MENU



Análise Quinzenal
Diego Gurgel

Por Júlia Sales

 

No dia 16 de março, gás lacrimogêneo e cassetetes foram utilizados pela polícia peruana para tentar expulsar mais de 380 imigrantes que tentavam, pela cidade de Iñapari, entrar no Peru, que fechou as fronteiras para conter a pandemia de covid-19. Dentre as cenas do conflito, se vê uma mulher gritando “estou grávida” e um homem, deitado no chão em protesto, pois seu filho havia ficado do lado peruano da fronteira, enquanto ele foi obrigado a voltar ao lado brasileiro (ASSOCIATED PRESS, 2021; SANCHES, 2021). 

 

Os imigrantes, sobretudo haitianos, ocupavam desde o dia 14 de março a Ponte da Integração Brasil-Peru, também conhecida como Ponte Internacional sobre o Rio Acre, que conecta as cidades de Assis Brasil e Iñapari. Grande parte deles estava nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste do país e foi em direção ao Acre para tentar sair do Brasil diante do agravamento da pandemia e da perda de empregos (PÉCHY, 2021). 

 

A onda migratória do Haiti para o Brasil iniciou em 2010, após o terremoto que matou mais de 222 mil pessoas na ilha (DORMINO, 2020). Estima-se que 59.700 imigrantes haitianos entraram e permaneceram no Brasil entre 2010 e 2015, muitos dos quais eram recebidos no Acre em acampamentos e, posteriormente, destinados a outros estados, onde ingressavam no mercado de trabalho de forma precarizada (MAMED, 2016; OLIVEIRA, 2017).

 

Brasil: desemprego e agravamento da covid-19

 

As consequências do terremoto no Haiti foram potencializadas pelo contexto de propagação de políticas neoliberais, pobreza e desigualdade (DE LIMA; MAMED, 2015). Diante da crise humanitária no país, muitos haitianos buscaram em outros Estados oportunidades de empregos, segurança e estabilidade.

 

No Brasil, as promessas de emprego em razão da Copa do Mundo, das Olimpíadas e do agronegócio eram atrativas. De 2011 a 2013, a quantidade de imigrantes empregados no mercado formal cresceu em 50,9%, dos quais a maior parte era haitiana. Entretanto, houve também o aumento da mão de obra de baixo custo, informal, com vínculos precários e temporários, além do aumento das denúncias de trabalho escravo e superexploração desses imigrantes (DE LIMA; MAMED, 2015). 

 

Diante da pandemia de covid-19, muitos imigrantes haitianos perderam seus empregos. Os abalos nos setores de construção civil e de serviços, que tendiam a contratar os imigrantes, e as demissões sem seguro ou rescisão dos imigrantes empregados sem carteira assinada somam-se às dificuldades de renovação e regularização da Carteira de Registro Nacional Migratório. Esse fator levou muitos haitianos à  situação de irregularidade e impediu que eles solicitassem o Bolsa Família ou o auxílio emergencial como alternativas de renda suplementar (SANCHES, 2021). 

 

Outra problemática apontada pelos haitianos é o preconceito racial dos brasileiros, que dificulta ainda mais a inserção dessas pessoas no mercado de trabalho. Nas palavras de Chamara, haitiano que está há quase 8 anos no Brasil, “economicamente os haitianos não vão se encaixar no sistema do Brasil, com esse salário, com todo o preconceito que tem, o Brasil não está pronto para receber os estrangeiros, não vou falar nem os haitianos, mas os estrangeiros. O Brasil não está pronto nem para os brasileiros" (SANCHES, 2021). 

 

Ao considerar todas essas dificuldades, as quais o Brasil ainda está longe de resolver, os imigrantes haitianos buscam seguir parte da rota que percorreram para chegar ao Brasil, mas em direção contrária.

 

Os perigos das rotas de migração das Américas

 

A rota percorrida para chegar ao Brasil inicia-se saindo de barco ou avião do Haiti, em direção ao Panamá e o Equador, para depois seguirem de carro ou ônibus até o Peru e entrar no Brasil pela cidade de Assis Brasil, no Acre, ou Tabatinga, no Amazonas (MAMED, 2016). A maioria desses imigrantes chegava pelo Acre de forma indocumentada e por meio de redes de aliciadores e coiotes, seguindo um trecho perigoso marcado por práticas de extorsão contra os imigrantes, casos de cárcere, espancamento, estupros e mortes (MAMED, 2016).

 

Dessa vez, o Peru é caminho dos imigrantes para outros destinos, principalmente Equador, México e Estados Unidos (PÉCHY, 2021). De acordo com a Alfândega e Proteção de Fronteira dos Estados Unidos, as detenções de haitianos que atravessaram sem visto a fronteira dos Estados Unidos e México no mês de janeiro de 2021 foram quase o triplo da quantidade no mesmo mês em 2020 (SANCHES, 2021). As fake news de que a entrada de imigrantes nos Estados Unidos havia sido facilitada pelo governo de Joe Biden, principalmente para mulheres grávidas e bebês, contribuíram para a mobilização dos imigrantes haitianos no Brasil em direção aos Estados Unidos (ibidem).  

 

Nos conflitos do dia 16 de março, o grupo de imigrantes foi dividido em dois: o primeiro, formado sobretudo por homens, foi levado de volta ao lado brasileiro, enquanto outra parte, composta em sua maioria por mulheres e crianças, ficou em Iñapari e, aos poucos, foi direcionada de volta ao Brasil. Segundo César González, jornalista residente na região, muitos homens protestavam para o reencontro com a família, pois temiam que as esposas fossem roubadas no Peru e retornassem ao Brasil sem dinheiro (TENSIÓN, 2021).

 

Além dos problemas acima citados, os perigos se estendem ao longo da rota pretendida pelos imigrantes. Em outubro de 2020, a haitiana Manite Carol, sem experienciar uma vida melhor nos dois anos em que morou no Brasil, ingressou no Rio Grande, na fronteira mexicana, para tentar chegar aos Estados Unidos, onde morreu por afogamento e hipotermia (SANCHES, 2021). De acordo com dados da Missing Migrants, neste ano, até o dia 01 de abril de 2021, já ocorreram 175 mortes de imigrantes nas Américas, das quais 77 foram na fronteira entre o México e os Estados Unidos (MISSING MIGRANTS, 2021).

 

Cabe notar que essas são as mortes que foram notificadas, mas a quantidade de vidas perdidas nas rotas de migração nas Américas pode ser ainda maior. Como visto na base de dados da Missing Migrants (2021), em muitos casos não se sabe exatamente quantas pessoas morreram em um local, nem a origem de vários imigrantes. 

 

Apesar disso, a falta de alternativas no Brasil e a possibilidade de melhores condições de vida fora do país impelem centenas de imigrantes a atravessar a fronteira. Com as dificuldades de atravessar a Ponte da Integração, os imigrantes estão buscando rotas alternativas para tentar sair do país; de acordo com a Secretária de Assistência Social de Assis Brasil alguns já conseguiram ir para a Colômbia e o México por novas rotas (RODRIGUES, 2021b).

 

A liberação da ponte e a displicência do governo federal

 

No dia 26 de fevereiro o governo federal, por meio da Advocacia Geral da União (AGU) e a partir de notas técnicas produzidas por 8 ministérios, ajuizou uma ação na Justiça Federal do Acre solicitando que a Justiça busque identificar os líderes da ocupação e autorize a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal e a Polícia Militar do Acre a liberarem a ponte (VALENTE, 2021). A justificativa da AGU era que a ocupação constituía um risco à segurança nacional, inviabilizava o trânsito de veículos, de mercadorias e de pessoas, descumpria acordos internacionais de trânsito aduaneiro e tinha impacto na saúde pública (BRASIL, 2021a). 

 

Com a ocupação da ponte, cerca de 130 caminhões ficaram retidos em Assis Brasil e em Iñapari. Os caminhões de carga levavam principalmente alimentos e gasolina e os que saíam do Acre tinham permissão para entrar em território peruano. No dia 24 do mesmo mês os caminhoneiros protestaram na região diante dos prejuízos, que ultrapassaram o valor de R$ 600 mil (RODRIGUES, 2021a). 

 

A ação para desocupação da ponte proposta pela AGU estava longe de ser a solução para o caso. Percebe-se que a prioridade era desocupar a ponte para atender a fins econômicos, ainda que isso significasse o uso de força policial contra os imigrantes. Independentemente da urgência do governo federal para liberar a ponte, as medidas humanitárias deveriam ser priorizadas nessa situação.  

 

A Defensoria Pública da União (DPU) e o Ministério Público Federal (MPF), que foram notificados pela Justiça para emitir um parecer sobre a solicitação da AGU, foram contrários à decisão nos moldes que foram propostos. O MPF determinou que os imigrantes na Ponte da Integração tinham o direito de livre manifestação e que não ofereciam risco à segurança nacional, além de afirmar que os acordos internacionais pontuados pelo Ministério das Relações Exteriores não se aplicavam ao caso por haver outras possibilidade para escoamento de produção além da ponte (BRASIL, 2021b). Ademais, criticou a falta de soluções diplomáticas e de destinação específica para tratamento humanitário aos imigrantes na fronteira. A DPU seguiu a mesma direção e enviou o coordenador do grupo de trabalho da sobre migrações, refúgio e apatridia para a região (SCHLINDWEIN, 2021). 

 

A Justiça Federal, assim, solicitou explicações sobre as medidas de desocupação da ponte ao governo federal, que retratou o plano de reassentamento em dois eixos, o primeiro na desocupação e o segundo na assistência humanitária, e afirmou que a União estava presente na região e que contou com auxílio da Organização Internacional para as Migrações (OIM) e do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) (BRASIL, 2021a). 

 

Diante disso, a Justiça deferiu o pedido da AGU, que exigia a retirada dos imigrantes e permitia o uso de força policial caso soluções negociadas não liberassem a ponte (BRASIL, 2021a). No mesmo dia, 08/03, a ponte foi liberada, sem intervenção policial. Os imigrantes que estavam no local retornaram aos abrigos.

 

No Peru, as previsões são de que as fronteiras não serão abertas até setembro, a depender das questões envolvendo a pandemia (BRASIL, 2021a). Até lá, as autoridades brasileiras devem fornecer abrigos e assistência aos imigrantes.

 

SOS ACRE

 

No estado do Acre, a crise migratória soma-se ao aumento dos casos de covid-19, surto de dengue e enchentes que atingiram mais de 121 mil pessoas. A campanha SOS Acre está recolhendo doações para prestar auxílio às pessoas afetadas e fornecer ajuda humanitária. Para orientações de como ajudar com doações, aperte aqui. No site do SOS Acre do Ministério Público do Estado do Acre é possível acompanhar as destinações dos recursos recebidos.  

 

Referências 

 

ASSOCIATED PRESS. Violencia policial contra haitianos en frontera Perú-Brasil. The San Diego Union-Tribune, Lima, 16 fev. 2021. Disponível em: https://www.sandiegouniontribune.com/en-espanol/noticias/story/2021-02-16/violencia-policial-contra-haitianos-en-frontera-peru-brasil. Acesso em: 23 mar. 2021.

BRASIL. Justiça Federal da 1ª Região. Reintegração / manutenção de posse (1707). 2ª Vara Federal Cível e Criminal da Seção Judiciária do Acre. Rio Branco, 8 mar. 2021a. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/justica-determina-desocupacao-ponte.pdf. Acesso em 25 mar. 2021.

BRASIL. Ministério Público Federal (MPF). Procuradoria da República no Acre. MPF opina pela permanência dos migrantes na ponte de Assis Brasil (AC) e fronteira com o Peru. MPF, Rio Branco, 27 fev. 2021. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/ac/sala-de-imprensa/noticias-ac/mpf-opina-pela-permanencia-dos-migrantes-na-ponte-de-assis-brasil-ac-e-fronteira-com-o-peru. Acesso em: 25 mar. 2021.

DE LIMA, Eurenice Oliveira; MAMED, Letícia Helena. Trabalho, precarização e migração: o processo de recrutamento de haitianos na Amazônia acreana pela agroindústria brasileira. Novos Cadernos NAEA, [S.l.], v. 18, n. 1, jun. 2015. ISSN 2179-7536. Disponível em: https://periodicos.ufpa.br/index.php/ncn/article/view/2079. Acesso em: 26 mar. 2021.

MAMED, Letícia Helena. Haitianos na Amazônia: a morfologia da imigração haitiana pelo Acre e o horizonte de inserção precarizada no Brasil. RURIS - Revista do Centro de Estudos Rurais - UNICAMP, v. 10, n. 1, 30 nov. 2016.

MISSING MIGRANTS. Missing Migrants Project, International Organization for Migration (IOM), Geneva, 01 abr. 2021. Disponível em: https://missingmigrants.iom.int/region/americas. Acesso em: 01 abr. 2021.

OLIVEIRA, Wagner. Haitianos no Brasil: hipóteses sobre a distribuição espacial dos imigrantes pelo território brasileiro. Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, 2021. Disponível em: http://dapp.fgv.br/haitianos-no-brasil-hipoteses-sobre-distribuicao-espacial-dos-imigrantes-pelo-territorio-brasileiro/. Acesso em: 25 mar. 2021.

PÉCHY, Amanda. Covid, haitianos, Exército: o que está acontecendo na fronteira com o Peru. Veja, São Paulo, 19 fev. 2021. Disponível em: https://veja.abril.com.br/mundo/covid-haitianos-exercito-o-que-esta-acontecendo-na-fronteira-com-o-peru/. Acesso em: 24 mar. 2021.

RODRIGUES, Iryá. Mais de 130 caminhões seguem retidos em ponte ocupada por imigrantes há 15 dias e prejuízo é calculado em mais de R$ 600 mil. G1, Rio Branco, 01 mar. 2021a. Disponível em: https://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2021/03/01/mais-de-130-caminhoes-seguem-retidos-em-ponte-ocupada-por-imigrantes-ha-15-dias-e-prejuizo-e-calculado-em-mais-de-r-600-mil.ghtml. Acesso em: 25 mar. 2021.

RODRIGUES, Iryá. Quatro dias após deixarem ponte que liga Acre ao Peru, mais de 180 imigrantes continuam em abrigos de Assis Brasil. G1, Rio Branco, 12 mar. 2021b. Disponível em: https://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2021/03/12/quatro-dias-apos-deixarem-ponte-que-liga-acre-ao-peru-mais-de-180-imigrantes-continuam-em-abrigos-de-assis-brasil.ghtml. Acesso em: 25 mar. 2021.

SANCHES, Mariana. Haitianos deixam Brasil em meio à crise econômica e fake news sobre fronteira aberta nos EUA. BBC News Brasil, Washington, 11 mar. 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-56342515. Acesso em: 26 mar. 2021.

SCHLINDWEIN, Manoel. Defensoria negocia liberação de ponte ocupada por migrantes no Acre. Veja, São Paulo, 05 mar. 2021. Disponível em: https://veja.abril.com.br/blog/radar/defensoria-negocia-liberacao-de-ponte-ocupada-por-migrantes-no-acre/. Acesso em: 23 mar. 2021.

TENSIÓN y violencia en la frontera de Perú y Brasil por una caravana migrante. EFE Agencia, Lima, 16 fev. 2021. Disponível em: https://www.efe.com/efe/america/sociedad/tension-y-violencia-en-la-frontera-de-peru-brasil-por-una-caravana-migrante/20000013-4466733. Acesso em: 26 mar. 2021.

VALENTE, Rubens. Governo mobiliza 8 ministérios para desfazer protesto de imigrantes no Acre. UOL, São Paulo, 27 fev. 2021. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/rubens-valente/2021/02/27/fronteira-acre-crise-ponte-integracao-governo-bolsonaro.htm. Acesso em: 23 mar. 2021.