por Luiza Batista Ferreira
Quando Abiy Ahmed assumiu o cargo de Primeiro Ministro da Etiópia, em março de 2018, havia esperança de que o político levaria o país a uma nova era de paz e prosperidade econômica. Quase três anos depois, a Etiópia encontra-se em um cenário crítico de guerra civil, entre outros conflitos étnicos, que têm potencial para desestabilizar toda a região do Chifre da África, incluindo países como Sudão e Eritreia. As Nações Unidas estimam que mais de 1 milhão de pessoas de diferentes Estados já foram afetadas diretamente pelo conflito desde seu início, em novembro deste ano (CARA, 2020). Este texto busca expor brevemente sobre os impactos do conflito para as populações etíopes e de outros países da região, bem como analisar os possíveis efeitos que a guerra trará a curto e médio prazo.
Embora a posse de Abiy tenha sido encarada como uma proposta de renovação para a Etiópia, o ministro já era membro do antigo governo, que ocupava o poder desde 1993, e realizava um papel de oposição interna no poder público. Suas principais promessas de campanha eram a soltura em massa de presos políticos do país, o aumento de liberdades para a sociedade civil e, principalmente, a realização de eleições livres e democráticas. Ainda que tenha cumprido algumas dessas propostas após tornar-se primeiro-ministro, como a libertação de presos políticos, Abiy não mudou consideravelmente sua posição em relação à sociedade civil e tampouco convocou eleições, adiando-as em razão da pandemia de COVID-19 (ABIY'S..., 2020). O grande trunfo de Abiy foi pôr fim à guerra com Eritreia, questão que se alongava desde 1998, quando o conflito começou e deixou mais de 80 mil mortos em poucos anos (PRIMEIRO..., 2019). A assinatura do acordo de paz entre Abiy e o presidente da Eritreia, Isaias Afwerki, levou o etíope a receber o Nobel da Paz de 2019 e o colocou em uma posição de destaque internacional como político promissor para o continente africano.
Pouco tempo após receber o Nobel, os conflitos étnicos na Etiópia intensificaram-se novamente e ficou claro que esse seria o maior desafio de Abiy enquanto ministro: conciliar o seu próprio projeto de fortalecimento da unidade nacional com as demandas das dez principais etnias que vivem no país. É válido lembrar que Abiy faz parte do povo Oromo, maior grupo étnico do país, que há tempos luta por maior autonomia da região de Oromia e mais representatividade política no governo federal (MORAIS, 2020). Outro grupo étnico envolvido em conflitos são os Tigrés, que ocupam a região do norte da Etiópia - de nome Tigré ou Tigray. Os Tigrés não compõem um grande parcela da população do país, embora tenham governado a Etiópia por mais de 20 anos, até fevereiro de 2018, quando o então primeiro ministro, Hailemariam Desalegn, demitiu-se. Após a saída de Desalegn, Tigrés passaram a ser sistematicamente exonerados de cargos públicos.
O isolamento dos Tigrés levou a um desconforto crescente desse grupo com relação ao governo de Abiy, e dois acontecimentos em especial merecem ser destacados nesta análise. O primeiro deles diz respeito ao adiamento das eleições na Etiópia, em decorrência da pandemia de coronavírus. O povo Tigré não aceitou a decisão de Abiy e prosseguiu com as eleições regionais, realizadas em setembro. O governo federal, por suas vez, não acatou o resultado apresentado pelos Tigrés, declarando ilegal o pleito e isolando politicamente os líderes tigrés, por deliberação do Parlamento etíope (ABIY'S..., 2020).
O segundo acontecimento, que efetivamente fez emergir o conflito, ocorreu no final de outubro. Os Tigrés impediram que um general do governo adentrasse na capital, Mekelle, para assumir seu posto e alocaram tropas da Frente de Libertação do Povo Tigré (FLPT) na fronteira de Tigré com Ahmara. O ministro Abiy, então, tomou a situação como um ataque ao governo etíope e ordenou, no dia 04 de novembro, que as forças armadas nacionais marchassem até Tigré para imposição legal (ABIY'S..., 2020). Desde então, o conflito evoluiu rapidamente para uma guerra civil e pode ser comparado a uma guerra interestatal, considerando que as forças nacionais e tigrenianas equiparam-se em poderio militar, nível de organização e disposição para levar o embate às últimas consequências.
O conflito na Etiópia tem grande potencial para internacionalizar-se e afetar toda a região do Chifre da África, o que envolveria não só os países da região, mas também outras nações que possuem bases militares em solo africano, como os Estados Unidos e a China (CARA, 2020). Os Estados mais envolvidos na guerra até o momento são o Sudão e a Eritreia, vizinhos da Etiópia ao norte e ao leste, respectivamente. O primeiro tem se destacado por receber a maior parte dos refugiados Tigrés, questão que será tratada mais adiante. A Eritreia, por sua vez, está sendo acusada de fornecer armamentos e drones para as forças armadas etíopes lutarem contra os Tigrés, que acumulam inimizades com os eritreus por terem governado a Etiópia durante a guerra entre os dois países. Mesmo sem que o presidente eritreu, Isaias Afwerki, respondesse às acusações, a FLTP lançou mísseis na capital do país vizinho como retaliação, atingindo diversos civis (GEBRE, 2020).
No decorrer do mês de novembro ocorreram diversos ataques a civis em Tigré, tendo um deles ocorrido no dia 09 de novembro, quando mais de 600 pessoas foram assassinadas. Segundo a Comissão de Direitos Humanos Etíope, um órgão independente porém inclinado para o governo, o ataque foi realizado por milícias tigrés, embora a FLTP negue envolvimento (RELATÓRIO..., 2020). Além dos ataques em Tigré, foram registrados acontecimentos semelhantes em diferentes regiões da Etiópia, entre elas, Amhara, que registrou 54 mortos em um massacre de suposta autoria do Exército Oromo de Libertação (MESERET, 2020).
Já foram relatados casos de discriminação étnica contra tigrés residentes em Addis Abeba, capital da Etiópia, como demissões compulsórias e expulsão de restaurantes, por exemplo. Com a continuação dos massacres e a escalada dos conflitos étnicos pelo território etíope, é possível que a instabilidade social se intensifique ainda mais, levando a massacres cada vez mais frequentes (THE WORLD..., 2020). Embora o conflito tenha eclodido em Tigré, as consequências sofridas por populações civis de diferentes regiões do país evidenciam que o que está sendo disputado no momento é a prevalência entre dois projetos políticos distintos. O primeiro, encabeçado por Abiy e pelos Amhara, que prevê a existência de uma Etiópia unificada e centralizada politicamente, e o segundo, liderados pelos trigrés , oromos e outras lideranças locais, que desejam que as regiões sejam autônomas entre si e que possam ser responsáveis pela construção de suas próprias políticas culturais e econômicas (ALLO, 2020).
Após quase um mês de conflito entre o governo federal e os tigrés, as forças armadas da Etiópia cercaram Mekelle e exigiram que o movimento se rendesse em até 72h. Caso contrário, invadiriam a capital. Quando o prazo venceu, na quarta-feira (25), Mekelle, que possui cerca de 500 mil habitantes, foi invadida pelos militares e o controle da região foi retomado por Abiy. O ministro se pronunciou dizendo que as forças armadas poupariam civis, apesar das declarações de membros do exército etíope afirmando que não seriam misericordiosos com a população tigré (THE WORLD..., 2020). Considerando que as linhas de comunicação para Mekelle ainda estão parcialmente bloqueadas, não é possível precisar os efeitos da invasão sobre a população tigré. A ONU estima que mais de 44 mil pessoas fugiram em direção à Kassala, no Sudão, e cerca de 1 milhão de pessoas tiveram de deslocar-se internamente (UN WARNS..., 2020).
O Sudão está recebendo a maioria dos refugiados tigrés nesse momento, mas o país não dispõe de recursos financeiros para abrigar adequadamente as duzentas mil pessoas que devem cruzar a fronteira nos próximos meses, segundo a ONU. O campo de refugiados de Umm Rakouba, aberto pelo ACNUR há poucas semanas, já encontra-se com o dobro de sua capacidade inicial, de 5 mil pessoas (TIGRAY..., 2020). Atentando para esse cenário, o governo sudanês solicitou que a comunidade internacional forneça assistência o mais rápido possível, temendo que a delicada economia do país possa colapsar. As autoridades sudanesas ainda não se posicionaram quanto ao conflito, e é provável que continuem assim para não comprometer suas relações com a Etiópia.
Em toda a região de Tigré, habitada por aproximadamente 6 milhões de pessoas, podem ser sentidos os efeitos da operação militar. Desde o começo da operação, órgãos que prestam ajuda humanitária foram impedidos de atuar e, como consequência disso, os estoques de água, alimentos e medicamentos estão criticamente baixos. Além dos próprios tigrés, encontra-se em risco uma população de cerca de 100 mil eritreus que vivem em um campo de refugiados em Tigré há mais de 20 anos. A ONU relatou que as instalações estavam desabastecidas e que pessoas sumiram do campo, possivelmente raptadas. O governo da Eritréia ainda não se posicionou sobre o caso (CARA, 2020).
Em novembro, Abiy havia adotado uma postura rígida com relação ao envolvimento estrangeiro no conflito, porém, no dia 03 de dezembro, acabou cedendo às pressões da ONU e da União Africana e assinou um acordo que concede acesso irrestrito às Nações Unidas para o fornecimento de ajuda humanitária (UN REPORTS..., 2020). Após conseguirem acesso ao território de Tigré, a ONU relatou que os conflitos continuam a acontecer na região, ainda que o governo diga que a situação já está sob controle. Apesar de o acordo já simbolizar uma flexibilização por parte de Abiy, o primeiro-ministro ainda não deu seu sinal de que aceitará negociar com a FLPT, insistindo em dizer que um governo legítimo não deve negociar com um grupo rebelde. Os líderes da FLPT, por sua vez, afirmaram que não negociarão enquanto o governo não ordenar a retirada das tropas de Tigré e acusaram o ministro de conduzir uma política genocida contra a população (CARA, 2020).
O futuro do conflito e seus efeitos sobre a Etiópia e suas populações ainda são incertos. No curto prazo, é provável que desavenças entre diferentes etnias continuem a crescer, caso Abiy continue a insistir em seu plano de unidade nacional sem incluir demandas de autoridades locais. Caso isso ocorra, a instabilidade interna pode agravar-se ao ponto de comprometer a continuidade de seu governo. Um fator que pode ser determinante nesse cenário e que deve ser acompanhado nos próximos meses é a realização de eleições diretas no país, uma demanda constante dos Tigrés e dos Oromos. Além disso, é esperado que cresça a dependência etíope de ajuda humanitária internacional, como já vem ocorrendo desde o início do conflito.
Quanto aos países do Chifre da África, é certo que o processo de reestabilização da região trará efeitos a longo prazo, segundo o especialista em política do Chifre da África, Rashid Abdi (UNITED.., 2020). Os avanços iniciais de Abiy em relação à guerra com a Eritreia, embora notáveis, podem ser comprometidos a depender das negociações do primeiro-ministro com os Tigrés. Além disso, a questão da migração para o Sudão também deve ser abordada cuidadosamente, considerando que os países ainda têm outras questões para serem resolvidas, como a Represa do Renascimento do Nilo, que foge ao escopo desta análise. Por fim, o contraste entre as posturas adotadas por Abiy Ahmed no início de seu governo e agora afeta sua carreira política internacional como pacificador da Etiópia. A posição do país nos organismos internacionais como UA e ONU, embora esteja comprometida nesse momento, pode ser reavivada a depender da forma como o conflito será conduzido pelo governo nos próximos meses.
Referências
ABIY'S call to arms - Ethiopia lurches towards civil war | Middle East & Africa. THE ECONOMIST, 04 de novembro de 2020. Disponível em: https://www.economist.com/middle-east-and-africa/2020/11/04/ethiopia-lurches-towards-civil-war. Acesso em: 03 dez. 2020
ALLO, Awol K. How Abiy Ahmed’s Ethiopia-first nationalism led to civil war. AL JAZEERA, 25 de novembro de 2020. Disponível em: https://www.aljazeera.com/opinions/2020/11/25/how-abiy-ahmeds-ethiopia-first-nationalism-led-to-civil-war/. Acesso em: 03 dez. 2020
CARA, Anna. AP Explains: Why Ethiopia is suddenly on brink of civil war. AP NEWS, 06 de novembro de 2020. Disponível em: https://apnews.com/article/why-ethiopia-on-brink-of-civil-war-ap-011a4fe56971e4871467d363e6c55551 . Acesso em: 03 dez. 2020
________. 'Stop the madness,' Tigray leader urges Ethiopia's PM. AP NEWS, 30 de novembro de 2020. Disponível em: https://apnews.com/article/why-ethiopia-on-brink-of-civil-war-ap-011a4fe56971e4871467d363e6c55551. Acesso em: 03 dez. 2020
________. UN: Ethiopia's victory claim doesn't mean war is finished. AP NEWS, 29 de novembro de 2020. Disponível em: https://apnews.com/article/eritrea-abiy-ahmed-ethiopia-asmara-kenya-52bb678b19f48e036470caae4aabdb6a. Acesso em: 03 dez. 2020
________. UN: Food has run out for nearly 100,000 refugees in Ethiopia. AP NEWS, 01 de dezembro de 2020. Disponível em: https://apnews.com/article/international-news-eritrea-abiy-ahmed-ethiopia-united-nations-344e7156295eb1801f9441a9359c2dab. Acesso em: 03 dez. 2020
GEBRE, Samuel. ‘We’re Ready to Die’ – Ethiopian Civil War Reaches Crucial Stage. VICE, 24 de novembro de 2020. Disponível em: https://www.vice.com/en/article/wx8n7q/were-ready-to-die-ethiopian-civil-war-reaches-crucial-stage. Acesso em: 03 dez. 2020
MESERET, ELIAS. Survivors count 54 dead after Ethiopia massacre, group says. AP NEWS, 02 de novembro de 2020. Disponível em: https://apnews.com/article/africa-ethiopia-massacres-abiy-ahmed-0eaebddbbda650ab73cc583074800bff . Acesso em: 03 dez. 2020
MORAIS, Gabriel. Assassinato de cantor põe em xeque abertura política na Etiópia. O GLOBO, 03 de julho de 2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/assassinato-de-cantor-poe-em-xeque-abertura-politica-na-etiopia-24513820. Acesso em: 03 dez. 2020
PRIMEIRO-ministro da Etiópia ganha o Nobel da Paz após firmar acordo que pôs fim a 20 anos de conflito. O GLOBO, 11 de outubro de 2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/primeiro-ministro-da-etiopia-ganha-nobel-da-paz-apos-firmar-acordo-que-pos-fim-20-anos-de-conflito-24009449. Acesso em: 03 dez. 2020
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