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Análise Quinzenal

por Luiza Ferreira

 

Neste ano, o Brasil passa pela pior crise hídrica desde a década de 1930, fator que, aliado à diminuição progressiva dos reservatórios das hidrelétricas nos últimos oito anos, pode levar a uma crise energética generalizada pelo país (ONS, 2021). Entre os fatores explicativos para a crise, encontram-se a falta de diversidade da matriz energética brasileira, relacionada à má governança de recursos energéticos, e a alta dependência de eventos climáticos esporádicos, como as chuvas, para a geração de energia.

 

Mesmo com a diminuição da importância das hidrelétricas na oferta interna de energia ao longo dos últimos vinte anos, os governos brasileiros têm investido na construção de barragens, visando aumentar a contribuição de fontes renováveis para a matriz energética. Entretanto, apesar de usinas hidrelétricas utilizarem uma fonte renovável, a construção e o funcionamento desses empreendimentos apresentam diversas externalidades negativas para o meio ambiente e para as populações humanas, que não são compensadas pelas construtoras, pelas empresas distribuidoras de energia ou, ainda, pelo próprio governo. Diante desse cenário, o objetivo deste texto é analisar como o Brasil se comporta em relação a outros países no quesito investimento em energia hidrelétrica.

 

Os reservatórios de energia localizados nas regiões Sudeste e Centro-Oeste são responsáveis por fornecer 70% de toda a energia do Sistema Interligado Nacional (MAIS..., 2021). Nos últimos dez anos, esses reservatórios só ficaram acima de 80% uma vez e, no final de abril deste ano, estavam operando com apenas 34,7% (MAIS..., 2021). Segundo dados do último Balanço Energético Anual, as hidrelétricas foram responsáveis por gerar 65,2% da eletricidade consumida em 2020 (MME, 2021), demonstrando um grau elevado de dependência desse tipo de energia. Dessa forma, a crise hídrica nos reservatórios pode levar a um esgotamento generalizado dos recursos energéticos até novembro, no final do período de estiagem (ESGOTAMENTO..., 2021).

 

A crise energética atual é uma consequência não somente da falta de chuvas observada nos últimos anos, mas também do uso ineficiente da água e da falta de governança de recursos (MACÁRIO, 2021). Quanto ao primeiro fator, segundo o professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE-USP), Pedro Côrtes, o desmatamento florestal na região amazônica influencia expressivamente a formação de chuvas nas demais regiões do país (OLIVEIRA, 2021). O pesquisador reforça que o desmatamento gera consequências imediatas e, com o aumento constante dos índices de derrubada de florestas registrados em 2021, a situação climática desfavorável foi potencializada, levando à crise em que nos encontramos atualmente.

 

Quanto ao segundo fator, o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, avaliou que a governança de recursos e organização no setor elétrico também são responsáveis pela crise energética (MIRON, 2021). Atualmente, o Brasil não possui políticas energéticas de longo prazo ou estratégias de implementação com prazos e responsabilidades bem delineadas (IEI, 2018). Além disso, o governo federal, historicamente, tende a desconsiderar alertas prévios de especialistas, que já recomendavam mudanças no planejamento elétrico brasileiro (ARCANJO, 2021).

 

Investimentos em hidrelétricas ao redor do mundo

 

Segundo o glossário da Renewable Energy and Energy Efficiency Partnership (REEP), energia sustentável é aquela que “atende às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de atender às suas próprias necessidades” (REEP; LEMAIRE, 2004). No caso da energia hidrelétrica, embora seja responsável pela geração de 71% de toda a energia renovável produzida mundialmente (MORAN et al., 2018), não é possível dizer que trata-se de uma fonte sustentável. Considerando que a prioridade das grandes barragens é gerar energia para centros industriais e urbanos, as externalidades negativas ambientais e sociais decorrentes da construção dos reservatórios são frequentemente desconsideradas (ibid., 2018).

 

Entre essas externalidades encontram-se a disrupção do ciclo hidrológico, desmatamento, perda da biodiversidade aquática e terrestre, aumento da emissão de gás carbônico (ibid., 2018). Além dos danos ao meio ambiente, hidrelétricas também estão relacionadas à diminuição da qualidade de vida das populações que vivem próximas às barragens, notadamente, comunidades tradicionais.

 

Durante seu processo de construção, as barragens das hidrelétricas são promovidas pelas construtoras e pelos governos como um fenômeno benéfico para as populações locais, sendo uma oportunidade de geração de emprego e desenvolvimento. Entretanto, as construções de barragens estão frequentemente associadas ao aumento da criminalidade e do uso de forças de repressão contra civis (ibid., 2018). Há ainda a intensificação do fluxo migratório forçado, que, segundo Emílio Moran et al, já afetou mais de 80 milhões de pessoas no último século (MORAN et al., 2018). 

 

Do ponto de vista econômico, também são pouco lucrativos. Um levantamento realizado entre 1934 e 2007 pela Universidade de Oxford demonstrou que os custos reais de construção de grandes barragens, normalmente, superam em 96% o orçamento inicial previsto (ANSAR et al apud MORAN et al., 2018). Além disso, hidrelétricas são construídas levando em consideração uma vida útil de 30 anos, após esse período, os custos de manutenção das barragens superaram em até três vezes os custos para desativá-las. Diante de todo o cenário descrito, países desenvolvidos têm implementado políticas visando a desativação de hidrelétricas e remoção de barragens desde o começo dos anos 2000 (ibid., 2018).

 

Por outro lado, países em desenvolvimento, especialmente aqueles localizados nas bacias dos rios Amazonas, Congo e Mekong, ainda executam projetos para a construção de barragens de pequeno e grande porte. Nesses casos, o desenvolvimento do setor hidro-energético tende a subvalorizar os efeitos climáticos que podem incidir sobre a geração de energia e também aqueles advindos do processo de geração elétrica (MORAN et al., 2018). Conforme dito anteriormente, o desmatamento amazônico afeta fortemente a geração de energia das hidrelétricas localizadas no Sudeste, por exemplo.

Quanto aos efeitos advindos da construção das hidrelétricas, um exemplo contundente é a instalação de uma barragem chinesa no rio Mekong, no Camboja, que levou ao ressecamento da parte mais inferior do rio, responsável por abastecer culturas agrícolas de comunidades da região (JENNINGS, 2021). Quando o plano de construção da barragem foi divulgado, em 2018, especialistas já haviam alertado de que isto poderia levar à morte do rio, consequentemente afetando milhões de pessoas no Camboja e no Vietnã (WRIGHT, 2018).

 

Já na República Democrática do Congo, há um projeto em andamento para a construção da grande represa de Inga, que poderia suprir cerca de 40% de toda a demanda energética da África (ILUNGA, 2020). Entretanto, ao invés de atender às necessidades da população congolesa, que em sua maioria não tem acesso à energia elétrica, o projeto iria beneficiar, principalmente, empresas mineradoras localizadas na África do Sul e em outros países (MORAN et al., 2018).

 

Para além das mega barragens, países em desenvolvimento, especialmente Índia e Brasil, também têm investido na construção de barragens menores, cuja tecnologia agregada teoricamente aumentaria a eficiência energética e diminuiria os impactos ambientais da hidrelétrica. Entretanto, não há evidências científicas suficientes que comprovem a eficácia desses projetos, sugerindo ainda que barragens menores podem prejudicar o desenvolvimento da vida aquática tanto quanto as maiores (MORAN et al., 2018).

 

Investimentos brasileiros em hidrelétricas

 

Atualmente, 48,4% da oferta interna de energia provém de fontes renováveis, sendo 12,6% de origem hídrica (MME, 2021). Entretanto, conforme dito anteriormente, as usinas hidrelétricas geraram 65,2% da eletricidade consumida em 2020 (MME, 2021), evidenciando que, embora outras fontes de energia sejam predominantes no sistema energético, a fonte hídrica ainda é predominante no quesito de geração de eletricidade.

 

Por outro lado, nos últimos vinte anos, a dependência brasileira de energia hidrelétrica tem diminuído progressivamente. Em 2001, ano conhecido pela existência de “apagões” energéticos, as hidrelétricas eram responsáveis por 85,6% da geração de eletricidade (MACÁRIO, 2021). Já em 2020, foi registrada uma diminuição de 4,2% no consumo de energia gerada por fontes hídrica, queda inferior à observada em 2019 (MME, 2021). Entretanto, embora haja, de fato, uma diminuição da presença dessa fonte na matriz energética nacional nos últimos anos, o país ainda investiu na construção de hidrelétrica. Entre os principais projetos, encontram-se as hidrelétricas de Jirau, no Rio Madeira, inaugurada em 2016, e de Belo Monte, no Rio Xingu, inaugurada em 2019.

 

No caso de ambas as hidrelétricas citadas acima, as externalidades ambientais e humanas foram menosprezadas pelos governos nacional e local. Em ambos os casos, o preço da energia elétrica na região subiu após a construção das usinas e o crime organizado se intensificou (MORAN et al., 2018). No Rio Madeira, a construção da barragem de Jirau trouxe consequências extremamente negativas para a vida aquática do rio, afetando as populações indígenas da região, que são tradicionalmente pesqueiras (SANTOS et al., 2018). Além disso, as inundações de Jirau também levaram à ocorrência de inundações na Bolívia, evidenciando que os impactos da construção de hidrelétricas podem atravessar fronteiras nacionais (MORAN et al., 2018).

 

Já no Rio Xingu, a hidrelétrica de Belo Monte comprometeu 80% da água de um trecho de 100 km habitado por populações indígenas (FEARNSIDE, 2020). A construção da hidrelétrica também levou ao deslocamento direto de mais de 20 mil pessoas, incluindo indígenas e ribeirinhos (ibid., 2021). Por fim, os escândalos de pagamentos de propina ligados à construção de Belo Monte sugerem que as motivações por trás da expansão do sistema hidrelétrico brasileiro podem estar relacionadas à redes complexas de corrupção e ao financiamento de interesses particulares (MORAN et al., 2018).

 

Apesar da diminuição da importância da fonte hídrica para a matriz energética brasileira observada nos últimos vinte anos, o país ainda é altamente dependente de hidrelétricas para suprir a demanda interna de energia. O aumento constante dos níveis de desmatamento na Amazônia, levando à diminuição dos níveis de precipitação no país como um todo, e o uso ineficiente de recursos energéticos contribuíram para o agravamento da crise energética deste ano. Frequentemente, as hidrelétricas apresentam resultados abaixo do esperado, em decorrência da falta de chuvas e do mau uso da água, e possuem altos custos de manutenção, não sendo economicamente viáveis.

 

Na contramão da tendência observada por países do Norte, os governos brasileiros têm investido na construção de novas usinas hidrelétricas, em detrimento de outras fontes renováveis de energia, como eólica e solar. Entretanto, é o caminho para tornar a matriz energética brasileira renovável e sustentável não contempla a utilização da energia hidrelétrica como é verificada atualmente, por meio de grandes barragens.

 

Referências

 

ARCANJO, D. Crise hídrica já estava anunciada, diz pesquisador. Folha de S. Paulo, 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/07/crise-hidrica-ja-estava-anunciada-diz-pesquisador.shtml. Acesso em: 9 ago. 2021.

É preciso adaptar o sistema de abastecimento de energia atual às mudanças climáticas.  Jornal da USP. 30 jul. 2021. Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/e-preciso-adaptar-o-sistema-de-abastecimento-de-energia-atual-de-acordo-com-as-mudancas-climaticas/. Acesso em: 11 ago. 2021.

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