por Luiza Ferreira
“O que eles conseguem ao atirar em nós? Nós somos o exército por acaso?” indaga Safura Bibi, residente da região da Caxemira administrada pelo governo paquistanês, após ver sua casa destruída em mais um conflito transfronteiriço que deixou quinze mortos e dezenas de feridos, entre civis e militares. Do outro lado da fronteira, na região administrada pela Índia, encontra-se Mushtaq Ahmad Wani, pai de Ather Wani, um jovem kashmiri de 16 anos assassinado pelo governo indiano em dezembro de 2020, após suposto envolvimento em troca de tiros com outras duas pessoas, que também perderam suas vidas (KUCHAY, 2021). Safura e Ahmad são apenas dois exemplos de como a longeva disputa entre Índia e Paquistão afeta os kashmiri, povo que historicamente ocupa a região e o grupo menos interessado na continuidade do conflito interestatal.
Os embates entre as duas potências nucleares da região de Jammu e da Caxemira (J&K) vêm de uma longa data e acumulam inimizades ferrenhas entre os dois países há pelo menos 70 anos, quando ambos passaram pelo processo de libertação do Império Britânico. Desde 1947, ano da descolonização, não há consenso quanto à legitimidade da anexação da região pelo governo indiano. Enquanto o último afirma que o território foi anexado somente após a assinatura do acordo com o marajá Hari Singh, o lado paquistanês desacredita da versão do país vizinho e declara que a Caxemira foi ilegalmente ocupada pela Índia (KASHMIR TERRITORIES..., 2016).
As discordâncias entre os dois países quanto à divisão de Jammu e da Caxemira os levou à guerra ainda naquele ano, até que, em 1949, ambas as partes concordaram com um cessar-fogo e criou-se a Linha de Controle (LoC). A LoC surgiu com o intuito de dividir a região em três: uma parte administrada por cada país e uma terceira área, reivindicada pela China. A Caxemira sob domínio indiano representa dois terços do total e possuía cerca de 10 milhões de habitantes em 2016. O território administrado pelo Paquistão, por sua vez, é mais modesto em extensão territorial e em população, com aproximadamente 4,5 milhões de pessoas. Entretanto, os limites da Linha de Controle não foram claramente definidos, o que abriu margem para a continuidade dos conflitos ao longo do século XX. Já na década de 1970, a disputa territorial foi reacendida e uma nova guerra teve início, acompanhada por outras nas décadas subsequentes (UNITED STATES INSTITUTE OF PEACE, 2017).
Em 2003, após um ano intenso de conflitos, em que foram registradas 5767 violações ao Cessar-Fogo, os governos de Nova Délhi e Islamabad reuniram-se e decidiram que, finalmente, era chegada a hora de uma observação rigorosa do acordo. Esse momento significou um avanço considerável nas relações bilaterais indo-paquistanesas, sendo possível constatar seu impacto ao observar a queda no número de violações registradas, que passou de 2,841 em 2003, para apenas 4 em 2004, mantendo-se baixo até 2009, quando os números voltaram a crescer (UNITED STATES INSTITUTE OF PEACE, 2017). É importante ressaltar que as violações ao cessar-fogo não são simplesmente trocas de tiros, mas um confronto armado direto entre combatentes de diferentes lados do conflito por, pelo menos, mais de 24h.
Entre 2012 e 2016, os governos da Índia e do Paquistão registraram uma média anual conjunta de 355 violações ao cessar fogo, ocasionando em 354 mortes totais, segundo uma pesquisa do Projeto PeaceWorks (UNITED STATES INSTITUTE OF PEACE, 2017). Em 2018, um novo acordo foi firmado, e os exércitos de ambas as partes concordaram em manter a paz na fronteira, em decorrência do envolvimento de populações civis no conflito (SINGH, 2021). Segundo o relatório de 2019 do Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos sobre a situação na Caxemira, pelo menos 37 civis foram mortos em 2018, apenas na região sob administração indiana. Entretanto, organizações locais indicam que o número de fatalidades pode chegar até 160 (UNITED NATIONS, 2019). O mesmo relatório apontou ainda que os efeitos sobre populações civis incluem detenções voluntárias, uso excessivo de força e utilização de balas de estilhaço (pellet-firing shotgun) para repressão de protestos.
Todavia, os governos da Índia e do Paquistão não são os únicos responsáveis pelas violações e pelo clima de insegurança que impera na região. O povo kashmiri também convive com grupos armados locais que atuam na região em ambos os lados da fronteira. O atentado recente mais grave ocorreu em fevereiro de 2019, quando quatro pessoas, pertencentes a um grupo paquistanês, abriram fogo contra a população na cidade de Pulwama, na região da Caxemira administrada pela Índia, causando mais de 30 mortes (INDIA…, 2021). O governo indiano acusa o país vizinho de financiar esses grupos terroristas a fim de desestabilizar a região e incitar movimentos separatistas. Como retaliação ao ataque de fevereiro, o governo indiano lançou um ataque aéreo sobre o Paquistão, situação que comprometeu ainda mais as relações entre os dois países.
Ainda em 2019, no dia 02 de agosto, o governador de Jammu e da Caxemira assinou uma ordem executiva que determinava o fechamento de escolas e a evacuação de turistas da região alegando altos riscos de ataques terroristas. Dois dias depois, mais tropas das forças armadas foram enviadas à região e, com o aval do Primeiro Ministro indiano, Narendra Modi, do partido Bharatiya Janata (BJP), foi decretado lockdown em toda a Caxemira, as conexões de internet e telefone também foram cortadas. No dia 05, o governo indiano anunciou que revogaria, unilateralmente, o Artigo 370 da constituição, que garante uma condição de autonomia à região de J&K. O dispositivo permitia que a região implementasse políticas de forma independente, exceto em casos de segurança nacional e política externa, além de proibir que estrangeiros adquiram terras na região, prerrogativa fundamental para a manutenção da cultura kashmiri (KUGELMAN, 2019).
As medidas do governo federal rapidamente levaram a protestos por parte do povo kashmiri, que, embora afirme que o Artigo 370 possui um significado mais simbólico do que prático, ainda é uma importante garantia de direitos para a população. A maioria da população da Caxemira é muçulmana, tornando esta a única região da Índia de minoria hindu. As manifestações foram duramente reprimidas pelo governo indiano, que, por sua vez, novamente acusou o Paquistão de incitar movimentos separatistas na Caxemira com o objetivo de expandir seu pleito por uma parcela maior no território. Islamabad negou as acusações, criticando a Índia pela repressão aos protestos e por sua crescente postura nacionalista hindu. O Primeiro Ministro paquistanês, Imran Khan afirmou, ainda no mês de agosto, que não mais negociaria com Narendra Modi (PAKISTAN…, 2019).
Os acontecimentos de 2019 comprometeram consideravelmente as relações bilaterais entre Índia e Paquistão, o que levou a mais violações do cessar-fogo. Segundo o Global Conflict Tracker, 2019 foi o pior ano em termos de combate aéreo (GLOBAL, 2021). As tensões não foram amenizadas no ano seguinte, período em que foram registradas 5133 violações ao cessar-fogo apenas do lado paquistanês e 3097 do indiano, os piores registros desde a assinatura do acordo em 2003 (KUCHAY, 2021). Cabe ressaltar que existe uma ligação direta entre a situação das relações indo-paquistanesas, a estabilidade na LoC e a quantidade de violações ao cessar-fogo. Esse último fator, por sua vez, é definitivo para qualidade de vida do povo kashmiri. Em momentos em que os governantes de ambas as nações estão dispostos a dialogar e comprometem-se em construir políticas dentro de seus respectivos territórios para aumentar a estabilidade nas regiões de fronteira, como ocorreu entre 2003-2008, o número de violações ao cessar-fogo cai consideravelmente, diminuindo também as fatalidades civis. Entre as medidas possíveis para aumentar a estabilidade, pode-se citar um controle maior do uso da força física por parte das forças armadas e a adoção de políticas migratórias transfronteiriças mais flexíveis, que dialoguem mais com a população local.
Considerando este cenário, o acordo anunciado em 25 de fevereiro deste ano foi bem recebido pelos kashmiri, especialmente aqueles que habitam em vilas próximas à Linha de Controle e ao vale Neelum, zona em que ocorre boa parte das fatalidades civis (KASHMIR..., 2021). Segundo a declaração emitida em conjunto pelas autoridades sino-paquistanesas, os governantes de ambos os países reuniram-se para uma conversa franca e cordial a fim de discutir as principais preocupações de cada lado, acordando, por fim, em respeitar rigorosamente o cessar-fogo na Linha de Controle a partir da meia noite do dia 25. Também foi informado que uma linha de comunicação direta estará constantemente aberta para resolver eventuais discordâncias e maus-entendidos. A declaração pode ser lida na íntegra aqui.
A estabilidade do acordo a longo prazo dependerá dos esforços de ambas as partes. Do lado paquistanês, a atuação de grupos armados pode levar a ranhuras nas relações com a Índia, que adota uma rígida postura antiterrorista. Do outro lado, o governo indiano terá de conciliar as demandas da população kashmiri por mais autonomia e pacificar a região, que ainda encontra-se em um cenário de intensa instabilidade desde a revogação do artigo 370, em 2019. Mesmo que a existência do acordo seja um indicativo positivo, os ganhos ainda são muito frágeis, conforme declarou um oficial de segurança nacional paquistanês ao jornal Al Jazeera (KUCHAY, 2021). Além disso, a durabilidade do cessar-fogo nesse momento também está atrelada a fatores político-militares, como o conflito entre Índia e China, e econômicos, tais quais a diminuição do crescimento do PIB indiano e a recessão da economia paquistanesa. Entretanto, uma análise mais detalhada desses elementos foge ao escopo deste texto.
Alguns dias antes da publicação do novo acordo, já houve mudança na postura de autoridades políticas e militares do Paquistão quanto ao conflito na Caxemira. O chefe das forças armadas paquistanesas General Qamar Javed Bajwa declarou que “a Índia e o Paquistão deveriam resolver a questão de J&K de maneira pacífica, conforme as aspirações do povo da região”, evidenciando que o bem-estar da população kashmiri é um dos motivos que levou à assinatura do acordo, mesmo que não seja o único (EXPLAINED:..., 2021). Enquanto aguardam o desenvolvimento do acordo, os kashmiri já começaram a sentir seus efeitos: comerciantes do vale Neelum celebraram que seus estabelecimentos poderão voltar a funcionar e que, em um futuro próximo, turistas circularão pelo vale novamente.
Referências
EXPLAINED: India Pakistan Joint Statement On LoC Ceasefire And Why It Is Important. Swarajya, 26 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://swarajyamag.com/news-brief/explained-india-pakistan-joint-statement-on-ceasefire-and-why-it-is-important. Acesso em: 14 de março de 2021
GLOBAL CONFLICT TRACKER. Conflict Between India and Pakistan, 19 de março de 2021. Disponível em: https://www.cfr.org/global-conflict-tracker/conflict/conflict-between-india-and-pakistan. Acesso em: 14 de março de 2021
INDIA, Pakistan agree to stop cross-border firing in Kashmir. Al Jazeera, 25 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2021/2/25/india-pakistan-agree-to-stop-cross-border-firing-in-kashmir. Acesso em: 14 de março de 2021
KUGELMAN, Michael. India’s Sudden Kashmir Move Could Backfire Badly. Foreign Policy, 05 de agosto de 2019. Disponível em: https://foreignpolicy.com/2019/08/05/indias-sudden-kashmir-move-could-backfire-badly/. Acesso em: 14 de março de 2021
KASHMIR TERRITORIES - full profile. BBC, 01 de março de 2016. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-asia-34810086. Acesso em: 14 de março de 2021
KASHMIR villagers hopeful but wary after India and Pakistan agree to ceasefire. CNBC, 27 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://www.cnbc.com/2021/02/27/kashmir-villagers-hopeful-but-wary-after-india-pakistan-ceasefire.html. Acesso em: 14 de março de 2021
KUCHAY, Bilal. What prompted India-Pakistan ceasefire pact along Kashmir border?. Al Jazeera, 9 de Março de 2021. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2021/3/9/will-the-india-pakistan-ceasefire-pact-along-kashmir-border-hold. Acesso em: 14 de março de 2021
PAKISTAN Leader Vents Frustration at India: ‘No Point in Talking to Them’. NY Times, 21 de agosto de 2019. Disponível em: https://nyti.ms/311rg77. Acesso em: 14 de março de 2021.
SINGH, Ameya P. India and Pakistan: More of the Same Ahead?. The Diplomat, 02 de março de 2021. Disponível em: https://thediplomat.com/2021/03/india-and-pakistan-more-of-the-same-ahead/. Acesso em: 14 de março de 2021
UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS OFFICE OF THE HIGH COMMISSIONER. Update of the Situation of Human Rights in Indian-Administered Kashmir and Pakistan-Administered Kashmir from May 2018 to April 2019. 2019.
UNITED STATES INSTITUTE OF PEACE. Ceasefire Violations in Jammu And Kashmir: A Line on Fire. 2017.