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Cesta de Cultura
PET-REL

Por Nathalia Mamede

 

 

“There were people who knew about stars, who could tell you the name of every star in the sky. ... But she did not understand how it could be important to learn the name of every single star in the sky; surely it was better to know the name of every person in your street?”

 

Uma mulher e seu negócio de bolos em uma Kigali que vive as consequências dos horrores da guerra, do HIV/AIDS, da complexa interferência das Nações Unidas e dos Estados Unidos no país e a história cotidiana de pessoas comuns de origens distintas. Assando bolos em Kigali é uma obra contemporânea, escrita em 2009 por Gaile Parkin — nascida e criada na Zâmbia. A autora morou também na Inglaterra, na África do Sul e em Ruanda.

 

Segundo as biografias da autora, as histórias contadas na obra em questão mesclam elementos ficcionais e reais, o que concede uma humanização dos personagens de forma muito significativa. Apesar disso, não há nenhum registro oficial de que as histórias (ou as personagens) sejam verdadeiras. Dessa forma, essas histórias podem ter servido de inspiração para a autora na época em que trabalhou em Kigali. 

 

Angel Tungaraza, nascida na Tanzânia, é a protagonista da história. Mãe de seus cinco netos desde a morte precoce de seus dois filhos e casada com Pius, um professor que trabalha na Universidade local. Ela é proprietária de um dos únicos negócios de bolos da região e tem um relacionamento bem próximo com a vizinhança. A maior parte das histórias, portanto, são narradas em sua casa no condomínio onde moram funcionários de organizações internacionais e que também funciona como sua loja de bolos. Um momento importante para as histórias contadas era o momento da assinatura do “Formulário de pedido de bolo”: ao servir seu chá, sempre questionava como andava a vida de seus clientes. 

 

O romance é uma mescla de diversas histórias individuais. Até mesmo a história de Angel é abordada, relatando as tragédias de sua vida: seu filho morreu em um assalto junto à esposa e sua filha cometeu suicídio após descobrir ser soropositiva e ter sido abandonada com seus filhos pelo marido. Ambas tragédias vão sendo internalizadas pela protagonista ao longo do livro, especialmente a do suicídio de sua filha — Angel se vê capaz de ajudar a todos com seu chá de cardomomo, mas se sente incapaz perante à morte de sua filha.

 

Como um livro de vizinhança e extremamente multicultural, as histórias envolvem choques de opiniões extremamente interessantes. A começar pelo questionamento sobre o papel de Sophie e Catherine, moradoras do condomínio que trabalham com direitos humanos, e sobre o título de feministas pelas quais se apresentam. Até mesmo as vestimentas ocidentais são questionadas e há paradoxos entre o nosso conhecimento sobre liberdade com o que culturalmente era comum em Kigali. Apesar disso, ao longo da narrativa, Angel se aproxima delas.

 

Ela é então convidada por Sophie para dar uma aula para um projeto que auxilia meninas a serem financeiramente independentes e é vista por elas como um exemplo a ser seguido.

Outro ponto alto do livro é a questão da mutilação genital feminina. Uma família muçulmana encomenda um bolo para tal ocasião e pede para que Angel seja testemunha. Ela sofre então com um dilema moral muito grande, sobre denunciar a família ou respeitar suas tradições. Em Ruanda, lugar onde se narra o livro, e na Tanzânia, local de origem da protagonista, a prática não é comum e é por vezes criminalizada. Por fim, a história se modifica e Angel se vê fortalecida, mesmo dentro de uma mentira contada pela mãe da menina.

 

Ademais, temas como a homossexualidade, os costumes ocidentais, a prostituição, a maternidade, o suicídio, o colonialismo, o genocídio, abusos e até mesmo a falha na comunicação de línguas distintas são retratados a partir das histórias locais que chegam até a casa de Angel e não tornam a leitura tão pesada como possa parecer. Pelo contrário, a autora conseguiu colocar suas críticas e denúncias por meio de histórias cotidianas.

 

O livro aborda diversos temas polêmicos vistos em uma perspectiva distinta da qual o Ocidente está habituado. Isso se dá porque o ponto de partida de suas opiniões e dilemas não é a lógica na qual estamos inseridos: isso é o que faz o livro ser tão rico e cultural. É uma viagem com personagens da Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, Zambia, Japão, Egito, Índia, África do Sul e Uganda, a partir de uma conversa acompanhada de um chá e uma mulher da Tanzânia, habitante de Ruanda, e que acredita que seus bolos só existem porque, apesar das mazelas e dores, ainda há o que celebrar.