim, o mais preocupante por ainda ser um cenário válido. Nesse cenário, a Rússia invade a Ucrânia. Os Estados Unidos rapidamente iriam entrar em ação, como já estão, ao enviar tropas para a Europa perante o medo eminente do ocidente desse cenário acontecer. Em 3 de fevereiro, foram enviados cerca de 2 mil soldados para a Polônia e para a Alemanha, somando com os 1 mil que já se encontravam na Alemanha e na Romênia — ação condenada pela Rússia (UKRAINE..., 2022a). Há declarações de Putin alegando que o ocidente, principalmente os Estados Unidos, está a usar a Ucrânia como meio para arrastar a Rússia para a guerra (UKRAINE..., 2022b). Considerando essa somatória constante de tensões, um conflito pode acontecer, de fato, e as consequências são inimagináveis para a região e para o mundo, considerando as alianças internacionais e toda a rede global de abastecimento que afetaria todo o mundo — incluindo o Brasil, considerando que o Leste Europeu provém boa parte dos fertilizantes utilizados pelo agronegócio brasileiro. O conflito poderia evoluir para algo grande, ou ser rapidamente resolvido por vias diplomáticas, considerando envolver países relevantes e estar acontecendo em território europeu — em contramão aos outros conflitos que não são rapidamente resolvidos por acontecerem em regiões não importantes para esses países.
Conforme apresentado, temos que as relações internacionais e as relações entre os países envolvidos ainda estão muito pautadas no que continuou reverberando nas estruturas da política internacional e da atuação de poder. Só que, dessa vez, ao invés das proxy wars financiadas pelas duas potências, como a Guerra das Coreias na década de 1950 e a do Vietnã na década de 1970, o conflito está prestes a acontecer na Europa — novamente. Ainda há a pressão que a União Europeia deverá fazer enquanto bloco econômico de importância para evitar quaisquer prejuízos que um conflito em 2022 durante uma pandemia global poderá causar.
Referências
A SIMPLE guide to the Ukraine-Russia crisis: 5 things to know. Al Jazeera, 25 jan. 2022. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2022/1/25/five-things-to-know-about-russia-ukraine-tensions. Acesso em: 3 fev. 2022.
EPSTEIN, J.; HALTIWANDER, J. Putin says if Ukraine ever joins NATO, it may trigger a war between Russia and the alliance. Insider, 1 fev. 2022. Disponível em: https://www.businessinsider.com/ukraine-joining-nato-could-trigger-war-russia-alliance-putin-says-2022-2. Acesso em: 3 fev. 2022.
KUBICEK, P. The History of Ukraine. Greenwood Press, 2008.
NORTH ATLANTIC TREATY ORGANIZATION. Relations with Ukraine. NATO, 11 jan. 2022. Disponível em: https://www.nato.int/cps/en/natohq/topics_37750.htm. Acesso em: 3 fev. 2022.
PUTIN: ‘Kiev is the mother of all Russian cities’. The Washington Post, 18 mar. 2014. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/video/world/putin-kiev-is-the-mother-of-all-russian-cities/2014/03/18/ef945a80-ae94-11e3-b8b3-44b1d1cd4c1f_video.html. Acessado em: 2 fev. 2022.
ROTH, A.; BLOOD, D.; HOOG, N. Russia-Ukraine crisis: where are Putin’s troops and what are his options?. The Guardian, 25 jan. 2022. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2021/dec/17/russia-ukraine-crisis-putin-troops-visual-guide-explainer. Acesso em: 3 fev. 2022.
SIMES, D. America and the Post-Soviet Republics. Foreign Affairs, 1992. Disponível em: https://www.foreignaffairs.com/articles/russian-federation/1992-06-01/america-and-post-soviet-republics. Acesso em: 3 fev. 2022.
SUBTELNY, O. Ukraine: A History. 3rd ed. Toronto: University of Toronto Press. 2000.
UKRAINE tensions: Russia condemns destructive US troop increase in Europe. BBC, 3 fev. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-europe-60238869. Acesso em: 3 fev. 2022.
UKRAINE tensions: US trying to draw Russia into war, Putin says. BBC, 2 fev. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-europe-60220702. Acesso em: 3 fev. 2022.