Por Jales Caur
Mianmar é um país que compõe o que geograficamente se entende como sudoeste asiático. Faz fronteira com Bangladesh, Tailândia, Laos e China, e ainda é bastante conhecido como “Birmânia” — seu nome colonial. O contato com o ocidente e a grande investida colonizadora inglesa foram responsáveis por uma grande parcela dos problemas contemporâneos do Mianmar. A Birmânia existiu para o ocidente após o primeiro conflito contra a Índia Britânica, (data) seguido de tratados que cada vez mais ceifavam a independência da região até que o grande espaço de terra entre a Índia e o Reino de Sião (hoje, Tailândia) se tornasse uma região homogênea mesmo em suas diferenças étnicas e culturais. Em 1886, Birmânia era uma das colônias do império inglês (Steinberg, 2010).
Esse processo de colonização trouxe diversos problemas para a região da antiga Birmânia. Ao se olhar para o país na contemporaneidade, vê-se as grandes dificuldades que minorias étnicas enfrentam dentro do país — em destaque os Rohingya, parcela islâmica perseguida dentro do Mianmar que passa por uma diáspora nos últimos anos em busca da liberdade de ser. Isso tudo foi resultado do grande processo de imigração para a antiga Birmânia provocado pelos ingleses, que não confiavam nos birmânicos (maioria budista). Outra condição favorecida pela permanência inglesa fora o fortalecimento de movimentos militares após a entrada do país na Segunda Guerra Mundial, na qual a Birmânia se encontrou usurpada tanto pela Grã-Bretanha, a colonizadora original, e o Japão, que buscava ali derrotar um dos aliados na região asiática e conquistar territórios chineses (Hickey, 2011).
O Japão havia prometido a independência aos birmaneses considerados “originais” — ou seja, aos budistas —, logo conquistando a sua lealdade (Newell, 1992). A Inglaterra buscou nas outras etnias originais apoio para permanecer no poder. Só que, ao fim da guerra, com a derrota do Japão, marcada pelo emblemático episódio das bombas nucleares e a retirada da Grã-Bretanha, extremamente fragilizada, sobrou uma maioria frustrada pela promessa de independência se concretizando de maneira heterotípica e uma minoria que havia permanecido contra a maioria. O período de democracia entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o primeiro golpe militar serviu, também, para um inchaço maciço do exército. E isso acabou culminando no suporte desse exército ao golpe promovido pelo General Ne Win, que alegava má gestão governamental do governo vigente (Steinberg, 2010). O golpe resultaria em um regime que governaria a Birmânia por cerca de 25 anos, executando o que o General chamou de “Burmese Way to Socialism” (Aung-Thwin, 1985).
E assim como os resultados dos golpes militares promovidos na América Latina durante o mesmo período, os resultados econômicos foram desastrosos a médio e longo prazo, pois 40% do arrecadamento estatal era gasto com as Forças Armadas em um contexto de não conflito. E esse valor destoava do restante dos vizinhos asiáticos pois correspondeu ao período do surgimento do rótulo de “Tigres Asiáticos”, que começavam a “rugir”, ou seja, a obter crescimento sem precedentes de suas instituições burocráticas, de sua economia e das suas indústrias (Coclanis, 2013). Nesse período, Ne Win também expulsou milhares de indianos étnicos cujo papel econômico na sociedade birmânica só ganhara reconhecimento após essa expulsão, sendo vital para a preparação do terreno político para a grande Mudança Democrática, momento pontuado pelos protestos populares pela democracia no começo dos anos 1980 (Steinberg, 2010).
Durante os anos de 1987 e 1988, com a desvalorização cambial que acaba por aniquilar a poupança de diversas pessoas, há o desencadeamento de uma série de motins contra o governo, que, como respostas, obtém uma forte repressão do Estado, levando a milhares de mortos. A partir daí, é criado o Conselho de Restauração da Lei e Ordem do Estado (SLORC) no país que vivia seus últimos momentos como Birmânia. Em 1989, a SLORC declarou lei marcial, prendendo milhares de pessoas — as quais incluíam defensores da democracia e dos direitos humanos —, assim, chegando ao momento em que os militares renomeiam a antiga Birmânia como Mianmar, como forma de reparação histórica e de conter os ânimos contrários ao governo. O nome deriva do termo “Mranma”, que remonta à auto intitulação feita pelos primeiros a chegarem no rio Irauádi, maior rio do país, durante o século IX (Steinberg, 2010).
Durante esse momento, surgiu também aquela que ficara conhecida como “farol pró-democracia” e viria a ser laureada com um Prêmio Nobel da Paz em 1991, Aung San Suu Kyi, filha do general morto durante a conquista da Independência da Birmânia, ministro da antiga Birmânia entre 1946 e 1947, período em que fora assassinado (Devi, 2014; Steinberg, 2010). A década de 1990 foi constituída pela guinada democrática no país, com a liberação de milhares de presos políticos por Than Shwe, novo presidente da SLORC, agora ao lado do holofote internacional de Aung San Suu Kyi. Em 1995, ela é liberada de sua prisão domiciliar, após 6 anos (Timeline..., 2010).
Em 1996, no entanto, o peso do Estado autoritário retorna com a troca do líder da SLORC, e o objetivo era eliminar qualquer rebelde que se impusesse contra o golpe de Estado (United States..., 1998). Durante uma reunião da Liga Nacional Democrática (NDL), a segunda desde a sua criação em 1980 e a primeira com Aung San Suu Kyi em condição de liberdade, a SLORC prende diversos delegados que estavam a caminho do congresso do partido (Amnesty International, 1996). Em 1997, a SLORC altera seu nome para Conselho Estadual de Paz e Desenvolvimento (SPDC) (Steinberg, 2010), e em 1998, prende mais de 200 membros do NDL, incluindo 60 membros eleitos do parlamento (Amnesty International, 1998).
O processo de internacionalização, no entanto, trouxe uma posição de destaque para o Mianmar. Tal sucessão, que começou nos anos 1990, no auge do espírito democrático, resultou na posição de liderança da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) nos anos 2000. Essa década se prolongou com incerteza quanto ao governo representativo e ao governo totalitário. Nesse processo, ocorrera impasses junto à Tailândia, dentro da esfera de regional, que viria a se intensificar com o furacão que atingira o delta do rio Irauádi, forçando um fluxo migratório dos Rohingya em direção à Tailândia que, os expulsando, levou ao governo do Mianmar a não aceitação deles como povo mianmarense (Gottlieb, 2016).
Já Aung San Suu Kyi foi destinada a um ciclo de prisões domiciliares, pois ainda era um nome forte em nome da democracia (Yip, 2017). Tal condição a levou a não poder velar o corpo do marido, britânico, que viera a óbito em decorrência de câncer, mesmo sem se verem por um período de mais de 4 anos (Timeline..., 2010). Embora sua posição como líder e o seu Nobel da Paz sejam questionados quando se refere a sua atitude perante os Rohingyas, ela ainda exerce uma função de protagonismo quando se refere à política do Mianmar, sendo vista no recente golpe de Estado sofrido pelo país.
O ano de 2021 começou trazendo para o Mianmar lembranças obscuras de um passado que todos preferem deixar para trás. No dia 01 de fevereiro de 2021, a cidade de Yangon, capital do país, acordou com a notícia da prisão de Aung San Suu Kyi, ainda uma das maiores referências e ainda atuante na política, do presidente do país, Win Myint, e de outros políticos do alto escalão do NDL. Após a detenção dessas figuras, o golpe foi instaurado tendo como justificativa as alegações por parte do exército de fraudes nas últimas eleições, e o novo governo teria validade de um ano. Na segunda-feira do golpe, o porta-voz Myo Nyunt, ao relatar para o jornal Reuters sobre os acontecimentos, que esperava ser preso em breve, e pediu para que a população agisse de forma pacífica e de acordo com a lei (Ratcliffe, 2021).
Figura 1: Mulher viraliza ao fazer live para sua classe on-line sem perceber que um golpe de Estado acontece atrás dela.
Reprodução: Twitter
Na matéria de Rebecca Ratcliffe (2021), membra da equipe do The Guardian no país, registrou o sofrimento de uma jovem ao relatar o que havia sentido naquela manhã ao descobrir que Aung San Suu Kyi estava detida e que os militares estavam tomando o poder novamente. Sua mãe a pegou de surpresa com a notícia, deixando-a sem resposta. Ela apenas correu para a casa de seu irmão para pegá-lo e levá-lo para comprar comida. No caminho, ela conta que somente chorou, se sentindo com raiva e ansiosa com o futuro do país. Na matéria também é lembrado dos anos que Aung San Suu Kyi passou presa durante o regime militar durante o passado, com a declaração dela: “eu imploro que as pessoas não aceitem isso, que respondam e, de coração, que protestem contra esse golpe militar” (tradução nossa).
Na aba de notícias de mecanismos de pesquisa, ao se pesquisar sobre Mianmar se encontra a resposta do mundo quanto a um golpe de Estado acontecendo em pleno 2021, levando líderes políticos e organizações internacionais a se posicionarem de forma contrária — o que inclui a declaração do governo de Joe Biden, informando que aplicará sanções ao governo militar enquanto a democracia não for restabelecida (Nunley, Mangan & Macias, 2021). Por sorte, Mianmar não possui reservas de petróleo em seu território. O povo mianmarense, que nos primeiros dias do golpe teve sinais de rádio, televisão, telefone e internet derrubados, também agradeceu o Papa Francisco pelas palavras de apoio.
Mas o que vemos em 2021 é a fragilidade da representação na região do sudoeste asiático, pois não é somente o Mianmar que sofre de casos assim.
Sudeste Asiático: elefantes de vidro
Durante os anos de 1987 e 1988, não era somente a antiga Birmânia que insurgia contra o governo. A crise é generalizada e, nesse período, a onda de protestos, pressão e participação política se estendeu por toda a Ásia Oriental. Considerando a conjuntura política de países como a Tailândia, a Indonésia e as Filipinas na atualidade, vemos que há um padrão que deve ser analisado na região.
O objeto de análise aqui é somente o Mianmar, mas não pode-se ignorar o regime militar intensificado pela questão da pandemia que está acontecendo no país vizinho, a Tailândia (Caur, 2020), o caráter violento e repressivo do governo de Rodrigo Duterte nas Filipinas, onde os portais de notícia apontam que a democracia morre aos poucos (Coronel, 2020), e o estado de violação dos Direitos Humanos e da democracia na Indonésia (Human Rights Watch, 2020; Jaffrey, 2020). Diversos protestos, principalmente entre os jovens, expõe a insatisfação com os governos desses países, mostrando que muita coisa permanece a mesma desde os últimos 40 anos.
Talvez isolar o Sudeste Asiático como um único objeto de pesquisa não seja o mais ideal, considerando as diferentes histórias de criação de cada país em suas trajetórias milenares. No entanto, é um lugar do globo pouco estudado pela academia brasileira de relações internacionais, que pode fornecer guias a cenários futuros não muito distantes dos nossos e dos nossos iguais.
Referências