Por Ana Luísa Vitali
Em 14 de janeiro de 2021, Uganda realizou eleições para presidência e parlamento do país. O resultado não foi diferente do esperado: o presidente Yoweri Museveni – que está no poder desde 1986 – iniciou seu sexto mandato consecutivo após receber mais de 58% dos votos. Contudo, as eleições foram marcadas por violência, incluindo prisões e assassinatos, bloqueio ao acesso à internet e alegações de fraude, sendo este último demonstrado pelos embates com o candidato opositor mais forte a Museveni, Bobi Wine (UGANDA'S…, 2021).
Esta análise busca brevemente assinalar os principais acontecimentos nas eleições ugandenses de 2021. Assim, a fim de atingir maior compreensão sobre o assunto, primeiramente serão apresentadas características importantes do sistema governamental do país e sua relação com a instabilidade política do continente, para então elucidar os episódios do período de eleição. Por fim, o leitor é convidado a refletir sobre o conteúdo deste texto e seus impactos para as demais democracias africanas.
Sistema político de Uganda
O sistema político ugandense possui algumas particularidades interessantes de serem mencionadas. É importante notar que 143 dos 529 cargos no Parlamento são reservados para mulheres, além de outras reservas para jovens, idosos, sindicatos e pessoas com deficiência. Contudo, apesar desses avanços, não vistos mesmo em países ocidentais considerados desenvolvidos, Uganda ainda carrega diversas marcas da falha democracia presente no continente africano, marcada por longos mandatos ininterruptos e abusos políticos. A Transparency International classificou o setor público de Uganda como um dos mais corruptos do mundo, e em 2016, a nação classificou-se em 151º entre 176 na lista de percepção de países transparentes (TRANSPARENCY INTERNATIONAL, 2020).
Desde 2015, 13 países africanos já enfraqueceram restrições legais acerca de limites temporais de mandato que estavam em vigor, incluindo Uganda, que removeu em 2005 o limite de dois mandatos consecutivos para que Museveni continuasse no poder. Ademais, em 2017, o limite de idade para presidência também foi removido no país – previamente, apenas candidatos entre 35 e 75 anos poderiam assumir o cargo. O atual presidente, hoje com 76 anos, não poderia seguir em sua posição, e, para se manter no poder, alterou a constituição, possibilitando mais 5 anos em sua posição (SIEGLE, COOK, 2020).
O mapa abaixo mostra como essa tendência se repete em diversos países do continente. Apesar de apenas 5 países não terem limites de mandato, o que chama atenção é a alta quantidade de nações em que governantes tentaram – com ou sem sucesso – alterar os termos constitucionais para permanecer no poder por mais tempo, mostradas em laranja e cinza. Isso leva a uma grande instabilidade na região, criando dinastias de famílias no poder há mais de 50 anos ou governantes como Museveni, que estão no cargo por mais de três décadas, além de três nações africanas ainda serem monarquias: Lesoto, Eswatini e Marrocos.
Figura 1: Limites constitucionais de mandato para líderes africanos
Fonte: African Center for Strategic Studies (2020)
Campanha eleitoral de 2021 e as violações de Direitos Humanos
Havia onze candidatos inscritos para disputar a eleição presidencial de 2021, contudo apenas dois possuíam chances de vitória, que serão o foco desta análise: Yoweri Museveni, do Movimento de Resistência Nacional, e Bobi Wine, da Plataforma de Unidade Nacional. Wine é um cantor de apenas 39 anos que se tornou político e decidiu concorrer para a presidência, tendo muitos apoiadores jovens. Isso porque 78% da população ugandense possui menos de 35 anos, ou seja, Museveni já estava no poder quando a maioria dos habitantes nasceram, criando uma inquietação por mudança, e consequentemente, apoio à candidatura de Wine (SIEGLE, COOK, 2021).
A campanha eleitoral em meio à pandemia trouxe diversos desafios, e em repetidas vezes, os comícios de Wine foram impedidos de acontecer. De acordo com o governo local, os encontros geravam aglomeração e seriam facilitadores da propagação do vírus da COVID-19, contudo, críticos dizem que, na verdade, as interrupções foram causadas pela alta popularidade da oposição. Esta última hipótese torna-se mais factível quando percebe-se que Wine foi preso duas vezes durante seus eventos por supostamente violar os protocolos de prevenção. Após essa movimentação da polícia ugandense, os apoiadores de Wine decidiram protestar, já que consideravam que as prisões contínuas de seus membros visavam diminuir a capacidade de fazer campanha. Os protestos se tornaram violentos e 100 pessoas morreram e mais de 500 ficaram feridas, além disso, vários auxiliares, guarda-costas e membros da comitiva foram encarcerados ou mortos (UGANDA…, 2021).
Ademais, o governo vigente deu um passo além nas violações durante a campanha: todo o acesso a internet foi bloqueado no país. Primeiramente, o Facebook desativou contas falsas que estavam ligadas às autoridades, e, como retaliação, ocorreu o bloqueio de redes sociais no país um dia antes da eleição. Logo após Museveni afirmar que o Facebook estaria apoiando a campanha da oposição com seus atos, foi feito um bloqueio completo da internet – altamente criticado por organismos internacionais, pois estaria visando silenciar os poucos observadores eleitorais, políticos da oposição, defensores dos direitos humanos, ativistas e jornalistas que monitoram as eleições, além dos cidadãos ugandenses em geral (KAFEERO, 2021).
A resposta de organismos internacionais e outros países às eleições foi de alto criticismo, além de chamar atenção para ameaças à democracia ugandense. A União Europeia afirmou que não enviou missão de observação eleitoral porque as recomendações anteriores foram ignoradas, e os Estados Unidos cancelaram sua observação dizendo que a votação careceu de transparência e responsabilidade. Após isso, ambos requisitaram uma investigação sobre abusos de poder por parte do governo e violência durante as eleições. O Departamento de Estado dos Estados Unidos também pediu às autoridades de Uganda que investigassem irregularidades, enquanto o Conselho de Ministros da UE afirmou que "os candidatos da oposição foram perseguidos pelas forças de segurança, a mídia foi suprimida pelo governo e os escritórios dos observadores foram invadidos" (MCSWEENEY, BUSARI, 2021, tradução nossa).
O futuro da democracia ugandense e africana
Atividades como o bloqueio à internet não são novidade nem em Uganda nem em outros países do continente africano. Em 2016, por exemplo, o Global Observatory publicou notícia com a seguinte manchete: "Amid Social Media Blackout, Museveni Fights to Retain Power in Uganda" [1] (CUMMINGS, 2016), se assemelhando precisamente ao que foi apresentado nesta análise sobre os acontecimentos de 2021. Desse modo, percebe-se como o atual governo repete tais manipulações para se manter no poder constantemente. Infelizmente, o ataque às mídias sociais ocorre em outros países, como Chade, Etiópia, República Democrática do Congo, Eritreia, Mauritânia, Sudão e Zimbábue, que estão entre os 19 países que bloquearam total ou parcialmente o acesso à internet por mais de sete dias em 2019 (ACCESS NOW, 2020).
Um outro ponto importante é mencionar o porquê de tantas pessoas feridas ou assassinadas durante os protestos: o uso indiscriminado de armas de fogo foi diretamente responsável pelas fatalidades, pois a estrutura atual do país é muito permissiva em relação ao uso da força pela polícia e exército. Além disso, o Ministro da Segurança do país, o general Elly Tumwine, afirmou que as forças armadas possuem o direito de atirar e matar em situações nas quais o indivíduo ou grupo mostrar um "certo nível de violência" (NAMWASE, 2021) – é exatamente essa ambiguidade e permissividade que ameaça a liberdade dos ugandenses e precisa ser resolvida, porém, com a manutenção do mesmo governante no poder por 40 anos, tais mudanças se tornam cada vez mais limitadas.
Ademais, é preciso também compreender como os fatos mencionados previamente sobre Uganda perpassam por outros países do continente africano. Por serem nações relativamente recentes – visto que o período de descolonização da maioria aconteceu apenas nos últimos 70 anos –, os resquícios da colonização e conflitos étnicos ainda impactam profundamente o continente, enfraquecendo as instituições democráticas. A falha tentativa de replicar um modelo político europeu na África gerou violência, corrupção e dificuldades de crescimento econômico para a região. Portanto, cabe pensar uma saída africana para a democracia, e não há dúvidas de que o primeiro passo é considerar os desejos da população, respeitando os processos eleitorais.
[1] Durante o bloqueio à internet, Museveni luta para manter poder em Uganda. Tradução nossa.
Referências
ACCESS NOW. #KeepItOn Report. 2019, pp. 1-26.
CUMMINGS, R. Amid Social Media Blackout, Museveni Fights to Retain Power in Uganda. The Global Observatory, 18 de fevereiro de 2016. Disponível em: https://theglobalobservatory.org/2016/02/uganda-election-museveni-besigye-mbabazi/. Acesso em: 14 de fevereiro de 2021.
KAFEERO, S. Uganda has cut off its entire internet hours to its election polls opening. Quartz Africa, 13 de janeiro de 2021. Disponível em: https://qz.com/africa/1957137/uganda-cuts-off-internet-ahead-of-election-polls-opening/. Acesso em: 16 de fevereiro de 2021.
MCSWEENEY, E; BUSARI, S. EU and US call for probe into Uganda election violence as Bobi Wine remains under house arrest. CNN, 21 de janeiro de 2021. Disponível em: https://edition.cnn.com/2021/01/21/africa/uganda-elections-international-pressure-intl/index.html. Acesso em: 15 de fevereiro de 2021.
NAMWASE, S. The roots of pre-election carnage by Ugandan Security Forces. The Global Observatory, 15 de janeiro de 2021. Disponível em: https://theglobalobservatory.org/2021/01/roots-pre-election-carnage-uganda-security-forces/. Acesso em: 17 de fevereiro de 2021.
SIEGLE, J; COOK, C. Circumvention of Term Limits Weakens Governance in Africa. Africa Center for Strategic Studies, 14 de setembro de 2020. Disponível em: https://africacenter.org/spotlight/circumvention-of-term-limits-weakens-governance-in-africa/. Acesso em: 15 de fevereiro de 2021.
SIEGLE, J; COOK, C. Taking stocks of Africa's 2021 elections. Africa Center for Strategic Studies, 12 de janeiro de 2021. Disponível em: https://africacenter.org/spotlight/2021-elections/#uganda. Acesso em: 15 de fevereiro de 2021.
TRANSPARENCY INTERNATIONAL. Country data: Uganda. 2020.
UGANDA: Elections Marred by Violence. Human Rights Watch, Nairobi, 21 de janeiro de 2021. Disponível em: https://www.hrw.org/news/2021/01/21/uganda-elections-marred-violence. Acesso em: 16 de fevereiro de 2021.
UGANDA'S violent election has exposed divisions of age and class. The Economist, Kampala, 16 de janeiro de 2021. Disponível em: https://www.economist.com/middle-east-and-africa/2021/01/16/ugandas-violent-election-has-exposed-divisions-of-age-and-class. Acesso em: 16 de fevereiro de 2021.