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análise de conjuntura
PET-REL

por João Pires Mattar

 

No dia 13 de novembro de 2020, o Marrocos lançou uma operação militar em Guerguerat para “restabelecer a livre circulação do tráfego civil e comercial” na fronteira com a Mauritânia (AL JAZEERA, 2020). Civis saaráuis haviam bloqueado pacificamente a passagem em protesto à abertura ilegal de uma estrada pelo Marrocos na região desmilitarizada que separa os territórios ocupados pelos marroquinos daqueles sob controle de sua rival Frente Polisário, que considerou a inscursão militar um “ato de guerra” (POPOVICIU, 2020). A escalada das tensões marca o colapso do cessar-fogo em vigor desde 1991 no Saara Ocidental, território do noroeste africano sob duradoura disputa entre movimentos nacionalistas e o Marrocos. Neste texto, busco contextualizar os acontecimentos recentes, apresentando uma questão pouco visibilizada e analisando o que está em jogo para os atores envolvidos.

 

O conflito na região é consequência de um processo de descolonização não-resolvido. O Saara Ocidental foi listado pelas Nações Unidas como um território não-autogovernado em 1963, quando ainda era uma colônia espanhola, e permanece assim até hoje, em grande medida porque a Espanha se retirou do território, em 1975, sem concretizar a realização de um referendo de autodeterminação — iniciativa que havia se comprometido a fazer. A atitude irresponsável do país europeu frustrou a comunidade internacional e a população autóctone, organizada politicamente em torno da Frente Polisário, movimento anticolonial que reivindica independência da região. (HODGES, 1983; PEREIRA 2012). 

 

No mesmo ano da retirada espanhola, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) emitiu um parecer, a pedido do governo marroquino, acerca da extensão jurídica de seus laços históricos com as tribos saaráuis pré-colonização. A Corte concluiu que, a despeito de haver alguns vínculos jurídicos, estes não eram suficientes para estabelecer uma soberania territorial que descartasse o “direito à autodeterminação por livre e genuína manifestação da vontade dos povos do território” (INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE, p. 60, 1975, tradução livre). O Marrocos, assim como a Mauritânia, desafiaram essa resposta desfavorável — apesar de ambígua — invadindo o Saara Ocidental, com a anuência da ex-metrópole Espanha. Iniciou-se aí um prolongado conflito de guerrilha com a Frente Polisário (ESTRADA, 2014)

 

Se por um lado a Mauritânia se retirou do conflito logo em 1979, abdicando de suas reivindicações territoriais, o Marrocos, por outro, consolidou o controle sobre os territórios anexados (cerca de 80% do Saara Ocidental) e mantém firmemente suas pretensões. A intensidade do conflito arrefeceu no curso da década de 1980, até ser alcançado o cessar-fogo definitivo em 1991 com o estabelecimento da Missão das Nações Unidas para o Referendo no Saara Ocidental (MINURSO). Contudo, o mandato da MINURSO é renovado ano após ano sem atingir o objetivo para o qual foi instituída, isto é, um referendo para autodeterminação do povo saaráui. Além da incapacidade de conciliar a proposta marroquina de autonomia relativa sob autoridade do Estado do Marrocos e o desejo de independência plena da Frente Polisário, a falta de acordo sobre quem estaria apto a votar em uma consulta também frustrou muitas das propostas colocadas à mesa ao longo dos anos. (MANBY, 2020; FERREIRA; MIGON, 2015).

 

Mapa do Saara Ocidental

Fonte: European Council of Foreign Relations

 

Isto se deve a uma falha de origem nos planos de construção de paz, concebidos em um processo de passo-a-passo ao invés de um acordo final completo sendo, assim, condicionados a cooperação voluntária entre as duas partes. Com a clara oposição do Marrocos em avançar qualquer consulta formal à população, a presença indefinida da MINURSO só tem prolongado ainda mais a resolução do conflito, que dependeria de alguma política de enforcement.

 

Neste aspecto, vale dizer que a ausência de uma pressão internacional mais tangível e significativa é consequência direta do papel desempenhado pelas potências globais. A França tem sido o principal fiador das reivindicações marroquinas no Conselho de Segurança, vetando qualquer tentativa de se avançar para além de uma abordagem consensual e não vinculativa, assim como bloqueando a extensão do mandato da MINURSO para monitoramento dos direitos humanos — tornando-a a única missão de paz da ONU sem esta prerrogativa. A Espanha, que possui uma obrigação histórica com a questão, alega que sua posição oficial é de “neutralidade ativa”, mas em verdade, suas preferências convergem com as da França. O Marrocos utiliza os acordos de cooperação em matéria de migração e de contraterrorismo como barganha nas negociações com os dois países europeus, que tem todo interesse em manter o entorno estratégico do Mediterrâneo estável. Outros países, como Estados Unidos e Grã-Bretanha, também contribuem para inércia das coisas, sobretudo por sua omissão (MOLINA; OJEDA-GARCÍA, 2020). 

 

O Marrocos, enquanto ator que ocupa maior parte do território em disputa, é o maior beneficiário da não resolução da questão e manutenção do status-quo, principalmente ao considerar que são as áreas sob seu controle que concentram as ricas jazidas de fosfato e reservas pesqueiras. Rabat vem, progressivamente, construindo infraestrutura e povoando o Saara Ocidental com seus nacionais, normalizando a ocupação ilegal. A ausência de uma confrontação armada nas últimas décadas, por sua vez, tem relegado o Saara Ocidental a um plano marginal nos debates internacionais. Neste sentido, “pode-se crer que um dos fatores que mais contribuiu para o ‘esquecimento’ do conflito tenha sido justamente o cessar-fogo” (ESTRADA, 2014, p. 142 - 143).

 

Este cenário tem contribuído para inquietação entre os saaráuis, sobretudo os mais jovens. Nos últimos vinte anos, a Frente Polisário tem concentrado seus esforços em obter reconhecimento e legitimidade internacional por meio de demonstrações pacíficas, ativismo junto a Organizações Não-Governamentais (ONGs) e representações diplomáticas em outros países (BORIS; MOLINA, 2018; ESTRADA, 2014). A decisão recente de se engajar em um conflito aberto — ou ao menos ameaçar fazê-lo — é parte da tentativa de desinvisibilizar um conflito esquecido. O perfil oficial da Frente Polisário no Twitter atualiza periodicamente as atividades militares empreendidas por suas tropas contra posições marroquinas, o que sugere uma certa espetacularização dos acontecimentos recentes.

 

A alteração na estratégia da Frente Polisário é compreensível tendo em vista os avanços da presença marroquina no Saara Ocidental que, mesmo sob protesto saaráui, é negligenciada pela comunidade internacional. O incidente que levou ao rompimento do cessar-fogo é um exemplo claro disso. A construção de uma via asfaltada em Guerguerat, em 2016, foi sinalizada pela Frente Polisário como uma violação aos acordos de paz e protestos civis, como os que engatilharam a crise recente, vêm acontecendo desde então. O próprio relatório da MINURSO ao Conselho de Segurança, de setembro deste ano, reportou todos esses desenvolvimentos (UNITED NATIONS SECURITY COUNCIL, 2020).

 

O Marrocos goza de uma conjuntura internacional muito favorável. A Argélia, principal financiador e país que fornece apoio essencial à Frente Polisário, enfrenta uma aguda crise política doméstica a mais de um ano. Soma-se a isso a inação das Nações Unidas, que não designa um enviado especial para a MINURSO desde o ano passado e o apoio tácito da administração Trump, agora em seus meses finais (MOLINA, 2020). Rabat tem aproveitado o rompimento do cessar-fogo para avançar uma tradicional estratégia de classificar a Frente Polisário como agente “desestabilizador” da região e, assim, agremiar apoio internacional.

 

Até o momento, apesar da iniciativa de intensificar as ações ter partido da Frente Polisário, é debatível quem ganhou mais com a situação. No dia 26 de novembro, o governo marroquino divulgou que o Bahrein irá abrir um consulado na cidade de Laayoune, cidade na porção do Saara Ocidental sob controle do Marrocos. Dias antes, Rabat havia anunciado que os Emirados Árabes Unidos, a Jordânia e o Haiti também fariam o mesmo, este último o primeiro país não-árabe e não-africano a decidir pela abertura de um consulado nos territórios ocupados (REUTERS, 2020).

 

A decisão de abrir uma representação diplomática no Saara Ocidental é considerada um gesto de apoio internacional e reconhecimento da anexação marroquina. A iniciativa dos três países árabes não vem exatamente como uma surpresa, considerando a consolidada aliança da Liga Árabe com o Marrocos ao tratar da questão do Saara Ocidental. Já a sinalização do Haiti é um caso que merece atenção e cuidado da Frente Polisário, pois pode significar um avanço concreto da diplomacia marroquina na América Latina e Caribe.  

 

Ainda é incerto se a Frente Polisário irá dar continuidade à intensificação do conflito ou se irá recuar e restabelecer o cessar-fogo. Ainda que alegue estar preparada para um enfrentamento prolongado, é inegável a vantagem militar marroquina, motivo pelo qual considero que, provavelmente, não veremos um cenário de guerra total. De toda maneira, a MINURSO, cujas duas principais atribuições eram a manutenção do cessar-fogo e a realização de um referendo, já pode ser considerada um fracasso em sua totalidade. 

 

Referências

 

AL JAZEERA. Morocco troops launch operation in Western Sahara border zone, 13 de nov. de 2020. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2020/11/13/morocco-launches-operation-in-western-sahara-border-zone. Acesso em: 27 de nov. de 2020.  

 

BOURIS, Dimitris; MOLINA, Irene Fernández. Contested States, Hybrid Diplomatic Practices, and the Everyday Quest for Recognition. International Political Sociology, v. 12, p. 306 - 324, 2018. 

 

ESTRADA, Rodrigo Duque. Saara Ocidental: histórica, geopolítica e perspectivas da “última colônia”. Cadernos de Relações Internacionais, v. 7, n.1, pp. 118 - 147, 2014

 

FERREIRA, Sylvio Souza; MIGON, Eduardo Xavier Ferreira Glaser. A Estratégia de uma Guerra Esquecida: fundamentos estratégicos aplicados à questão do Saara Ocidental. Política Hoje, v. 24, n. 2, 2015.

 

HODGES, Tony. The origins of Saharawi nationalism. Third World Quarternly, v. 5, no. 1, p. 28 – 57. Jan. 1983.

 

INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Western Sahara, Advisory Opinion. Haia: 1975. Disponível em: < https://www.icj-cij.org/files/case-related/61/061-19751016-ADV-01-00-EN.pdf >. Acesso em: 01 de out. de 2020.

 

MANBY, Bronwen. Nationality and statelessness among persons of Western Sahara origin. Tottel’s Journal of Immigration, Asylum and Nationality Law, n. 34 (1), p. 9 - 29, 2020.

 

MOLINA, Irene Fernández; OJEDA-GARCÍA, Raquel.  Western Sahara as a Hybrid of a Parastate and a State-in-Exile: (Extra)territoriality and the Small Print of Sovereignty in a Context of Frozen Conflict. Nationalities Papers, V. 48, n. 01, p. 83 - 99, 2020

 

MOLINA, Irene Fernández. Sáhara Occidental: conflicto reactivado? Cinco continentes, 24 de nov. de 2020a. Disponível em: https://www.rtve.es/alacarta/audios/cinco-continentes/sahara-occidental-conflicto-reactivado/5723740/. Acesso em: 28 de nov. de 2020.

 

PEREIRA, Pascoal S. Saara Ocidental: um processo de não-autodeterminacão nacional? Ciência e Cultura, vol.64, no.4, pp. 22 – 26. Oct./Dec. 2012

 

POPOVICIU, Andrei. The failed diplomacy between Morocco and Polisario. Al Jazeera, 18 de nov. de 2020. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2020/11/18/the-failed-diplomacy-between-morocco-and-polisario. Acesso em: 27 de nov. de 2020.

 

REUTERS. Bahrain to open consulate in Western Sahara. Rabat, 26 de nov. de 2020. Disponível em: https://news.trust.org/item/20201126181742-gbr41/. Acesso em: 28 de nov. de 2020. 

 

UNITED NATIONS SECURITY COUNCIL. Situation concerning Western Sahara. Nova York, 23 de set. de 2020, p. 1 - 18. Disponível em: https://minurso.unmissions.org/sites/default/files/unsg_report_23_september_s_2020_938_e.pdf; Acesso em: 28 de nov. de 2020.