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Análise de Conjuntura
PET-REL, Nadao Bangkok ©

por Jales Caur

 

Dare to be yourself for the world to be jealous

Love Sick: The Series (adaptada)

 

O K-POP é um sucesso estrondoso, que conseguiu romper as barreiras idiomáticas, raciais e culturais para fora da Ásia — mesmo os que não são apreciadores, não podem negar esse fato. A tática utilizada pelo governo sul-coreano para o fortalecimento da indústria cultural do país é um exemplo contemporâneo de execução exitosa de soft power, conforme o modelo proposto por Nye (2004). O sucesso é tamanho, que seria esperado aos países vizinhos reproduzirem uma realidade mais próxima à sua, considerando  o caráter do modelo anterior ao coreano, o japonês, bastante heterogêneo em sua forma de exportar animes e mangás com o espírito da cultura e história japonesa —  que tornaram-se referência na imagem da Ásia para o ocidente.

 

A Coreia do Sul conseguiu quebrar esse padrão ao  criar, no K-POP, um gênero exportável ao ponto de sobrepassar o preconceito e abrir caminho para uma nova visão de Ásia, mesmo que ainda lida de forma redutora da variedade de culturas da região leste do continente, e incentivando outros países a fazerem o mesmo. Um exemplo disso, a Tailândia, encontrou o seu produto cultural não na música, mas na produção cinematográfica de um gênero não tão tradicional: nas produções de Boys Love, que contam histórias de casais gays formados por dois homens.

 

A Origem do agora gênero Boys Love

 

Devido ao preconceito e à repressão aos demais espectros das sexualidades além da heterossexualidade, as pessoas encontraram na arte uma maneira de expressar suas identidades através da representação criativa de seus desejos. Dentro da cultura pop, isso se expressou de maneira mais pungente através dos nichos de fãs — entendida como o espectro de identidades entre “cultist x enthusiastic”, ou seja, um grupo de pessoas que compartilha gostos, cria um vínculo de identidade e são lidos socialmente como consumidores fiéis de produtos culturais dos quais gostam (Hills 2002; Jenkins 1992). Essa identidade é compartilhada entre eles através de grupos nomeados de fandoms.

 

Essa expressão sempre foi muito popular entre os fandoms dos produtos culturais asiáticos, alavancado por muitos anos pelos animes e mangás japoneses — os primeiros produtos culturais asiáticos a dominar o ocidente, com jogos como Pokémon e animações como Dragon Ball e Naruto. A falta de representatividade levou não somente à produção de mangás e animações com protagonistas do sexo masculino, cujas tramas eram amorosas, como levou, também, os fãs a produzirem histórias — as famosas fanfictions (ficções criadas por fãs, em tradução literal) — e outras formas de arte, inclusive  ilustrações. Diante da explosão desse tipo de obra entre os produtos culturais japoneses, o gênero de obras gays ficou conhecido como Yaoi. Esse gênero surgiu no pós-guerra como forma de expressão sexual sem amarras para as mulheres (Central Boys Love 2020a), que até hoje permanecem como as  maiores criadoras e consumidoras desses conteúdos.

 

Essas obras ficaram conhecidas como Yaoi em todos os países em que chegavam, sendo conhecido somente como Y na Tailândia (Central Boys Love 2020a). Os anos 2000 foram essenciais para a consolidação da popularização de tais obras, e pela cultura de fãs de “shippar” (Central Boys Love 2020b) — expressão derivada da palavra relationship e descreve a ação de torcer para um casal ficar junto —, sendo fortalecidas pela ascensão do pop coreano no país. A cultura de produção de fãs foi essencial para a consolidação, não somente de uma base consumidora, como também do processo de criação de um mercado editorial com obras originais.

 

Nesse contexto, a Tailândia se afirmou como uma das pioneiras na produção cinematográfica de obras Boys Love. Esse termo, romance entre garotos (em tradução livre), se consolidou rapidamente pela praticidade e objetividade do termo em inglês, e foi facilmente popularizado, substituindo o termo antigo, Yaoi. A expansão do gênero criou um mercado com uma grande base de fãs nacionais, regionais e internacionais. Entretanto, na mesma medida  em que os fãs criaram interesse no mercado em ascensão — considerado, agora, um gênero por si só, e não um sub gênero de romance —, o fato de o foco principal ser um romance gay entre homens ainda provoca problemáticas e dificuldades para a crescimento do mercado, pelo contexto de preconceito e imposição heteronormativa.

 

O mercado tailandês de obras cinematográficas gays

 

Os filmes e séries gays não são algo recente. Filmes como Amor de Sião (รักแห่งสยาม, 2007) e séries como Doente de Amor: A Série (รักวุ่น วัยรุ่นแสบ, 2014), adaptação de um romance do mesmo nome, fazem parte das obras de destaque anteriores à grande explosão do gênero, que enfrantaram  não somente a resistência do público geral, como a falta de recursos. No entanto, foram passos essenciais para a criação da indústria como ela é hoje.

 

As histórias são consideradas clichês, geralmente tratadas em ambiente escolar com roteiros previsíveis e histórias repetidas — vantajosas não somente pela facilidade de agradar o público, como pelas questões financeiras, considerando que as gravações aconteceriam em locações já prontas. Isso foi o suficiente para o atual mercado — contando com a GMMTV como a maior distribuidora na atualidade pelo fato de ser parte do grupo GMM Grammy, referência televisiva na Tailândia — ser focado somente na adaptação de romances adolescentes, e da Nadao Bangkok. No entanto, mesmo com a presença dessas empresas e do gênero se tratar, agora, de uma indústria em rápido crescimento, as produções ainda carecem de novos patrocinadores, permanecendo praticamente como obras independentes (Central Boys Love 2020c).

 

As produções também contam com a participação do público fiel na compra de produtos temáticos e na ida a eventos, fan meetings, dentre outros subprodutos comercializados e que movimentam bastante dinheiro. O recurso adquirido pela monetização do YouTube também é consideravelmente alto, se analisada a divisão em quatro partes de cada episódio e dos milhões de visualizações de fãs internacionais nos vídeos dos canais oficiais. Plataformas de streaming, como a gigante Netflix e LINE TV, também possuem um papel fundamental, não somente de caráter financeiro, mas também na popularização dessas obras, reiniciando o ciclo.

 

Dentro das histórias clichês, há a grande referência 2gether: Juntos (เพราะเราคู่กัน, 2020) que se popularizou nos meses iniciais da pandemia da Covid-19 e é o resultado de anos de histórias universitárias como 2 Luas (เดือนเกี้ยวเดือน, 2017), Junto Comigo (อกหักมารักกับผม, 2017) e Por que você é? (เพราะรักใช่ป่าว, 2020). As histórias comumente são contextualizadas no ambiente das graduações mais bem quistas na Tailândia, como Medicina e Direito — sendo 2gether a exceção, com o protagonista Sarawat como graduando em Relações Internacionais. Mas essas histórias acabaram por levar a saturação do mercado com a repetição de roteiros e pela falta de inovação (Central Boys Love, 2020c). Pode-se inferir que a expansão do público para a esfera internacional pode ter intensificado essa cobrança.

 

Desde o final de 2020 e em 2021, observou-se uma maior inovação nas propostas. Em destaque, há o universo de Eu Contei ao Pôr do Sol Sobre Você e Eu te Prometo a Lua (แปลรักฉันด้วยใจเธอ , 2020/2021), que trouxe questões sociais marcantes quanto ao ser gay, e Maneira da Morte (พฤติการณ์ที่ตาย, 2020), um suspense criminal que trouxe personagens homossexuais em uma história além do romance. Houve uma renovação das histórias e da forma como é representado o homem gay, mais bem recebido pelo público, o que vem ajudando a consolidar esse mercado na região e exportando o modelo para os países vizinhos, principalmente para as Filipinas, com produções como Hello Stranger, Gaya sa Pelikula e Gameboys, mostrando o potencial da indústria como força de soft power tailandês.

 

A fórmula se repete: Boys Love como forma de Soft Power

 

O termo Soft Power é bastante discutido dentro da disciplina de Relações Internacionais como alternativa ao conceito de Hard Power, o poder econômico e militar. O conceito foi cunhado pelo estadunidense Joseph Nye (2004) no livro Soft Power – The Means to Success in World Politics. O termo é definido como o poder de moldar a vontade do outro de acordo com um referencial de vontade, ideário ou agenda política, sem fazer com que isso aparente, no entanto, uma imposição de ideias. É necessário que as pessoas tomem iniciativa acreditando que aquilo partiu inteiramente dela — não sendo perceptível a influência direta durante o ato de decisão.

 

O poder brando é alimentado por três fontes: valores culturais, valores políticos e política externa, que operam separadamente sem intersecção de influência. No entanto, a realidade impõe a relação entre essas três esferas, com a participação de entidades públicas e privadas visando algum tipo de vantagem — como no caso da extensiva investida sul-coreana na indústria cultural, durante a década de 2000, e com  a criação do K-POP enquanto gênero musical e sua internacionalização. A fórmula pela qual é lido o K-POP ajuda a entender um pouco sobre como o processo dessa indústria se realiza.

 

No entanto, é importante entender que o processo não é o mesmo, já que as questões em pauta não são as mesmas. A Coreia do Sul fortaleceu a sua indústria cultural de forma a superar a crise econômica que assolou a Ásia na década de 1990, e a fim de criar uma hegemonia cultural sul-coreana a nível regional (Chow 2015). No caso tailandês, embora tenhamos um contexto de crise político-social e, na atualidade, econômico em decorrência da pandemia da Covid-19 (Caur 2020), o governo se coloca como uma figura que oscila entre a neutralidade e o comportamento negativo nesse contexto, não incentivando e até mesmo introduzindo novas medidas para a regulação do que pode ser exibido nos meios de telecomunicação, servindo como uma forma de censurar a produção de conteúdo Boys Love (Watson e Jirik  2018).

 

Afora esta distinção do contexto sul-coreano,  a fórmula segue os mesmos moldes: uma base sólida nacional que financia com a compra de subprodutos e uma fiel base internacional que, mesmo transacionando muito poucos recursos financeiros, ajudam a engajar o conteúdo nas redes sociais. Chow (2015) também menciona como muitas garotas menores de idade assistem os dramas Boys Love escondidas dos pais pelo medo de possíveis represálias, demonstrando o poder de conscientização que esses dramas possuem nas novas gerações. Tal fenômeno pode ser observado etnograficamente em comunidades virtuais, com relação  ao contato com fanfictions escritas e como esses textos influenciam os novos fãs a serem mais abertos quanto à diversidade sexual e de gênero para serem bem acolhidos junto ao nicho, e, muitas vezes, se aliando à causa.

 

Os dramas conseguiram atrair muita atenção dos fãs de cultura asiática em geral, inclusive  o público dos mangás e animes do gênero — tanto do Japão e Coreia do Sul, como da China — e, também, fãs de K-POP, conquistados pela nova mídia disponível para consumo, considerando que, no fim, ainda é uma mídia asiática. A guinada do Japão nas décadas de 1980 e 1990 permitiu que o ocidente naturalizasse algo diferente do padrão, um fenômeno importante para a dinâmica social global, tendo em vista as dificuldades expostas pelo racismo sofrido pelas comunidades asiáticas nos continentes americano e europeu. Essa guinada permitiu que o K-POP não fosse ignorado e tratado por completo como algo “exótico”, tendo em vista a familiaridade já existente com um idioma diferente do padrão latino/anglo-saxão, e com o estilo completamente distinto de roupas e comportamentos.

 

Com a guinada global do K-POP, após o longo processo de internacionalização, essa aproximação cultural e costume com um produto não-ocidental se tornou cada vez maior e o sentimento de diferença se tornou menor. A adição de dramas coreanos nos catálogos da Netflix contribuíram ainda mais para essa aproximação. Logo, a abertura para o acolhimento dessa nova indústria, provinda de um país asiático, aconteceu organicamente. No fim, o poder da indústria de Boys Love tailandesa foi tamanho que, além do já citado caso das Filipinas, a própria Coreia do Sul se viu como parte dessa indústria em ascensão, que também fortaleceu a indústria em Taiwan e no Japão, gerando incômodo na China, e chegou em lugares como a Vietnã, Indonésia e Mianmar, mesmo que timidamente.

 

Considerações Finais

 

Como demonstrado ao longo da análise, as últimas décadas marcaram um poderoso impacto na percepção das pessoas, especialmente diante de um tema tão delicado quanto uma indústria focada em relacionamentos homossexuais entre homens. Nesse contexto social, a indústria de Boys Love se tornou fonte latente de soft power por parte da Tailândia, mesmo sendo originado na esfera privada. O poder da indústria dos dramas Boys Love não se limita somente à atração de nichos já consolidados e fiéis aos seus produtos, mas também tem o poder contribuir para a mudança, a nível individual e no núcleo social de cada um, trazendo o caráter cultural de transformação social, pouco discutido e evocado ao falarmos sobre soft power.

 

 

Referências

 

“A História Do BL Na Tailândia — Parte Um.” 2020a. Central Boys Love. 2020. https://www.centralboyslove.com/2020/09/o-bl-na-tailandia-um-pouco-de-historia.html.

Caur, Jales. 2020. “Triptych Framework: Thailand’s Fight against Political, Economical, and COVID-19 Crisis.” PET-REL. 2020. http://petrel.unb.br/destaques/104-triptych-framework-thailand-s-fight-against-political-economical-and-covid-19-crisis.

Chow, Kat. 2015. “How the South Korean Government Made K-Pop A Thing.” NPR. 2015. https://www.npr.org/sections/codeswitch/2015/04/13/399414351/how-the-south-korean-government-made-k-pop-a-thing.

“Como é Produzido o BL Tailândes — Parte Três.” 2020c. Central Boys Love. 2020. https://www.centralboyslove.com/2020/10/como-e-produzido-o-bl-tailandes-parte.html?m=1.

Hills, Matt. 2002. Fan Cultures. London: Routledge.

Jenkins, Henry. 1992. Textual Poachers: Television Fans and Participatory Culture. New York & London: Routledge.

Nye, Joseph S. 2004. Soft Power: The Means to Success in World Politics. 1st ed. New York: PublicAffairs.

“O BL Tailandês Como Conhecemos Hoje e Expansão Internacional — Parte Dois.” 2020b. Central Boys Love. 2020. https://www.centralboyslove.com/2020/09/o-bl-tailandes-como-conhecemos-hoje-e.html?m=1.

Watson, Joey; Jirik, Kim. 2018. “Boys’ Love: The Unstoppable Rise of Same-Sex Soapies in Thailand.” ABC News. 2018. https://www.abc.net.au/news/2018-06-16/boys-love-same-sex-dramas-in-thailand/9874766.