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Análise Quinzenal
PET-REL

Por João Pires Mattar

 

No dia 26 de fevereiro, o recém eleito presidente norte-americano, Joe Biden, autorizou e procedeu com a primeira ação militar de sua administração no Oriente Médio. Os ataques aéreos atingiram posições dos grupos Kata’ib Hezbollah e Kata’ib Sayyid al Shuhuda no leste da Síria, forças paramilitares apoiadas pelo Irã, vitimando, ao menos, 17 pessoas (US..., 2021). A Casa Branca alega que o ato foi uma resposta proporcional a ataques que alvejaram bases militares norte-americanas no Iraque cerca de duas semanas antes. Supostamente, serviria para traçar um “limite de aceitabilidade” para com as atividades das milícias iranianas em outros países (QUINN, 2021). O presidente Joe Biden, ao responder que mensagem a ação pretendia passar ao Irã, disse: "Vocês não podem agir com impunidade. Tenham cuidado” [1] (EL DAHAN; ISMAIL, 2021, tradução nossa). 

 

A iniciativa parece ir de encontro à promessa eleitoral do democrata de acabar com as guerras infinitas (“ending the forever wars”) e promover a diplomacia como ferramenta primária da política externa norte-americana (BIDEN, 2020). Sobretudo, levanta ainda mais questionamentos acerca de outro compromisso da campanha de Biden, isto é, a retomada do acordo nuclear com o Irã, extremamente fragilizado após a decisão de Donald Trump de retirar o país tratado, em 2018. Neste texto, discorro sobre a possibilidade de reconstrução do acordo nuclear, fazendo considerações acerca do primeiro ataque militar do governo de Joe Biden e Kamala Harris.

 

Antes de proceder aos acontecimentos recentes, é válido fazer uma breve exposição sobre o acordo nuclear iraniano. Após difíceis negociações, o Irã firmou, em 2015, um acordo de longo prazo com o grupo conhecido como P5 + 1 — Estados Unidos, Reino Unido, França, China, Rússia e Alemanha. Formalmente conhecido como Joint Comprehensive Plan of Action (JCPOA), o acordo cria restrições no programa nuclear iraniano, como limites de estoque e de nível de enriquecimento de urânio, e o torna muito mais transparente, com direito a inspeções regulares da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). Em troca, as sanções impostas pelas Nações Unidas, Estados Unidos e União Europeia seriam suspensas, permitindo ao Irã acesso aos mercados globais e ao sistema financeiro internacional (IRAN..., 2019).

 

Na época, o JCPOA foi celebrado como uma vitória por ambos governos. A administração Obama, cujo vice-presidente era o Biden, comemorou que o acordo retirava do Irã elementos chaves necessários para criação de uma bomba nuclear e aumentava o break-out-time — tempo necessário para enriquecer urânio a 90% e constituir uma ogiva — de três meses para no mínimo um ano. O Irã, por sua vez, louvava o fim de sanções que custaram ao país 160 bilhões de dólares somente entre 2012 e 2016, assim como permitiu acesso a mais de 100 bilhões de ativos iranianos congelados em bancos estrangeiros (IRAN.., 2019). 

 

Contudo, Donald Trump retirou unilateralmente os Estados Unidos do JCPOA em maio de 2018 e, em novembro do mesmo ano, restituiu sanções econômicas ao Irã e a qualquer Estado ou empresa que comercializasse com ele. Estas foram impostas sucessivamente ao longo da gestão republicana no que ficou conhecida como “estratégia de máxima pressão”. Paralelamente, o ex-presidente intensificou as ações militares, e em janeiro de 2020, os Estados Unidos assassinaram o general iraniano Qasem Soleimani, figura de altíssimo nível no país. Essa política, que supostamente pretendia dissuadir o Irã de prosseguir com seu programa nuclear, teve o efeito reverso: os iranianos responderam ao rompimento norte-americano com uma série de violações aos termos estabelecidos no JCPOA. Notadamente, desde 2019, o Irã aumentou os níveis de enriquecimento e estoque de urânio (INTERNATIONAL CRISIS GROUP, 2021).

 

Embora Biden tenha se comprometido a reinserir os Estados Unidos no JCPOA e as autoridades iranianas manifestem desejo inequívoco de retomar o acordo, as negociações ainda não avançaram com o novo presidente norte-americano. O Ministro das Relações Exteriores do Irã, Mohammad Javad Zarif, ratificou a posição do país em artigo publicado recentemente na Foreign Affairs: para retornar às conversas, o Irã exige que os Estados Unidos reverta as sanções unilaterais impostas por Trump (ZARIF, 2021). A administração Biden, por sua vez, descarta a possibilidade disso acontecer antes que o Irã retroceda suas atividades nucleares recentes. O impasse é um produto, acima de tudo, da política doméstica de ambos os países. Tanto o presidente norte-americano quanto sua contraparte, o presidente iraniano Hassan Rohani, sofrem pressão interna dos chamados “linha-dura”, que defendem que não deve haver concessões adiantadas ou nem mesmo acordo em nenhuma circunstância.

 

Em verdade, Barack Obama assinou o JCPOA a contragosto de muitos. Não foi capaz, por exemplo, de impedir que o Congresso norte-americano estendesse outras sanções ao Irã, não conectadas ao programa nuclear mas devido a “atividades terrosistas”. Nesse sentido, a reação de alguns analistas norte-americanos ao primeiro ataque aéreo de Joe Biden no Oriente Médio nos fornece exemplos de como o mainstream estadunidense interpreta as relações com o Irã e orienta os tomadores de decisão. Entre as opiniões emitidas, está a percepção de que é completamente possível empreender ações militares, como maneira de demonstrar força, ao mesmo tempo que abre espaço para as negociações no JCPOA. Defende-se, ainda, que a suspensão das sanções sem pré-condições, assim como não proceder com o bombardeio, iria “retribuir a violência”, em referência à atividade de grupos paramilitares iranianos (EXPERTS..., 2021). Vali Nasr, professor de estudos sobre Oriente Médio na Johns Hopkins, vai além e defende que os bombardeios “podem até ajudar na diplomacia”, na medida que “evita que o Irã faça coisas que compliquem voltar às mesas [de negociação] ao responder decisivamente desde cedo”. (NARS apud QUINN, 2021, tradução nossa) [2].

 

A atitude de Biden, até o momento, se alinha à política convencional prevalecente em Washington. Muitos analistas norte-americanos parecem ignorar que a estratégia de máxima pressão de Trump foi aplicada durante três anos e não trouxe resultados, e nada indica que sob condução de Biden haverá um desfecho diferente. Sobretudo, desconsideram os constrangimentos domésticos a que estão submetidas as lideranças iranianas ao exigir deles concessões antecipadas. Após o rompimento unilateral e o assassinato do general Soleimani, e com uma população sofrendo sob sanções draconianas, Teerã é pressionada a jogar duro com os norte-americanos (PARSI, 2021). 

 

Neste sentido, por mais que a troca de ataques pontuais na Síria e Iraque sejam muito menos importantes do que o JCPOA ao presidente Hassan, como argumenta o professor Vali Nasr, eles têm um efeito perturbador na política doméstica do Irã. O que parecem ser eventos marginais, se tornam elementos poderosos na retórica dos linha-dura iranianos.

 

Nota-se que o parlamento iraniano, conservador em comparação à presidência moderada de Rohani, aprovou, em dezembro de 2020, uma lei obrigando o governo do país a tomar contrapartidas se as demais partes do JCPOA não garantissem o fim das sanções. Uma delas foi o enriquecimento de urânio a 20%, empreendida em janeiro. A outra, que praticamente termina de liquidar o JCPOA, é a proibição das inspeções da AIEA nas instalações iranianas (INTERNATIONAL CRISIS GROUP, 2021). Rohani, sob intenso fogo cruzado, conseguiu costurar um entendimento com a AIEA que garantiu uma sobrevida ao acordo: o Irã vai manter a coleta de dados exigida pela agência por mais três meses, sem entregá-los aos inspetores, enquanto aguarda as possíveis negociações do acordo nuclear (IRAN…, 2021). Ainda assim, Rohani rejeitou, no dia 28 de fevereiro, um convite da União Europeia para iniciar conversas sem pré-condições com os norte-americanos, exigindo que haja um compromisso com o encerramento de algumas sanções ao fim do encontro (NORMAN, 2021). 

 

O governo norte-americano deve ponderar que o Irã terá eleições presidenciais em junho deste ano. Dar o primeiro passo e ceder às exigências do outro lado impõe um custo e risco político muito maior ao presidente iraniano do que ao recém eleito Joe Biden, sobretudo porque foram os Estados Unidos que romperam com o acordo, e não o contrário. Um gesto de boa-fé do lado norte-americano poderia restaurar a confiança em Teerã e criar as bases para a reconstrução do acordo — como, por exemplo, liberar alguns ativos iranianos em bancos estrangeiros ou permitir que o Fundo Monetário Internacional aceite o pedido iraniano de empréstimo emergencial para combate da pandemia, que aguarda resposta há mais de dez meses. (VAEZ, 2021; PARSI; 2021).

 

Dado os acontecimentos dos últimos cinco anos, o segmento linha-dura deve prevalecer nas eleições iranianas. Isto dá uma margem estreita de tempo para renegociar o já morribundo JCPOA com aqueles que foram os responsáveis por assiná-lo em 2015 — presumivelmente, será muito pior negociá-lo com novos interlocutores. Se Joe Biden pretende fazer valer sua promessa de campanha, é preciso, diante da insistência de políticos e analistas norte-americanos, reafirmar o óbvio: bombardear posições iranianas no Oriente Médio não colabora para o restabelecimento do acordo nuclear e a subsequente estabilização da região.

 

[1] Original: “You can’t act with impunity. Be careful”.

[2] Original: “In a perverse sense, the bombings may have even helped diplomacy. The Iranians will think if the U.S. gets worried about its mischievous behavior it may get to the table faster, and the Americans want to prevent Iran from doing things that could complicate going back to the table by responding decisively early on.”

 

Referências

 

BIDEN, J. R. Why America Must Lead Again. Foreign Affairs, 2020. Disponível em: http://www.deutsch-chinesisches-forum.de/images/thinktank/20201114/Why%20America%20Must%20Lead%20Again.pdf. Acesso em: 23 de nov. de 2020

EL DAHAN, Maha; ISMAIL, Amina. Syria condemns ‘cowardly’ U.S. air strikes on Iran-backed militias. Reuters, Beirute, 26 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://www.reuters.com/article/us-usa-syria-strike/syria-condemns-cowardly-u-s-air-strikes-on-iran-backed-militias-idUSKBN2AQ1L8. Acesso em: 04 de março de 2021.

EXPERTS React: US airstrike in Syria targets Iran-backed militias. Atlantic Council, 26 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://www.atlanticcouncil.org/blogs/menasource/experts-react-us-airstrike-in-syria-targets-iran-backed-militias/. Acesso em: 05 de março de 2021.

FIRST US military action under Biden draws criticism. Al Jazeera, Doha, 26 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2021/2/26/unconstitutional-us-airstrikes-on-syria-draw-strong-criticism. Acesso em: 04 de março de 2021.

INTERNATIONAL CRISIS GROUP. Reviving the JCPOA after Maximum Pressure, 29 de janeiro de 2021. Disponível em: https://www.crisisgroup.org/middle-east-north-africa/north-africa/libya/reviving-jcpoa-after-maximum-pressure. Acesso em: 05 de março de 2021.

IRAN nuclear deal: key details. BBC, Londres, 11 de junho de 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-middle-east-33521655. Acesso em: 04 de março de 2021.

IRAN and the United States try to get back to the table. Al Jazeera, 26 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://www.aljazeera.com/podcasts/2021/2/26/iran-and-the-united-states-try-to-get-back-to-the-table. Acesso em: 05 de março de 2021.

NORMAN, Laurence. Iran rejects offer of direct US nuclear talks, ratcheting up tensions with the West. The Wall Street Journal, 28 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://www.wsj.com/articles/iran-rejects-offer-of-direct-us-nuclear-talks-senior-diplomats-say-11614529319#refreshed?mod=e2tw. Acesso em: 05 de março de 2021.

PARSI, Trita. Iran rejects meeting as Biden’s slow diplomacy hits predictable snag. Responsible Statecraft, 28 de fevereiro de 2021. Disponível em: Iran rejects meeting as Biden’s slow diplomacy hits predictable snag – Responsible Statecraft. Acesso em: 10 de março de 2021.

QUINN, Colm. In message to Iran, Biden bombs Syria. Foreign Policy, 26 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://foreignpolicy.com/2021/02/26/in-message-to-iran-biden-bombs-syria/. Acesso em: 04 de março de 2021.   

US attacks ‘Iranian-backed military infrastructure’ in Syria. Al Jazeera, Doha, 26 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2021/2/26/us-strikes-iranian-backed-military-infrastructure-in-syria. Acesso em: 03 de março de 2021. 

VAEZ, Ali. Biden should cap, freeze and roll back Iran’s nuclear program. International Crisis Group, 18 de fevereiro de 2021. Disponível em:https://www.crisisgroup.org/middle-east-north-africa/gulf-and-arabian-peninsula/iran/biden-should-cap-freeze-and-roll-back-irans-nuclear-program. Acesso em: 05 de março de 2021. 

ZARIF, Mohammad Javad. Iran wants the nuclear deal it made. Foreign Affairs, 22 de janeiro de 2021. Disponível em: https://www.foreignaffairs.com/articles/iran/2021-01-22/iran-wants-nuclear-deal-it-made. Acesso em: 05 de março de 2021.